Lavajatismo à portuguesa

Anulação de processo contra José Sócrates reafirma importância do sistema acusatório

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27 de março de 2024, 18h53

A anulação da decisão de pronúncia contra o ex-primeiro-ministro de Portugal José Sócrates reafirma a importância do sistema acusatório e, consequentemente, o Estado democrático de Direito. Porém, assim como no Brasil, o “lavajatismo lusitano” continua provocando danos ao país europeu. Foi o que afirmaram o próprio Sócrates e especialistas no assunto à revista eletrônica Consultor Jurídico.

José Sócrates, ex-primeiro-ministro de Portugal, é vítima do ‘lavajatismo lusitano’

O Tribunal da Relação de Lisboa aceitou o recurso de Sócrates e anulou a decisão de pronúncia contra o político por acusação de três crimes de lavagem de dinheiro e três de falsificação de documentos. A corte também cassou as medidas cautelares impostas a Sócrates.

Em Portugal, o juiz profere a decisão de pronúncia ao término da instrução processual, quando conclui que há indícios suficientes para o acusado ser submetido a julgamento. Após esse despacho, o julgador da instrução deixa o caso e outro juiz será o responsável pela sentença — modelo semelhante ao do juiz das garantias, cuja implementação está sendo planejada no Brasil pelo Conselho Nacional de Justiça.

O Tribunal da Relação de Lisboa entendeu que, na decisão de pronúncia, o juiz Ivo Rosa exerceu o papel do Ministério Público e promoveu uma alteração substancial dos fatos da acusação, sem permitir que a defesa de Sócrates se manifestasse sobre as mudanças. Na denúncia, o MP afirmou que Carlos Santos Silva era um laranja do ex-primeiro-ministro. Porém, o juiz apontou que ele era corruptor ativo de Sócrates.

O ex-primeiro-ministro sustentou que o juiz não pode reescrever a acusação, como fez Ivo Rosa. Afinal, a legitimidade do julgador reside em sua imparcialidade.

“Ao juiz compete avaliar e julgar as narrativas que lhe são apresentadas pela acusação e pela defesa. Não lhe compete criar narrativas próprias, justamente para não se confundir com a acusação. Se o juiz pudesse, ele próprio, reescrever a acusação, ninguém saberia exatamente do que deveria se defender, na medida em que a acusação poderia mudar a todo o momento — em particular no fim do jogo, quando já não é mais possível a defesa”, disse Sócrates.

“Uma das principais caraterísticas do Estado democrático de Direito é o modelo penal acusatório, em contraposição ao modelo inquisitorial. No primeiro, no modelo acusatório, existem duas instituições, independentes uma da outra, uma que acusa, outra que julga. Quem julga não acusa e quem acusa não julga. Esse é o princípio básico. No segundo, no modelo inquisitorial, quem acusa também julga. E quem julga, em consequência, não tem imparcialidade.”

O processo contra o ex-primeiro-ministro já completou dez anos e ainda não foi julgado. Há três anos, um juiz considerou que as acusações não tinham fundamento, ressalta Sócrates. E agora o Ministério Público tenta anular essa decisão alegando que houve um “lapso de escrita” e que se enganou na qualificação jurídica da conduta atribuída ao político. “Nunca houve ‘lapso’ nenhum. O ‘lapso’ é apenas a última desonestidade dos procuradores”, declarou Sócrates, criticando o fato de que o tribunal parece inclinado a aceitar o recurso da promotoria.

“Em síntese, este é o ponto em que estamos: o que agora foi recusado pelo tribunal parece querer ser seguido por outro tribunal, mas desta vez de forma mais grave. Ao fim de sete anos querem mudar a acusação. Se não foste a julgamento por este crime, vais por outro — se não foste tu, foi o teu pai. O processo ‘marquês’ não é um processo de Direito comum, mas um processo de exceção — nada de lei ou de justiça, só violência. E um processo de exceção que tem a cumplicidade de todos os que optam pelo silêncio, divididos entre a indiferença e o apoio ao arbítrio”, criticou o ex-primeiro-ministro.

Especialistas ouvidos pela ConJur concordam com José Sócrates. Pedro Serrano, professor de Direito Constitucional da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), afirma que um juiz não pode compor a acusação, como fez Ivo Rosa.

O especialista em Direito Público Rafael Valim, professor visitante da Universidade de Manchester (Inglaterra), tem opinião semelhante: “É correta a decisão do Tribunal da Relação de Lisboa na medida em que, à luz do modelo acusatório, ao juiz é vedado definir os termos da acusação. O juiz não pode assumir a posição de acusador, sob pena de sepultamento dos direitos fundamentais do acusado”.

“Lavajatismo lusitano”

O processo “marquês” é o equivalente português da “lava jato”. Ou seja, é um caso de lawfare, com abusos e juízes parciais, afirma José Sócrates.

“A única decisão transitada em julgado no processo ‘marquês’ é a vigarice da escolha do juiz. E essa não é uma alegação, não é um ponto de vista, é uma decisão judicial provada em tribunal e transitada em julgado. A distribuição do processo foi viciada, e o juiz, escolhido pelo Ministério Público, o que transformou todo o inquérito em um jogo de cartas marcadas. Exatamente como na ‘lava jato’. Aqui o juiz chama-se Carlos Alexandre, aí chama-se Sergio Moro. Os casos de lawfare começam todos assim, com a escolha manipulada da jurisdição.”

Há diversas semelhanças entre os métodos de persecução adotados contra o presidente Luiz Inácio Lula da Silva na “lava jato” e os utilizados contra José Sócrates na “marquês”, de acordo com Rafael Valim.

“Em linhas gerais, ambos os casos caracterizam, de maneira evidente, o fenômeno do lawfare, em que se utiliza estrategicamente o Direito para fins de deslegitimar, prejudicar ou aniquilar um inimigo. Apenas para dar alguns exemplos, nos dois casos houve grosseira manipulação das regras de competência, a fim de selecionar juízes favoráveis à acusação; os juízes responsáveis pelos processos demonstraram parcialidade em relação aos acusados, contra os quais foram decretadas medidas cautelares ilegais, destinadas a deslegitimá-los; tanto no Brasil como em Portugal houve uma maciça campanha midiática contra os acusados, alimentada pelos respectivos juízes, de modo a criar um ambiente de culpabilidade”, explicou o advogado.

Pedro Serrano lembra que, na “lava jato”, no caso do tríplex no Guarujá (SP), Sergio Moro reconheceu que não havia prova de que a reforma do imóvel havia sido feita pela empreiteira OAS em troca de contratos com a Petrobras, mas condenou Lula mesmo assim, pela promessa de benefícios futuros à empreiteira — algo que não constava da acusação inicial. “O juiz não pode atuar como acusador e retirar a oportunidade de defesa do réu.”

A “lava jato”, contra Lula, e a “marquês”, contra Sócrates, são comparáveis por serem medidas de exceção, e não propriamente processos penais no sentido jurídico material da Constituição, opina o professor. São casos que têm a aparência de um processo penal, mas nos quais os réus são tratados como inimigos.

“Estamos perante, portanto, uma nova forma de autoritarismo, de crise constitucional, de crise democrática. E Sócrates é vítima desse tipo de processo penal de exceção em Portugal, tanto quanto Lula foi vítima de processos penais de exceção aqui no Brasil”, afirmou Serrano.

Processo do espetáculo

“Eles sabem como ferir. Com prévia convocatória às televisões, a detenção constituiu o primeiro andamento de uma deliberada encenação midiática. Desafiando a inteligência de quem a tudo assistiu, justificam-na com o ‘perigo de fuga’, tentando esconder o que é óbvio: eu vinha a entrar no país, não a sair.”

relato é do próprio José Sócrates, que foi preso no aeroporto de Lisboa em 21 de novembro de 2014, quando voltava de Paris ao seu país natal. Ele iria se apresentar à Justiça, mas não teve tempo: ela foi buscá-lo no aeroporto com luzes, câmeras e ação, exatamente como em muitas das “operações” espetaculosas deflagradas pela Polícia Federal brasileira por determinação judicial. Do aeroporto, foi levado diretamente para a detenção, de onde saiu somente depois de 11 meses.

Enquanto esteve preso, Sócrates escreveu parte de Só Agora Começou, livro no qual, além de se defender das acusações de que foi alvo, faz sólidas críticas ao sistema de Justiça Penal português — e também ao brasileiro. Na primeira parte, o autor intercala dois momentos narrativos: trechos de textos escritos no confinamento e pensamentos colocados no papel quase quatro anos depois, já longe do calor dos acontecimentos. Os questionamentos aos estratagemas de investigações, à superexposição de réus e aos métodos da imprensa fundem os dois tempos em um só.

A viagem pela prisão e pelas memórias de José Sócrates é também uma viagem pelo Brasil. Lá, o ex-primeiro-ministro acusado de corrupção. Aqui, o presidente Lula. Lá, “operação marquês”. Aqui, “lava jato”. Lá, Carlos Alexandre, o juiz herói. Aqui, Sergio Moro. Lá e aqui, dois ex-líderes muito comemorados no passado recente são presos ainda sem condenação definitiva. Lá como cá, membros do Ministério Público alçados à posição de astros. Lá e aqui, a queda dos heróis, junto com suas investigações e suas tão novas quanto breves biografias. Em Portugal e no Brasil, o show de parte do Judiciário acabou cedendo diante da real Justiça.

É impossível escapar à analogia entre as “operações” “marquês” e “lava jato” — até porque o próprio autor faz diversos paralelos. Mas as semelhanças são tantas que, muitas vezes, é necessário voltar um pouco para refrescar a memória. “Afinal, ele está falando de Moro ou de Alexandre?”. O fato de José Sócrates ter colocado o ponto final em seu livro em setembro de 2018 não causa nenhum ruído na narrativa. Ao contrário, as histórias contadas parecem prever o desfecho, adivinhar os fatos que todos vimos se desenrolarem depois, como se fosse inevitável.

Lá, Carlos Alexandre foi afastado do processo e seu substituto absolveu José Sócrates das acusações de corrupção. Aqui, o Supremo Tribunal Federal julgou o juiz Sergio Moro incompetente e parcial e, consequentemente, anulou as duas condenações penais de Lula. As duas decisões, em Portugal e no Brasil, terem sido tomadas em abril de 2021, com alguns dias de diferença entre elas, é apenas mais uma na miríade de semelhanças entre os dois casos.

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