Opinião

Temos enfrentado da melhor forma o fanatismo político-religioso?

Autores

  • João Vitor Gomes Corrêa

    é advogado do Vinhas Menezes Netto Advogados nas áreas eleitoral e criminal e especialista em direito processual.

  • Tiago Cação Vinhas

    é advogado sócio do Vinhas Menezes Netto Advogados mestre e doutor em Direito Comercial pela Universidade de São Paulo (USP) professor de Direito Civil e Empresarial na Faculdade de Ensino Superior de Linhares (Faceli).

25 de março de 2024, 15h10

Summum ius, summa iniuria [1]
(brocardo latino)

Uma das grandes vantagens dos artigos de opinião é que podemos imaginar cenários e trabalhar hipóteses com mais liberdade do que em artigos científicos, além de poder propor ideias mais ousadas do que o usual. Este é um artigo de opinião e, portanto, deve ser considerado uma provocação ao debate.

Sabemos o que ocorreu no 8/1/2023, em Brasília, e suas implicações. Todos sabem também que, atualmente, estão sendo condenadas as primeiras pessoas pela participação naquele malfadado evento.

Ao longo dos próximos parágrafos será exposta uma ideia um pouco diferente da usual, qual seja, a de que o Direito Penal não sabe como lidar com pessoas que, embora tenham sido, sim, cooptadas por um ideário golpista, não raciocinaram sobre isso de forma consciente.

Pelo contrário, talvez estejamos lidando com pessoas que, momentaneamente, perderam a capacidade de pensar logicamente e assumiram uma visão de mundo que não corresponde à realidade. Em outras palavras, podemos estar punindo, de forma inadequada, uma legião de pessoas doentes, mentalmente incapacitadas e contaminadas pelo fanatismo político-religioso.

Não é exagero. Afinal, o que faria uma pessoa normal, alguém que nunca foi de extremos, isolar-se de seus familiares, amigos, colegas, deixar tudo para trás e embarcar numa jornada sem volta para a capital da nação, prometendo para si mesmo e para outros que iria libertar o país? A resposta para isso naturalmente terá um elemento metafísico e trabalhará com aspectos envolvendo a religião.

Mistura de fanatismo com política

De fato, como se sabe, a religião, em um sentido amplo, é um tema muito amplo e pleno em polêmicas na vida em sociedade, e cada indivíduo encara a religião de uma forma bastante particular. Tanto é assim que não é raro conhecermos alguém mais próximo da religião e que a trata como um propósito de vida, uma razão de existência. Quando é assim, proteger essa razão fica acima de qualquer coisa.

Essa proteção não é limitada somente a um debate social. Por vezes, repelir de forma violenta os inimigos da fé passa a ser uma opção a ser considerada. Quando o inimigo da fé é encarnado em uma figura real, um rosto ou rostos, e até mesmo em uma instituição ou um partido político, esse comportamento tende a se intensificar.

Reprodução X

Não somos os primeiros a identificar no bolsonarismo uma junção entre uma doutrina teológica, principalmente o neopentecostalismo, com uma ideia política. Nesse contexto, Bolsonaro passa a ser o protetor da fé cristã e do modo de vida cristão, e isso é pregado por seus apoiadores, sem qualquer pudor ou filtro.

Há, portanto, uma perigosa mistura de elementos que deveriam manter certa distância entre si. De um lado a religião, razão de ser de muitos, e do outro a política, a arte de convencer pessoas a acreditar em uma causa. É como jogar água em uma panela de óleo fervente. E essa mistura de fanatismo com política, feita pelo bolsonarismo, já foi analisada direta ou indiretamente em vários trabalhos, de várias áreas diferentes.

A religião do bolsonarismo

Em 2018, Tiago Luiz Pavinatto Gonçalves defendeu em sua tese de doutorado [2] que o fanatismo religioso pode levar uma pessoa a ser considerada parcialmente incapaz para alguns aspectos da vida civil, seja pelo fanatismo causado por uma doença psicológica preexistente ao condicionamento religioso e que se desenvolveu ao longo de um processo, ou pelo próprio sugestionamento constante causado pelos líderes religiosos.

O teólogo Yago Martins, em seu livro A Religião do Bolsonarismo [3], descreveu a forma como agentes políticos usaram a religião para sacramentar Jair Bolsonaro não somente como um candidato à presidência que estava alinhado com os cristãos (principalmente os evangélicos), mas como um defensor santo da fé cristã.

Da mesma forma, o artigo científico de Paulo Gracino Junior, Mayra Goulart e Paula Frias [4] descreve, do ponto de vista sociológico, o mesmo processo de tomada dos símbolos religiosos pelo bolsonarismo.

Trata-se de uma mensagem poderosa que tira as pessoas da realidade e as leva para uma “guerra santa”, que deixa de ser uma disputa de planos de governo e passa a ser uma luta contra o inimigo, contra o mal, contra Satã.

 Imputabilidade penal de um fanático

Ora, se o processo histórico do bolsonarismo comprova a sua aliança com as denominações evangélicas e o processo de radicalização religiosa, para o Direito Civil, pode gerar incapacidade, por que tratarmos os casos de forma diferente no Direito Penal?

Nesse sentido, talvez seja possível considerar que os participantes do 8/1/2023 sejam pessoas que estavam fora de suas plenas faculdades mentais, fanatizadas, como sintoma do processo de radicalização política causada pela união macabra do bolsonarismo com denominações evangélicas.

A exposição feita até aqui é a premissa de um raciocínio que tem como objetivo discutir, de forma propositiva, o grau de imputabilidade penal de um fanático político-religioso.

Vejamos o que diz o artigo 26 do Código Penal:

“Art. 26 – É isento de pena o agente que, por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, era, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento.

Parágrafo único – A pena pode ser reduzida de um a dois terços, se o agente, em virtude de perturbação de saúde mental ou por desenvolvimento mental incompleto ou retardado não era inteiramente capaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento” [5].

Assim, ao menos no que diz respeito às pessoas que estavam doentes e tiveram o seu estado mental piorado durante o processo de “bolsonarização”, é possível verificar que elas já possuem direito ao reconhecimento da inimputabilidade. Inclusive, como explica Cleber Masson,

“A expressão doença mental deve ser interpretada em sentido amplo, englobando os problemas patológicos e também os de origem toxicológica. Ingressam nesse rol (doença mental) todas as alterações mentais ou psíquicas que suprimem do ser humano a capacidade de entender o caráter ilícito do fato e de determinar-se de acordo com esse entendimento” [6].

Contudo, as definições tendem a ser mais cinzentas quando estamos diante de uma pessoa que foi condicionada a adotar certo comportamento e visão de mundo ao ponto de perder o contato com a realidade.

Definitivamente, trata-se de uma pessoa doente, que pode ter perdido a capacidade de julgamento perfeito, adotando comportamentos que fazem sentido apenas dentro daquele grupo a que ela pertence ou almeja pertencer.

Perturbação mental como atenuante

Spacca

Da mesma maneira com que soldados japoneses eram convencidos a jogar seus aviões em navios inimigos durante a Segunda Guerra Mundial, podemos estar diante de um processo similar de condicionamento mental, em que um grupo de pessoas foi sugestionado a pensar que o Brasil estava diante de uma ameaça satânica e comunista, por mais que isso não faça o menor sentido para quem não se encontra dentro desse grupo.

Essas pessoas farão de tudo para conter essa ameaça imaginária, mesmo estando aptas para todas as outras atividades do cotidiano.

De fato, tais pessoas muito provavelmente jamais matariam alguém por uma dívida ou por infidelidade, mas não hesitaram em marchar para Brasília para combater os inimigos da fé — que, por mera coincidência, eram os mesmos que derrotaram Jair Bolsonaro no pleito de 2022. A religião, envenenada pela política, foi o gatilho para que essas pessoas passassem a adotar um comportamento militante completamente diferente do usual em suas vidas.

Essa perturbação mental pode ser contemplada por uma atenuante penal que, caso devidamente comprovada,

“Não deixa de ser também uma forma de doença mental, embora não retirando do agente, completamente, a sua inteligência ou a sua vontade. Perturba-o, mas não elimina a sua possibilidade de compreensão, motivo pelo qual o parágrafo único do art. 26 do Código Penal tornou a repetir o “desenvolvimento mental incompleto ou retardado”, bem como fez referência a não ser o agente inteiramente capaz de entender o caráter ilícito do fato ou mesmo de determinar-se de acordo com tal entendimento. São os denominados fronteiriços ou limítrofes” [7].

Há base legal para esse entendimento, na medida em que o parágrafo único do artigo 26 do Código Penal também contempla as perturbações mentais que prejudicam a saúde do agente ao trazer a expressão “em virtude de perturbação de saúde mental”. Claramente faz-se referência às situações em que não há uma patologia, mas sim uma perturbação que retira do agente, ainda que parcialmente, o juízo perfeito.

Por essa razão, pessoas nessas condições recebem um tratamento diferente e, por isso, podem receber uma redução de suas penas, ou ser direcionadas a um tratamento destinado a superar os males causados pelo condicionamento. Guilherme Nucci esclarece:

“Nesse caso, não há eliminação completa da imputabilidade; logo, pode o agente sofrer o juízo de reprovação social inerente à culpabilidade, embora o juiz seja levado a atenuar a censura feita, reduzindo a pena de 1/3 a 2/3.

Além disso, caso a perturbação da saúde mental (como dissemos, uma forma de doença mental) seja intensa o suficiente, de modo a justificar um especial tratamento curativo, o magistrado ainda pode substituir a pena privativa de liberdade por medida de segurança (internação ou tratamento ambulatorial), conforme preceitua o art. 98 do Código Penal” [8].

Greco também explica de forma semelhante:

“A diferença básica entre o caput do art. 26 e seu parágrafo único reside no fato de que, neste último, o agente não era inteiramente capaz de entender a ilicitude do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento. Isso quer dizer que o agente pratica um fato típico, ilícito e culpável. Será, portanto, condenado, e não absolvido, como acontece com aqueles que se amoldam ao caput do art. 26. Contudo, o juízo de censura que recairá sobre a conduta do agente deverá ser menor em virtude de sua perturbação da saúde mental ou de seu desenvolvimento mental incompleto ou retardado, razão pela qual a lei determina ao julgador que reduza a sua pena entre um a dois terços” [9].

Da mesma forma, Ronaldo Tanus Madeira:

“No parágrafo, uma diferenciação terminológica em que o legislador fala em ‘perturbação da saúde mental’, e não em ‘doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, como vem escrito no caput do referido artigo, quer demonstrar que o parágrafo único do art. 26 cuida das hipóteses de certos tipos de enfermidade mental ou psíquica que não retiram do agente de forma total, plena a capacidade de entendimento e autodeterminação. Ao contrário, são certos tipos de doença ou enfermidade mental que apenas reduzem ou diminuem no agente a capacidade de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento” [10].

Nesse contexto, é possível concluir que as elevadas penas atribuídas aos participantes dos eventos do 8/1/2023 podem não ser as adequadas ao caso, já que se trata de pessoas que foram condicionadas a agir daquela forma para além de sua vontade, embora não tenham perdido toda a consciência do que estava sendo feito.

Excesso de Direito

Não há como dizer que os participantes do 8/1/2023 estavam com suas faculdades mentais em pleno funcionamento. Testemunhamos pessoas que cantaram o Hino Nacional em volta de um pneu, que abandonaram suas famílias para acampar em quartéis, que fizeram sinais para o céu esperando alguma resposta vinda do espaço e que se penduraram em caminhões.

Por trás desses atos tragicômicos há uma triste constatação: nenhuma dessas pessoas sabia exatamente o que estava fazendo, e foram para as ruas lutar contra gigantes que, na realidade, eram moinhos de vento [11] .

Ponderamos que talvez as cadeias não sejam o lugar adequado para essas pessoas, e que talvez as elevadas penas não sejam proporcionais ao dano que já foi causado em suas mentes. Torna-se necessário — e humano — que a Psicologia e a Medicina ajam antes do Direito, porque a ânsia de punir não pode ser maior do que a vontade de restaurar essas pessoas. Reitere-se que essas pessoas estão longe de ser criminosos habituais, pois apenas se perderam e foram usadas por outras que, até o momento, não receberam punição alguma.

É aos arquitetos do golpe de Estado que devem ser destinadas as mais duras penas da lei, para que sirvam de exemplo. Porém, para os participantes do 8/1/2023, o Direito Penal deve ser utilizado como uma forma de fazer essas pessoas voltarem à normalidade, com penas proporcionais. Fazer de outra forma é, como alerta a epígrafe deste ensaio, utilizar do Direito e cometer injustiças.

 


Referências:

1. Código Penal. Decreto – Lei Nº 2.848/40. Disponível em: < https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm >. Acesso em 03.03.2024.

2. DE CERVANTES, Miguel. Don Quixote de la Mancha. Aegitas, 2015.

3. GONÇALVES, Tiago Luís Pavinatto. Da condição do fanático religioso no Direito civil. 2018. Tese de Doutorado. Universidade de São Paulo.

4. GRACINO JUNIOR, Paulo; GOULART, Mayra; FRIAS, Paula. “Os humilhados serão exaltados”: ressentimento e adesão evangélica ao bolsonarismo. Cadernos Metrópole, v. 23,2021.

5. GRECO, Rogério Curso de direito penal: volume 1: parte geral: arts. 1º a 120 do Código Penal / Rogério Greco. – 24. ed. – Barueri [SP]: Atlas, 2022.

6. MADEIRA, Ronaldo Tanus. A estrutura jurídica da culpabilidade. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1999.

7. MASSON, Cleber. Direito Penal: parte geral (arts. 1º a 120) – V. 1 / Cleber Masson. – 14. ed. – Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2020.

8. MARTINS, Yago. A religião do bolsonarismo: Yago Martins, São Paulo: ed. Episteme, 2021,

9. NUCCI, Guilherme de Souza Manual de direito penal : volume único / Guilherme de Souza Nucci. – 19. ed.- Rio de Janeiro : Forense, 2023.

[1] Em tradução livre, “excesso de Direito, excesso de injustiça”.

[2] GONÇALVES, Tiago Luís Pavinatto. Da condição do fanático religioso no Direito civil. 2018. Tese de Doutorado. Universidade de São Paulo.

[3] “Essas divinizações não foram mera ferramenta em busca de votos, mas permaneceram como parte da narrativa de validação do governo após as eleições. Roberto Jefferson, presidente do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), foi ainda mais longe nas metáforas religiosas quando postou dia 21 de julho de 2020 no Twitter que a direita está unida por Cristo. Ele também fez um paralelo constrangedor com a doutrina cristã da Trindade: “Sentada à direita de DEUS PAI todo-poderoso. Nossa trindade é Pai, Filho e Espírito Santo. Messias Bolsonaro é nosso Líder. Devemos poupá-lo e lutar por ele. Nós brigamos, ele governa. Trindade; ele é o líder, nós os liderados. O céu [é] nosso teto”. Nessa pantomima, Bolsonaro seria o Deus Pai de uma trindade política em que os outros políticos menores seriam inferiores e subordinados – o que corrompe o próprio significado teológico de Trindade. Em almoço com artistas no dia 28 de janeiro de 2021, antes de Bolsonaro mandar jornalistas “enfiar no rabo” latas de leite condensado (o governo estava sendo questionado por gastar R$ 15 milhões com leite condensado), Roberto Jefferson comparou aquela refeição com o presidente à Eucaristia, a Santa.4 Ceia cristã onde a presença de Cristo é recebida em um momento de alimentação com pão e vinho simbolizando o corpo e o sangue de Jesus. Além disso, cantou o famoso louvor cristão Agnus Dei, cuja letra diz: “Aleluia / Santo, santo / É o Senhor Deus poderoso / Digno de louvor / Tu és santo, santo”, em louvor ao próprio presidente. Ele mesmo declara sua intenção ao compartilhar a filmagem no seu Twitter, dizendo: “Agnus Dei, Aleluia em louvor ao Presidente Bolsonaro”. Como o presidente pode estar sendo louvado com uma canção sobre a santidade de Deus?” MARTINS, Yago. A religião do bolsonarismo. São Paulo: Episteme, 2021. p.9.

[4] GRACINO JUNIOR, Paulo; GOULART, Mayra; FRIAS, Paula. “Os humilhados serão exaltados”: ressentimento e adesão evangélica ao bolsonarismo. In: Cadernos Metrópole, v. 23, 2021. p. 547-580.

[5] BRASIL. Código Penal. Decreto – Lei Nº 2.848/40. Disponível em: < https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm >. Acesso em 03.03.2024

[6] MASSON, Cleber. Direito Penal: parte geral (arts. 1º a 120). V. 1. 14. ed. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2020. p. 389.

[7] NUCCI, Guilherme de Souza Manual de direito penal: volume único. 19. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2023. p. 513.

[8] NUCCI, Guilherme de Souza Manual de direito penal: volume único. 19. ed.- Rio de Janeiro: Forense, 2023. p. 514.

[9] GRECO, Rogério. Curso de direito penal: volume 1: parte geral: arts. 1º a 120 do Código Penal. 24. ed. – Barueri: Atlas, 2022. p. 981

[10] MADEIRA, Ronaldo Tanus. A estrutura jurídica da culpabilidade. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1999, p. 115-116

[11] DE CERVANTES, Miguel. Don Quixote de la Mancha. Aegitas, 2015.

Autores

  • é advogado associado ao Vinhas Menezes Netto Advogados nas áreas eleitoral e criminal, especialista em Direito Processual e palestrante.

  • é advogado sócio do Vinhas Menezes Netto Advogados, mestre e doutor em Direito Comercial pela Universidade de São Paulo (USP), professor de Direito Civil e Empresarial na Faculdade de Ensino Superior de Linhares (Faceli).

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