Norma controversa

Judiciário usa controle difuso para conceder progressão sem exame criminológico

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9 de maio de 2024, 8h52

Ministros, desembargadores e juízes de primeira instância estão autorizando progressões de regime sem que os presos sejam obrigados a passar por exame criminológico. A exigência do laudo consta na recém-sancionada Lei 14.843/2024, cujo objetivo principal era proibir as saídas temporárias, popularmente conhecidas como “saidinhas”.

Trecho da nova lei tem provocado decisões conflitantes no Judiciário

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) vetou o trecho do texto que barra as saidinhas, mas a obrigatoriedade do exame criminológico para a progressão de regime foi mantida.

A obrigação, que havia sido extinta em 2003 e agora está de volta, causa controvérsia. Criminalistas consideram que ele é inviável e tende a barrar a progressão, uma vez que o Estado não tem condições de promover os exames para todos os presos que têm direito ao benefício.

E o próprio ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski, falou em um evento sobre o custo elevado do exame, que consiste em uma avaliação psicológica para avaliar se o condenado tem chances de cometer novos crimes caso passe para o regime aberto ou o semiaberto.

Juízes consideram inconstitucional

Embora a lei tenha sido sancionada há menos de um mês, já começaram a surgir decisões contra a necessidade do exame. Em uma delas, o juiz André Luís Bastos, do Departamento Estadual de Execução Criminal da 10ª Região, em Sorocaba (SP), afirmou que a medida é “incidentalmente inconstitucional” (clique aqui para ler a decisão).

De acordo com ele, a nova obrigação fere o princípio constitucional da individualização da pena, uma vez que impõe “genérica e indistintamente” o exame criminológico a todos os reeducandos, “em flagrante desprezo à análise individual e concreta de cada caso, de acordo com a natureza do crime, e, especialmente, histórico carcerário do indivíduo”.

“Em que pese o posicionamento sustentado pelo Parquet, este magistrado entende incidentalmente inconstitucional a nova redação conferida ao artigo 112, §1º, da Lei de Execução Penal, acrescentado pela Lei nº 14.843/2024, tendo em vista que fere o princípio constitucional da individualização da pena”, sustentou o julgador.

Já o juiz Davi Marcio Prado da Silva, do Departamento Estadual de Execução Criminal da 3ª Região, em Bauru (SP), citou trecho da Súmula Vinculante 26 do Supremo Tribunal Federal, que considera inconstitucionais situações em que o princípio da individualização da pena deixa de ser observado (clique aqui para ler a decisão).

“A exigência indiscriminada e abstrata, sem fundamentação idônea e sem a indicação de base empírica que revele elementos concretos de gravidade, personalidade ou outras circunstâncias recentes, que em tese, possam vir a desabonar a progressão de regime, viola o texto constitucional, com o qual se incompatibiliza a exigência indiscriminada de realização prévia de exame criminológico”, afirmou ele na decisão.

O juiz citou como precedente a Reclamação 29.527, em que a 2ª Turma do Supremo entendeu que decisões que determinam o exame criminológico como condição para a progressão de regime violam a Súmula 26.

Outra sentença contra a obrigatoriedade foi dada pela juíza Renata Biagioni, também de Bauru, que foi mais uma a alegar violação à Súmula 26 (clique aqui para ler).

“A novel previsão legislativa, a despeito de expressar aparente prestígio à individualização da pena, ao tornar o exame condicionante prévia da progressão (o novo texto não contempla sequer a expressão ‘quando necessário’, contida no texto original do art. 112 da LEP), importa em verdadeiro desprestígio ao sistema progressivo, e, consequentemente, ao princípio da individualização da pena”, disse ela.

Irretroatividade

O juiz José Roberto Bernardi Liberal, do Departamento Estadual de Execução Criminal da 6ª Região, em Ribeirão Preto (SP), analisou um caso parecido por outro ângulo.

Ele entendeu que a nova norma só pode ser aplicada contra condenados por crimes que foram praticados depois da entrada em vigor da lei.

Quanto aos demais casos, inclusive no que se refere a pedidos de progressão feitos depois de a norma passar a vigorar, cabe a regra anterior da Lei de Execuções Penais, segundo o julgador. Ou seja, não há a obrigatoriedade do exame (clique aqui para ler a decisão).

“A regra prevista no artigo 122, parágrafo 2º, da Lei de Execução Penal, com redação dada pela Lei nº 14.843/2024, aplica-se somente aos condenados que cometeram infração penal a partir da sua vigência; quanto aos demais, incide a regra anterior”, afirmou Liberal.

Controle difuso

Conforme explicou à revista eletrônica Consultor Jurídico a constitucionalista Vera Chemim, os juízes de primeira instância podem contrariar trechos de uma norma por meio do chamado controle difuso de constitucionalidade.

O controle difuso não se destina especificamente a declarar a inconstitucionalidade de uma norma, mas apenas a afastar a sua incidência em um caso concreto, segundo a constitucionalista.

“Diferentemente do controle abstrato (ou concentrado) de constitucionalidade, em que o colegiado do STF ou do STJ, por exemplo, tem competência para declarar a inconstitucionalidade de uma norma jurídica, o controle difuso tem natureza subjetiva (envolve pessoas) e, portanto, limita-se a analisar o caso concreto por meio de um juiz ou tribunal.”

A inconstitucionalidade de uma norma só pode ser declarada pelos órgãos colegiados do Judiciário elencados no artigo 92 da Constituição, e a partir do voto da maioria de seus integrantes.

Assim, por exemplo, o Supremo Tribunal Federal pode declarar a inconstitucionalidade de parte ou de toda uma lei federal com base na Constituição. Tribunais de Justiça, por outro lado, podem fazer o mesmo quanto a uma lei estadual.

“O juiz singular, por outro lado, só poderá solucionar a demanda, sem declarar a inconstitucionalidade de parte da Lei das Saidinhas, a depender da sua interpretação sobre cada caso concreto”, explica Vera Chemim.

No TJ-SP, entendimentos conflitantes

No Tribunal de Justiça de São Paulo há decisões conflitantes sobre o tema, com diferentes marcos temporais utilizados para manter ou derrubar a progressão de regime.

No último dia 3, por exemplo, a 7ª Câmara de Direito Criminal da corte paulista aplicou a nova lei ao dar provimento a um recurso interposto pelo MP em março — antes, portanto, da vigência da norma, que é de 11 de abril. O MP pediu a anulação de uma progressão de regime sem exame concedida em primeira instância.

No acórdão, a fundamentação é toda baseada na lei deste ano. “Com o advento da Lei nº 14.843/24, a realização de exame criminológico que antes era facultativa e demandava justificativa no caso concreto passou a ser obrigatória”, sustentou o desembargador Mens de Mello, relator do caso.

“Em se tratando de norma processual, vige o princípio tempus regit actum, ou seja, aplica-se de imediato aos feitos em andamento”, prosseguiu o desembargador ao votar pela derrubada da progressão de regime solicitada pelo preso (clique aqui para ler o acórdão).

Já a 12ª Câmara de Direito Criminal do TJ-SP decidiu em sentido oposto em outro caso. Em 29 de abril, o colegiado deu provimento a um recurso apresentado por um condenado que teve a progressão de regime negada em primeira instância.

Em seu voto, o desembargador Amable Lopez Soto entendeu que a nova lei não pode ser aplicada nas progressões de regime solicitadas antes da entrada em vigor da norma (clique aqui para ler o acórdão).

“A exigência de exame criminológico, que antes era mera faculdade a ser avaliada no caso concreto, afigura-se mais gravosa ao sentenciado e, portanto, não pode retroagir para alcançar pedido de progressão anteriormente formulado, caso dos presentes autos.”

STJ começa a receber casos

A discussão já chegou ao Superior Tribunal de Justiça, onde também há entendimentos divergentes sobre o tema. Em 23 de abril, a ministra Daniela Teixeira concedeu, de ofício, ordem em Habeas Corpus para autorizar uma progressão de regime sem exame mesmo com a nova lei já em vigência.

“Apesar da recente Lei 14.843/24 ter incluído o §1º ao art. 112 da Lei de Execução Penal (…), ela só entrou em vigor em 11 de abril de 2024 e o pedido formulado pelo paciente foi em 17 de janeiro de 2024. Portanto, a nova lei, mais grave, não pode retroagir para prejudicá-lo”, escreveu a ministra (clique aqui para ler a decisão).

O ministro Reynaldo Soares da Fonseca, por sua vez, entendeu de maneira diferente no julgamento de outro caso. “Não há como se desconsiderar a recente alteração legislativa promovida pela Lei 14.843/2024, que dentre as modificações promovidas na Lei de Execução Penal, passou a considerar obrigatória a realização do exame criminológico para aferir o direito do executado à progressão de regime” (clique aqui para ler a decisão).

“A decisão de 1º grau aqui atacada data de 23/04/2024, quando já havia entrado em vigor a Lei n. 14.843/2024, e é plausível supor que, mesmo não tendo feito alusão expressa à nova norma legal, tenha sido esse o mote que levou o Juízo de Execução a reiterar a necessidade do exame, tanto mais quando se sabe que todas as leis são dotadas de presunção de constitucionalidade.”

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