Viver outras vidas

Em livro premiado, defensora retrata processos como traumas

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10 de março de 2024, 15h41

Como forma de descontar em Madalena a inconformidade com seu destino e melhorar sua condição financeira, Ana, narradora do romance Não fossem as sílabas do sábado, de Mariana Salomão Carrara, move processo contra a amiga e vizinha, pedindo indenização pela morte de seu companheiro, André, causada pelo suicídio de Miguel, parceiro da primeira.

Mariana Salomão Carrara venceu o Prêmio São Paulo de Literatura 2023

Em reunião no escritório do advogado de uma delas, os dois defensores discutem um acordo quase sem olhar para as suas clientes. Tanto os olhos de Ana quanto os de Madalena se perdem na estante de livros do escritório, “livros intragáveis com títulos que aborreciam sem precisar chegar ao subtítulo, quando o leitor já estava completamente desmantelado de tédio ou desespero, como não se matam esses dois homens, perguntavam os meus olhos, os homens e as mulheres que leem esses livros”, questiona a narradora.

Mas ela percebe que os advogados “não devem ler estas coisas, apenas compram para nos impressionar, e então nos chamam aqui para um acordo, e nos distraem com o espetáculo hermético das suas leituras enquanto brincam de cabo de guerra, numa ponta não há dinheiro e na outra também não”.

No meio da discussão entre dois homens “visivelmente alterados”, Ana alcança os dedos de Madalena na mesa, as duas entrelaçam as mãos e choram, sem que os advogados percebessem nenhum dos gestos. “Era isso o processo, o processo estava funcionando, eles usavam palavras duras mas quase todas técnicas e não nos ofendiam”, aponta a narradora.

Ana desiste do processo, e Madalena assume, por sua iniciativa, o pagamento de diversas despesas ordinárias da amiga, como táxi, café, babá e, em épocas mais difíceis, até condomínio, telefone e plano de saúde.

Foi o segundo processo marcante da vida de Ana — o primeiro foi o da separação de seus pais. As duas ações são retratadas como traumas. Isso mostra como cada caso é importante para as partes, embora possa ser só mais um para os operadores do Direito, afirma Mariana Salomão Carrara — que é defensora pública de São Paulo na capital do estado, além de escritora.

“Ana tem uma visão de que o processo é separado da vida. Como se ela pudesse litigar com a vizinha, pedir uma indenização alta, e ao mesmo tempo continuar a amizade com Madalena. Ela colocou seu ódio no processo, até porque quem iria brigar por ela seriam os advogados. É quase como se o processo fosse um mundo paralelo, onde é possível resolver seus problemas sem afetar a sua vida ‘real’. Mas Madalena obviamente não encarou a situação dessa forma. No fim, o processo aliviou o ódio de Ana por Madalena, e elas se reconciliaram”, avalia Salomão Carrara.

“Eu participo de muitas audiências de assuntos de Direito de Família [área em que ela atua]. E percebo como as audiências são únicas para as pessoas que estão envolvidas no caso. As pessoas vão se lembrar delas para sempre, sobretudo se não for uma separação amigável, se tiver uma questão litigante. Já os operadores do Direito vão sair da audiência e ir para a próxima. Muitas vezes, eles acabam automatizando a situação, querendo agilizar os procedimentos. E, com isso, acabam violando as pessoas que estão envolvidas no processo. Por isso que quis fazer com que o processo de separação de seus pais tivesse sido tão marcante para Ana. E fala quase como se o pai estivesse se divorciando dela, e não de sua mãe”.

Livro premiado

Não fossem as sílabas do sábado foi o romance vencedor do Prêmio São Paulo de Literatura 2023. A obra conta a história de Ana e Madalena, que se aproximam (embora com idas e vindas) e tentam reconstruir suas vidas após as mortes de seus companheiros.

O enredo é construído em torno de personagens mulheres — além das duas protagonistas, há Catarina, filha de Ana, e Francisca, a babá dela. Os homens ou estão mortos (como André e Miguel) ou distantes (como o pai de Ana e Gil, o ex-melhor amigo dela).

Os livros da paulistana Mariana Salomão Carrara nascem a partir de ideias pontuais que fisgam sua atenção e vão crescendo com o passar do tempo. Não fossem as sílabas do sábado surgiu de uma necessidade da autora de falar de uma amizade profunda entre duas mulheres, que quase constituísse um vínculo familiar, mas em que uma delas (ou as duas) não estivesse se entregando totalmente à relação.

“É uma representação de como as pessoas vão deixando os vínculos de amizade em segundo plano, devido a um foco conjugal de vida. Essa ideia acabou se juntando à ideia da tragédia”, explica Salomão Carrara.

A paixão pela literatura surgiu quando ela era criança. Ao aprender a ler e escrever, passou a brincar de criar histórias. Entre os 17 e 18 anos, concluiu seu primeiro romance, Idílico (EI, 2007). Ele foi seguido por Fadas e copos no canto da casa (Quintal Edições, 2017), Se deus me chamar não vou (Editora Nós, 2019, que ficou entre os 10 indicados ao Prêmio Jabuti 2020) e É sempre a hora da nossa morte amém (Editora Nós, 2021, que foi finalista do Prêmio São Paulo 2022). Também é autora do livro de contos Delicada uma de nós (Off-Flip, 2015).

Não fossem as sílabas do sábado é o quinto romance da escritora

No fim do ensino médio, Salomão Carrara queria cursar Letras e ser professora de português. Mas acabou indo para o Direito, pelas possibilidades de carreira e pela segurança financeira. O começo da graduação, na Universidade de São Paulo, foi difícil. Ela preferia estudar outras matérias e não conseguia se enxergar trabalhando em carreiras jurídicas. Em 2006, foi criada a Defensoria Pública paulista. A possibilidade de ajudar a população carente a empolgou, e ela foi posteriormente aprovada em concurso da instituição.

Mesmo depois de firmar um objetivo profissional, Salomão Carrara nunca deixou de ter certeza de que seria escritora. “Eu poderia ser uma escritora sem sucesso, sem vendas, sem leitores, sem nada, mas ia continuar escrevendo”.

Não é fácil, mas ela vem conciliando as carreiras de escritora e defensora há 13 anos. No dia a dia, Salomão Carrara não consegue escrever. “É muito difícil chegar em casa da Defensoria, desligar dos problemas das pessoas e entrar no clima da ficção”. Então ela se dedica ao trabalho literário nos finais de semana, férias e recessos judiciários.

Durante esses períodos, a rotina de escrita não é rígida e compete com o lazer, especialmente encontros com amigos. Porém, Salomão Carrara dá um jeito de encaixar o trabalho literário nos dias. Para render, ela precisa se descolar do ambiente e criar um clima melancólico, que a desloca do pensamento pragmático para o artístico. Uma tática que usa para isso é ouvir músicas mais tristes e ler poemas, como os da brasileira Ana Martins Marques, ou trechos de romances que gosta, como os dos portugueses José Saramago e António Lobo Antunes. Outras inspirações dela são as escritoras Lygia Fagundes Telles e Elvira Vigna.

O próximo livro de Salomão Carrara, A árvore mais sozinha do mundo, está em fase de preparação e será publicado pela Todavia nesse ano. A obra aborda o universo de agricultores do Sul do país envolvidos no sistema de produção de tabaco.

Inspiração no Direito

Profissionais do Direito costumam se afeiçoar a uma linguagem empolada, hermética, antiquada. Porém, Mariana Salomão Carrara consegue blindar-se dessa praga. Tanto escrevendo petições de maneira objetiva e clara quanto com seu ritual de se desapegar do mundo do trabalho e entrar no clima literário.

“Os vícios de linguagem do mundo jurídico, o empolamento não são necessários. Quando entra um estagiário novo na Defensoria, a tendência dele é complicar a escrita. Aí eu peço para escrever da mesma forma que falaria para mim. E ele percebe que os floreios não são necessários. É possível aproximar a linguagem jurídica da linguagem comum”, opina.

Os casos que conduz e vivencia na Defensoria Pública não serviram de inspiração direta para os romances de Salomão Carrara — embora tenham sido a fonte de alguns contos de Delicada uma de nós. Mas ela quer escrever um livro sobre o que vê cotidianamente na instituição.

Ela acredita que o “exercício empático” das carreiras de escritora e defensora faz com que as duas carreiras se retroalimentem. Afinal, nas duas profissões, é preciso se entregar à humanização, “tentar viver a vida dos outros”. “Eu não sei que escritora eu seria se eu não fosse defensora. E não sei que defensora eu seria se eu não fosse escritora”.

O consumo frequente de literatura — e de arte em geral — é essencial para operadores do Direito, diz Salomão Carrara. “É um exercício contínuo de viver outras vidas, de se colocar no lugar de outras pessoas. Um juiz tem que se imaginar na posição do réu. Isso é imprescindível”.

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