Abusos da ‘lava jato’

STF deve decidir sobre cumprimento de acordo com dados obtidos ilegalmente

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22 de abril de 2024, 19h45

Depois de anos de glória, os ativistas do esquema “lava jato” estão respondendo agora por seus atos. As infrações, ilegalidades e fraudes amontoam-se — nas esferas judiciais, administrativas e no Conselho Nacional de Justiça. Muitos desses casos estão sendo reexaminados agora pelo Supremo Tribunal Federal.

Edson Fachin é o relator do caso que envolve o grupo Galvão Engenharia

Nas mãos do ministro Edson Fachin está um caso exemplar, que envolve o grupo Galvão Engenharia. A Polícia Federal tinha ordem específica de busca e apreensão na construtora, mas invadiu outra empresa, a holding Galvão Participações, em local diferente do que indicava a ordem judicial.

A segunda transgressão à lei foi praticada pelo então juiz Sergio Moro. Ele compartilhou, indevidamente, as pretensas “provas” com Receita Federal, Tribunal de Contas da União, Cade, Controladoria-Geral da União e Advocacia-Geral da União.

Embora o Tribunal Regional Federal da 4ª Região tenha declarado a imprestabilidade do material como prova e determinado sua devolução à holding, a decisão jamais foi cumprida. E os procedimentos de investigação continuam abertos nos órgãos de controle, como se as acusações afastadas seguissem válidas.

A Polícia Federal e o Ministério Público Federal alegam não ser possível indicar, entre todos os documentos listados no auto de apreensão, quais seriam os afetados pela decisão do TRF-4, já transitada em julgado.

Seguindo à risca a cartilha escrita pela “lava jato”, o MPF tirou da manga um truque para esquentar as provas ilícitas: usá-las contra terceiros, mas não contra a Galvão.

Isso foi feito em acordos de delação premiada de executivos da construtora. Os diretores concordaram em renunciar a qualquer questionamento ao uso dos documentos, ao mesmo tempo em que o MPF assumiu o compromisso de não utilizá-los contra a empresa.

Ilegalidade homologada

O acordo foi homologado em 2017 pelo ministro Edson Fachin e cumprido apenas parcialmente pelo MPF, afinal, os processos administrativos abertos contra a Galvão jamais foram encerrados.

A companhia aguarda, há um ano e meio, Fachin julgar um pedido para compelir o MPF a cumprir o acordo de retirar as acusações feitas. Até agora, o ministro se limitou a pedir informações sobre o uso dos documentos pelos órgãos de controle, mas ainda não decidiu sobre o mérito da questão.

A falta de resposta do MPF a um pedido de informações sobre o destino que deu a documentos obtidos ilegalmente não é um caso isolado. Já havia sido notada pelo ministro Dias Toffoli na decisão em que anulou as provas obtidas no acordo de leniência da Odebrecht.

“Até mesmo esta Suprema Corte, após a devida requisição de documentos, não foi atendida integralmente, restando frustrada até o momento a ordem de encaminhamento dos referidos documentos, o que, aliás, comprova as dificuldades enfrentadas para se fazer cumprir o enunciado da Súmula Vinculante 14 nas engrenagens da ‘operação Lava a Jato’, assim como em outras esferas do sistema de Justiça”, apontou Toffoli.

A Súmula 14 diz o seguinte: “É direito do defensor, no interesse do representado, ter acesso amplo aos elementos de prova que, já documentados em procedimento investigatório realizado por órgão com competência de polícia judiciária, digam respeito ao exercício do direito de defesa”.

Ao analisar um agravo regimental sobre qual ministro deveria julgar o pedido da companhia, a 2ª Turma do STF entendeu que cabe a Fachin decidir sobre a solicitação, já que é o relator da petição apresentada pela Galvão.

O colegiado seguiu o entendimento do ministro Dias Toffoli, que já havia concedido à construtora acesso à íntegra dos diálogos da “operação spoofing” — razão pela qual a Galvão questionou se também ele, Dias Toffoli, poderia determinar o cumprimento do acordo de delação, que estava com Fachin. Afinal, foi graças à “spoofing” que os advogados da Galvão, José Roberto Santoro e Raquel Santoro, tomaram ciência de mensagens entre os procuradores da “lava jato” comprovando que eles sabiam que o uso das provas seria ilegal.

Mas Toffoli negou o pedido, ratificando que deveria ser feito ao relator. “A alegação de eventual descumprimento por parte do MPF do referido termo deverá ser levada ao conhecimento do Ministro Fachin”, escreveu o ministro.

Ao participar do julgamento do agravo na 2ª Turma, concluído no último dia 12, Fachin concordou com Toffoli: reconhecer o descumprimento do acordo pelo MPF cabe a ele, que o homologou. “Nos termos do art. 21, I e II, do RISTF (Regimento Interno do STF), são atribuições do Relator, ordenar e dirigir o processo sob sua relatoria.”

Prática comum

O uso de documentos obtidos de forma irregular como “provas” foi um expediente corriqueiro da “lava jato”. Recentemente, a Corregedoria do CNJ descobriu que os procuradores da autodenominada força-tarefa permitiram o uso ilegal de provas contra a Petrobras no acordo da companhia com autoridades dos Estados Unidos.

Segundo relatório de inspeção da Corregedoria, noticiado pela Folha de S.Paulo, as “exigências legais foram flexibilizadas” conforme interesse das autoridades americanas. Um alerta da Secretaria de Cooperação Internacional da PGR foi ignorado pelos procuradores que formalmente conduziam os depoimentos.

Em setembro de 2023, Toffoli anulou todas as provas obtidas nos sistemas Drousys e My Web Day utilizadas a partir da leniência da Odebrecht na “lava jato”, em todas as esferas. A anulação decorreu da quebra da cadeia de custódia no manuseio do material, obtido antes da leniência por meio de cooperação internacional feita fora dos meios oficiais.

No julgamento do agravo regimental da Galvão, Fachin aproveitou para ressalvar a decisão de Toffoli em favor da Odebrecht. O ministro argumentou que a decisão foi monocrática e está pendente de julgamento definitivo pela 2ª Turma. Porém, a decisão sobre a ilegalidade das provas já transitou em julgado — o que está pendente de julgamento definitivo é a suspensão do pagamento no acordo.

Coação

Os diálogos entre o consórcio de procuradores e a 13ª Vara Federal de Curitiba, obtidos na “spoofing”, revelam que o MPF sempre soube que o compartilhamento indevido do material da Galvão não só aconteceu, como também foi utilizado por outras autoridades.

Em julho de 2017, Deltan Dallagnol pede para seus colegas confirmarem a existência de um acordo de colaboração da Galvão com a PGR. “Se sim, apenas peço que seja analisada aquela situação do pedido de nulidade da busca na 7ª fase. Se no acordo eles irão entregar esse material ou não”, escreveu.

O procurador Paulo Galvão respondeu: “acordo com pessoas da galvão, está quase fechado, mas não com a empresa… bem lembrado pela renata, mas não sei se conseguiríamos que a empresa abrisse mão da vitória no tribunal. talvez se os executivos reconhecessem que a mesa era deles” — os diálogos são reproduzidos aqui em sua grafia original. O procurador se referia ao acórdão do TRF-4 que determinou a devolução do material apreendido ilegalmente.

Deltan, então, estimula seus colegas a coagirem a empresa a renunciar a um direito obtido judicialmente e relembra a abertura de um procedimento no Cade: “fica meio contraditório eles querem ajudar de um lado e estarem litigando de outro né. Lembrando que o material que está no cerne da questão serviu a subsidiar o procedimento do cade. Fato confirmado.”

Em outro diálogo, o MPF interfere na negociação de acordo de leniência da Galvão com a CGU. “Por sugestão nossa, a CGU exigiu que a Galvão liberasse os emails da apreensão da Galvão Participações e apresentasse provas contra os dirigentes. A CGU também pediu afastamento dos dirigentes (estão pedindo sempre). A empresa parece que não vai dar seguimento”, escreveu o procurador Paulo Galvão em 7 de dezembro de 2015.

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