Opinião

O real papel do Ministério Público em uma sociedade democrática

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19 de abril de 2024, 18h17

Em momentos históricos em que a democracia é profundamente desafiada (e testada), como o foi pelos movimentos totalitários de meados do século 20, voltam-se os olhos para o desenvolvimento de mecanismos de defesa, ressuscitando uma “democracia defensiva” e apurando a memória para a “democracia militante”, proposta por Karl Loewenstein (1937, p. 417).

Todavia, esquece-se que a Constituição Federal de 1988 traz em seus dispositivos o modelo de uma democracia defensiva, atribuindo, prioritária e literalmente, essa tarefa ao Ministério Público, quando no artigo 127, caput, diz competir à referida instituição “defender o regime democrático”.

Numa primeira aproximação, democracia e Ministério Público gozam de uma identidade quase perfeita. A história da instituição comprova que ela se fortalece nos períodos democráticos e fenece quando não há democracia ou quando esta é frágil.

Num regime autoritário, o MP eclipsa-se ou transforma-se em desimportante e vestigial apêndice político. Daí porque, até por uma questão de sobrevivência de um modelo institucional autônomo, a defesa intransigente e convicta da democracia é dever institucional de primeira grandeza, que não pode pairar no éter das tarefas por fazer.

Dentro desse contexto historicamente identitário, o Ministério Público detém uma competência constitucional, ainda pouco explorada e estruturada (em termos teóricos e práticos), que é a defesa do regime democrático (CF/88, artigo 127, caput). Essa perspectiva identitária ajuda a entender, em sua justa medida, o alcance normativo da referida competência: não foi fruto do acaso ou mera condescendência do constituinte originário.

A decisão também de usar uma linguagem de textura aberta não deve, de igual modo, ser considerada obra do mero acaso, mas prudência em tentar servir a várias gerações em diferentes períodos. É um aceno à perdurabilidade.

Letra morta

Todavia, a instituição faz apenas ato de presença na atribuição aludida, não desenvolvendo doutrinas nem teorias, de modo a extrair o máximo de efetividade de base normativa tão fértil em desdobramentos. A competência parece encapsulada numa inércia exploratória, repita-se, tanto teórica quanto prática.

A instituição ainda não despertou para a evidência de que possui, devidamente destacada, a atribuição de “defender a democracia”, constituindo parte relevante de sua natureza, enquanto instituição pública garantidora e fiscalizadora. A substancialidade dessa atribuição é descoberta quando, paulatinamente, a instituição desenvolver a capacidade de servir-se do conceito amplo (e atual) de “democracia” e dos meios necessários de “defesa”. A dualidade da equação, como propriedade presente na atuação institucional, nasce no pensamento, comportamento, atitude e linguagem dos membros engajados e leais.

O comando normativo em alusão, embora irresistível como possibilidade em sua aparente clareza semântica, não é auto-explanatório ou autossuficiente, não se oferece claramente à compreensão do intérprete, tanto que passadas quase quatro décadas da promulgação da lei fundamental, persiste sendo letra morta (embora a instituição desenvolva funções garantidora e defensora de valores democráticos em várias áreas de atuação). Isso se deve, em parte, ao seu espectro extremamente indefinido e aberto, como parece ser o destino de inúmeras outras normas constitucionais (Ely, 2010, p. 17).

Para sua cabal incorporação ao arsenal de competências do Ministério Público, exige seja interligado, por meio de critérios metodológicos adequados, com outros comandos constitucionais e outros meios de atuação institucional, que não os meramente demandistas.

A originalidade não está na locução verbal inserida no corpo da Constituição, mas na construção institucional que pode ser efetuada, a partir dos elementos normativos dados. O comando constitucional em alusão, atende sem dúvida, a um claro objetivo estratégico e concretizável, tanto a nível institucional quanto social; é, claramente, uma base epistemológica produtora de sentido e de significado além da estreita faixa de normatividade. Valorizado e bem interpretado, pode criar atitudes, fixar coordenadas de atuação, influir no pensamento e na ação futura dos membros do Ministério Público.

Compromisso de lealdade

Criar um sistema de defesa democrática é uma tarefa extremamente difícil, ao passo que as energias desdemocratizantes [1] vêm com a promessa de transgressão e excitação (Gray, 2018, p. 112). A fragilidade da democracia é testemunha do perene sonho de uma vida sem restrições e da sedução por movimentos disruptivos, ainda que conservadores ou reacionários.

Nas mãos erradas, a defesa democrática pode se tornar uma arma, tanto mais poderosa quanto maior for a inércia e a omissão. Desse modo, não é qualquer agente público que pode se apropriar dessa competência, que pressupõe, acima de tudo, um notável compromisso de lealdade — que beira a heroicidade [2] — com os princípios mais essenciais da democracia. Isso por uma razão muito simples: a atribuição de defesa democrática não se confunde com a simples defesa da ordem jurídica, tanto que a Constituição atribui, em separado, esta competência também ao Ministério Público.

A defesa da democracia, guiada por uma convicção intensa e profunda, verdadeira consciência democrática, transcende os limites gravitacionais do Estado, do governo de plantão e até da ordem jurídica posta (pois neste caso, até um burocrata de perfil antigo seria capaz de desincumbir-se).

Muito do poder democrático jaz na legitimidade advinda da autoridade, do que propriamente da força bruta proveniente do poder. Veja-se, por exemplo, o caso do Judiciário, que não tem nenhum poder sobre a força ou a riqueza de uma sociedade, e até para a eficácia e efetividade final de suas decisões precisa do auxílio e da lealdade do Executivo.

Por trás dessa cooperação, há mais que um dever legal, predomina um senso de lealdade. Se este princípio de lealdade não é mantido ao longo do escalonamento público, o tecido democrático rompe-se de maneira perigosa.

Os membros do Ministério Público, todos sem exceção, frente à Constituição e seus comandos, e principalmente, face ao fluxo histórico-identitário da instituição, devem ser democratas convictos e por inteiro, com sólidas credenciais republicano-democráticas: nem desleais, nem semileais, pois como afirmam Levitsky e Ziblatt (2023, p. 13), a deslealdade e até a semilealdade podem matar a democracia, principalmente, se têm origem em suas instituições de salvaguarda.

O tao do MP

Neste cenário, não se vive somente de teses e hipóteses, mas principalmente de convicções, estipulando um grande peso ao dever ético da lealdade. Enquanto instituição, o Ministério Público só se desenvolve na medida em que obedece à sua natureza histórica: servir lealmente à democracia e aos elevados interesses da sociedade. Este é o caminho, o tao, de sua essência.

E paralelamente, impõe-se aos membros permanecerem dispostos todo o tempo para velar, com sua força intelectual e moral, pelos interesses da democracia, mantendo prudencial distanciamento do centro de gravidade política. Como os estoicos antigos, o membro do MP, com suas ações e medidas (“necessárias” e “adequadas”), precisa empenhar-se em uma decidida defesa da democracia — e da civilização que a consagra — contra as energias desdemocratizantes e descivilizadoras, sem qualquer esperança de que esses valores possam a final prevalecer.

José Cruz/Agência Brasil

Numa sociedade democrática, plural e tolerante, é possível conviver com cidadãos céticos e até contrários (quando não, desleais) à agenda democrática [3]. A democracia é assegurada, conceitualmente, pela presença desses e de outros atributos essenciais.

Os extremos se tocam na tolerância (energias democráticas e desdemocratizantes). Mas tal quadro é absolutamente inaceitável para um membro do Ministério Público, pois para este agente público, a democracia (e sua defesa) não se coloca como uma opção ideológica ou política, mas como um dever de índole constitucional, racional, supremo, irrenunciável, indisponível e irrecusável, que se impõe desde o recrutamento.

Exatidão funcional

Um princípio de interpretação constitucional é o critério da exatidão funcional (Hesse, 1998, p. 67). Se a Constituição ordena a respectiva tarefa de defesa do regime democrático ao Ministério Público, o órgão interpretador da norma tem de manter-se no quadro das funções a ele atribuídas; ele não deve, pela maneira e pelo resultado de sua interpretação, ou até por omissão ou inércia, remover ou tornar letra morta a distribuição da função. Não há uma opção de saída do rol de deveres constitucionais. É cumpri-lo ou alargá-lo em seu alcance imperativo, pois qualquer limite estabelecido sempre aponta para algo que o ultrapassa.

Na defesa da democracia e de sua consolidação, o membro ministerial se coloca como um mecanismo jurídico funcionalmente predisposto a executar tal tarefa, com total protagonismo, sem margem para dúvidas ou conflitos existenciais em torno de sua imanente lealdade ao sistema político forjado pela Constituição.

Não teria muito sentido uma Constituição democrática criar mecanismos para garantir sua supremacia e estes mecanismos de salvaguarda, por meio de seus agentes, atuassem contrariamente como energias desdemocratizantes ou não atuassem, reforçando o caráter simbólico de uma realidade normativa.

Para entender o alcance do comando constitucional em análise, talvez seja necessário que o Ministério Público compreenda a si mesmo, suas potencialidades, suas possibilidades, suas falhas e seus acertos, enquanto instituição a serviço integral da ambiência democrática.

No mínimo, a defesa do regime democrático representa um padrão de aperfeiçoamento (ou um “poder benéfico de otimização” — Bostrom, 2018, p. 408) do Ministério Público, capaz de decifrar indícios de uma atuação institucional ainda insuspeita (e por enquanto, miniatural), mas determinante para pavimentar o futuro democrático do país.

Sempre, onde quer que atue, o MP estará envolto pelo propósito maior de defesa do regime político em questão. Estrutura-se, portanto, uma pauta legitimadora, ampla e abrangente [4], a partir de uma decisiva autoconsciência institucional, guiada pela razão e pelo dever.

Ato de resistência

A instituição não pode por em marcha o conhecimento ou o desenvolvimento de uma competência constitucional, genérica e abstrata, num ponto pré-institucional, que possua um valor zero. O futuro a conhecer não pode ser construído sobre um passado desconhecido ou ignorado.

O Ministério Público é para si mesmo um ponto de partida definitivo e inevitável, pois é a partir de sua história e de suas atribuições que pode traçar os limites razoáveis de sua atuação e das competências — constitucionais e legais — que lhe são conferidas. Qualquer outro ponto de partida seria o produto de uma abstração secundária e um redimensionamento arbitrário, que, uma vez dissociado do contexto, não se pode legitimar sem recurso ao locus histórico-institucional.

De qualquer modo, uma vez comprometido, constitucional e essencialmente, com a “defesa do regime democrático”, o membro do Ministério Público tem, em tese, em cada movimento funcional, em qualquer área de atuação, um ato de resistência jurídica às forças desdemocratizantes que atuam na cena política do país. Esse ato de resistência é um sinal de soberania e de total apropriação da competência constitucional em análise.

 


Referências:

BOSTROM, Nick. Superinteligência. Caminhos, perigos e estratégias para um mundo novo. Tradução de Clemente Gentil Penna e Patrícia Ramos Geremias. Rio de Janeiro:DarkSide Books, 2018.

ELY, John Hart. Democracia e desconfiança. Uma teoria do controle judicial de constitucionalidade. Tradução de Juliana Lemos. São Paulo:WMF Martins Fontes, 2010.

GRAY, John. A alma da marionete. Um breve ensaio sobre a liberdade humana. Tradução de Clóvis Marques. Rio de Janeiro:Record, 1a. ed., 2018.

HAN, Byung-Chul. Infocracia. Digitalização e a crise da democracia. Tradução de Gabriel Salvi Philipson. Patrópolis/RJ:Vozes, 2022.

HESSE, Konrad. Elementos de direito constitucional da República Federal da Alemanha. Tradução de Luiz Afonso Heck. Porto Alegre:Sergio Antonio Fabris Editor, 1998.

LEVITSKI, Steven.; ZIBLATT, Daniel. Como salvar a democracia. Tradução de Berilo Vargas. Rio de Janeiro:Zahar, 2023.

LEVITSKI, Steven.; ZIBLATT, Daniel. Como as democracias morrem. Tradução de Renato Aguiar. Rio de Janeiro:Zahar, 2018.

LOEWENSTEIN, Karl. Militant Democracy and Fundamental Rights, I. American Political Science Association:The American Political Science Review, Vol. 31, No. 3 (Jun., 1937), pp. 417-432.

SEIFE, Charles. Os números (não) mentem. Tradução de Ivan Weisz Kuck. Rio de Janeiro:Zahar, 2012.

[1] Não é incomum encontrar essas energias num sistema democrático. Charles Seife (2012, p. 154), a propósito, ressalta: “Não se deixe enganar: há quem esteja disposto a solapar os próprios mecanismos da democracia a fim de assegurar que seus aliados ideológicos sejam eleitos – independentemente da vontade do povo”.

[2] “No interior da verdadeira democracia reside, portanto, algo heroico. Ela necessita daquela pessoa que ousa, apesar de todo risco, pronunciar a verdade” (Han, 2022, p. 101) e, pode-se acrescentar, mobilizar todos os meios lícitos e necessários para defendê-la contra as forças contrárias. O compromisso e a lealdade com a democracia devem ser constantemente renovados, pois princípios julgados estabelecidos de maneira firme e permanente, podem, a qualquer momento, ser atacados e derrubados.

[3] Isto não elide a evidência de que para a sobrevivência e prosperidade da democracia é crucial que o povo abrace valores democráticos, ou seja, acredite e seja fiel ao sistema. Se esta lealdade é rompida, mostrando-se o povo aberto e receptivo “a apelos autoritários, então, mais cedo ou mais tarde, a democracia vai ter problemas” (Levitski/Ziblatt, 2018, p. 30).

[4] Pauta que induz a instituição a transbordar os limites tradicionais do mapa de atuação (demandismo, parecerismo) e construir uma nova visão a partir de competências constitucionais ainda pouco conhecidas e exploradas.

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