Batalha lusitana

Tribunal português anula processo por seis crimes contra José Sócrates

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21 de março de 2024, 21h18

Quando se altera a acusação, é preciso assegurar ao réu a oportunidade de se manifestar sobre as mudanças, de forma a garantir o contraditório e a ampla defesa.

José Sócrates, ex-primeiro-ministro de Portugal, venceu recurso

Com esse entendimento, o Tribunal da Relação de Lisboa aceitou recurso do ex-primeiro-ministro de Portugal José Sócrates e anulou a decisão de pronúncia contra o político por acusação de três crimes de lavagem de dinheiro e três de falsificação de documentos. A corte também cassou as medidas cautelares impostas a Sócrates.

Em Portugal, o juiz profere a decisão de pronúncia ao término da instrução processual, quando conclui que há indícios suficientes para o acusado ser submetido a julgamento. Após esse despacho, o julgador da instrução deixa o caso, e outro juiz será responsável pela sentença — modelo semelhante ao juiz das garantias, cuja implementação está sendo planejada no Brasil pelo Conselho Nacional de Justiça.

O Tribunal da Relação de Lisboa entendeu que, na decisão de pronúncia, o juiz Ivo Rosa exerceu o papel do Ministério Público e promoveu uma alteração substancial dos fatos da acusação, sem permitir que a defesa de Sócrates se manifestasse sobre as mudanças.

Na denúncia, o MP afirmou que Carlos Santos Silva era um laranja do ex-primeiro-ministro. Porém, o juiz apontou que ele era corruptor ativo de Sócrates.

O ex-governante ainda responde na Justiça por outros 22 crimes.

Processo do espetáculo

“Eles sabem como ferir. Com prévia convocatória às televisões, a detenção constituiu o primeiro andamento de uma deliberada encenação mediática. Desafiando a inteligência de quem a tudo assistiu, justificam-na com o ‘perigo de fuga’, tentando esconder o que é óbvio: eu vinha a entrar no país, não a sair.”

O relato é do próprio José Sócrates, que foi preso no aeroporto de Lisboa em 21 de novembro de 2014, quando voltava de Paris ao seu país natal. Ele iria se apresentar à Justiça, mas não teve tempo: ela foi buscá-lo no aeroporto com luzes, câmeras e ação, exatamente como em muitas das “operações” espetaculosas deflagradas pela Polícia Federal brasileira por determinação judicial. Do aeroporto, foi levado diretamente para a detenção, de onde saiu somente depois de 11 meses.

Enquanto esteve preso, Sócrates escreveu parte de Só Agora Começou, livro no qual, além de se defender das acusações de que foi alvo, faz sólidas críticas ao sistema de Justiça Penal português — e também ao brasileiro. Na primeira parte, o autor intercala dois momentos narrativos: trechos de textos escritos no confinamento e pensamentos colocados no papel quase quatro anos depois, já longe do calor dos acontecimentos. Os questionamentos aos estratagemas de investigações, à superexposição de réus e aos métodos da imprensa fundem os dois tempos em um só.

A viagem pela prisão e pelas memórias de José Sócrates é também uma viagem pelo Brasil. Lá, o ex-primeiro-ministro acusado de corrupção. Aqui, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Lá, “operação marquês”. Aqui, “lava jato”. Lá, Carlos Alexandre, o juiz herói. Aqui, Sergio Moro. Lá e aqui, dois ex-líderes muito comemorados no passado recente são presos ainda sem condenação definitiva. Lá como cá, membros do Ministério Público alçados à posição de astros. Lá e aqui, a queda dos heróis, junto com suas investigações e suas tão novas quanto breves biografias. Em Portugal e no Brasil, o show de parte do Judiciário acabou cedendo diante da real Justiça.

É impossível escapar à analogia entre as “operações” “marquês” e “lava jato” — até porque o próprio autor faz diversos paralelos. Mas as semelhanças são tantas que, muitas vezes, é necessário voltar um pouco para refrescar a memória. “Afinal, ele está falando de Moro ou de Alexandre?”. O fato de José Sócrates ter colocado o ponto final em seu livro em setembro de 2018 não causa nenhum ruído na narrativa. Ao contrário, as histórias contadas parecem prever o desfecho, adivinhar os fatos que todos vimos se desenrolarem depois, como se fosse inevitável.

Lá, Carlos Alexandre foi afastado do processo e seu substituto, o juiz Ivo Rosa, absolveu José Sócrates das acusações de corrupção. Aqui, o Supremo Tribunal Federal julgou o juiz Sergio Moro incompetente e parcial, e, consequentemente, anulou as duas condenações penais do ex-presidente Lula. As duas decisões, em Portugal e no Brasil, terem sido tomadas em abril de 2021, com alguns dias de diferença entre elas, é apenas mais uma na miríade de semelhanças entre os dois casos.

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