Embargos Culturais

Os pais fundadores do Direito Tributário brasileiro (1): o Visconde de Cairu

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente pela USP doutor e mestre pela PUC- SP e advogado consultor e parecerista em Brasília ex-consultor-geral da União e ex-procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

17 de março de 2024, 8h00

José da Silva Lisboa, o Visconde de Cairu, contava mais de 50 anos quando a família real portuguesa chegou no Brasil, em 1808. Foi o mais intransigente defensor do decreto de abertura dos portos às nações amigas, que influenciou diretamente a Inglaterra.

Entusiasta da abertura comercial, bem como da influência inglesa, recorrentemente referia-se à Inglaterra, com muita admiração. Foi um grande agitador de novas ideias econômicas, na opinião de Sérgio Buarque de Holanda.

O Visconde de Cairu protagonizou importante papel na construção do Estado português no Brasil, aconselhando e trabalhando intensamente com os dirigentes que fugiam da Europa. A Família Real portuguesa deixou Portugal e rumou para o Brasil no contexto histórico das guerras napoleônicas. Pode-se indicar, nesse movimento, um primeiro passo decisivo para a implantação de um Estado brasileiro. Constata-se transposição que também era institucional e normativa.

Liberalismo na versão original

Cairu identificava no modelo comercial e industrial uma senda a ser seguida. O Brasil deveria se industrializar. Em vários textos, especialmente nas Observações sobre o Comércio Franco no Brasil, fez-se apólogo das fórmulas britânicas. Insistia na abertura comercial, observando que se o polo ártico se fechasse à humanidade, nos seria aberto o antártico. Para Cairu o comércio fomentaria a produção e, nesse sentido, todas as dificuldades deveriam ser enfrentadas.

Defendia política de preço justo, que promoveria o incremento dos negócios. Era seguidor de Adam Smith cujas linhas conceituais balizavam o seu pensamento. Cairu insistia um preço natural, que garantiria justiça, realidade e factibilidade, condição para o desenvolvimento de modelo econômico centrado em interferência muito discreta do Estado.

Spacca

A abertura dos portos, como concebida por Cairu, obteve reflexos imediatos. Intensificaram-se as relações comerciais. Quebrou-se o embaraço que havia nas relações unilaterais com Portugal. Preconizava a existência de um Estado neutro, propulsor do desenvolvimento geral, por meio de atuação prudente. Ao mesmo tempo, apoiava o comércio internacional e o fim das discriminações. Potencializava a amizade — especialmente com parceiros econômicos —, afirmando que a amizade seria a grande e fundamental lei econômica do Criador.

Cairu defendia um comércio marcado por um espírito social, orientado para o benefício de todos, promovendo-se a paz e a proximidade entre os povos. Indiretamente aderia às máximas de Adam Smith, para quem os impostos deveriam ser aptos, probos, pouco numerosos e condignamente compensados. É o liberalismo em sua versão original, marcado por discurso otimista, e que teve na Inglaterra a grande defensora e a maior beneficiária. Criticava-se patriotismo pouco criterioso, que atribulava estrangeiros e que diminuía as possibilidades de inserção dos produtos nacionais em ambiente competitivo.

Inglaterra era privilegiada

Também defendeu as preocupações da Coroa Portuguesa, interessadíssima em maior vínculo comercial com a Inglaterra, como resultado de pressão que tinha origem na política internacional britânica. Não recomendava qualquer aproximação com a França. Para Cairu, simples e diretamente, o interesse de comerciarmos com os ingleses seria manifesto, justificado pelos benefícios que traria.

A Inglaterra era potência privilegiada nos negócios com o Brasil. D. João teria cogitado de um porto especial para navios ingleses, e que seria na ilha de Santa Catarina. Ingleses detinham também privilégios de jurisdição, na medida em que um tratado fixava um juiz conservador, escolhido pelos súditos britânicos que residissem no Brasil, e que julgaria as questões nas quais figurassem os referidos ingleses.

A opulência inglesa justificaria a aproximação que deveríamos buscar, da qual seríamos — na visão de Cairu — os grandes beneficiários.  Elogios aos ingleses eram explícitos, diretos, transbordavam. Cairu se mostrava como o grande defensor da Inglaterra, admirador ferrenho, propagandista entusiasmado. Cairu pranteava a indústria britânica, colecionava elogios para todos os aspectos que supostamente a marcariam. Desconsiderava o esforço e a violência do mecanismo financeiro em tempos de guerra, circunstância verdadeiramente aflitiva.

Indiferente para com inúmeros problemas sociais vividos na Inglaterra, vinculados à exploração da classe trabalhadora, insistia na capacidade produtiva dos ingleses. Para Cairu, ao que consta, não chegaram notícias ou previsões de que crianças de dois anos de idade lavariam os chãos das fábricas inglesas, ou de que crianças de três anos pregavam botões nas camisas produzidas nas indústrias empoeiradas da City.

A admiração de Cairu para com o povo inglês era muito eloquente. Não poupava elogios para a Inglaterra, potencializando aspecto curioso de nossa formação cultural, objetivamente marcada por colonialismo que via no europeu um referencial que deveria se perseguir, a qualquer custo, ainda que com exploração de nossos recursos. Os ingleses beneficiaram-se da abertura dos portos. O fato deu continuidade a uma política econômica marcada pela dependência, que persistiu intensamente ao longo de todo o período imperial e que persiste em boa parcela de nossa história republicana.

Cairu admirava tudo o que fosse inglês: governo, comércio, cultura, língua, organização, operosidade. Embora concedendo reservadamente que a Inglaterra não representava modelo ideal de perfeição social, o que contradizia os recorrentes elogios que fazia. Com base em Adam Smith, de quem era incondicional admirador, convencia-nos da adequação da aproximação com a Inglaterra, de tal modo atuando em favor de interesses da Inglaterra e — indiretamente — promovendo a política de D. João.

Para Cairu nosso destino era o comércio, para o qual natureza e vocação nos lançavam. De tal modo, era imperativo que nos aproximássemos da Inglaterra, de onde obteríamos energia, inspiração e motivação. Qualquer atitude de desconfiança para com a Inglaterra seria atitude reveladora da falta de patriotismo. Justificava inclusive o contrabando feito por alguns ingleses, invocando a inevitabilidade das consequências de um comércio aberto.

Profundo conhecedor da matéria fiscal

A contribuição de Cairu para a construção de uma doutrina do Direito Tributário brasileiro vincula-se às formas como entendia a possibilidade de utilização dos direitos de importação e de exportação, com vistas ao desenvolvimento da atividade industrial. Cairu intuía a função extrafiscal da tributação e, com base na experiência inglesa, defendia um modelo tributário que estimulasse a produção industrial, como indicadora da riqueza nacional.

Direitos de importação e de exportação consistiram na principal fonte de receita tributária até o início dos anos de 1930, quando a crise mundial afetou nossas exportações de café. Observe-se que os direitos de exportação, à época, República Velha, pertenciam às unidades federadas, e não à União, como presentemente se observa. Não se entenderia, de fato, que estados como São Paulo e Minas Gerais abdicassem de direitos sobre a exportação do café em favor da União, ainda que controlassem o governo central.

Cairu encontra-se na transição de um modelo protecionista baseado na fortíssima tributação da produção interna para um modelo livre de imposições metropolitanas. A exemplo de sua importância para o Direito Comercial brasileiro, suas intervenções, teóricas e práticas, em matéria de importação e exportação, revelam um profundo conhecedor de matéria fiscal.

 

Autores

  • é advogado em Brasília (Hage e Navarro), livre-docente pela USP, doutor e mestre pela PUC-SP, professor titular do mestrado e doutorado do UniCeub (Brasília) e professor visitante (Boston, Nova Délhi, Berkeley, Frankfurt, Málaga).

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