Repensando as Drogas

Cabeça de Porco: da escravização às drogas

Autor

  • Felipe Morais Barbosa

    é graduado em Direito UFJF (pela Universidade de Juiz de Fora) pós-graduado em Direito pela Emerj (Escola de Magistratura do Rio de Janeiro). Mestre em Direito Constitucional pelo IDP (Instituto Brasileiro de Desenvolvimento e Pesquisa) pós-graduando em Jurisdição Penal Contemporânea e Sistema Prisional pela Enfam (Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados). Doutorando em Direito Constitucional pelo IDP. Juiz de Direito no TJ-GO (Tribunal de Justiça de Goiás). Autor do livro “Atitude suspeita — a seletividade na atuação da Polícia Militar e Poder Judiciário no combate ao narcotráfico".

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24 de maio de 2024, 12h24

A escravidão sempre existiu. A história comprova que, por diversos motivos, sociedades escravizavam os seus semelhantes e os demais povos. A etimologia demonstra que o termo original em latim é slavus, que remete aos eslavos, povos indo-europeus que habitam principalmente a Europa central e oriental, tais como poloneses, russos, sérvios, eslováquios.

Grandes monumentos foram construídos por intermédio do trabalho escravo, a exemplo das Pirâmides do Egito, Coliseu de Roma e a Muralha da China.

A escravidão é um fenômeno tão antigo quanto a história [1]. Da Babilônia ao Império Romano, da China Imperial ao Egito dos Faraós, desde os povos pré-colombianos da América, incontáveis seres humanos foram comprados e vendidos.

A escravização do europeu em África, contudo, possuí características peculiares. Nunca um povo tinha sido escravizado em razão da “cor” de sua pele. Era o início do subjugamento de forma sistemática do negro pelo branco. A escravidão africana é o grande sustentáculo do processo de colonização do continente americano, a partir do século 16.

O Brasil foi o país que mais recebeu escravos (cerca de 5 milhões) vindos principalmente do Congo e de Angola. Também é o Estado-nação que por mais tempo manteve a economia baseada no sistema escravagista. Além de ser o último país das Américas a abolir a escravidão.

A mão de obra africana esteve presente na exploração do pau-brasil, no ciclo da cana-de-açúcar, no ciclo do ouro, borracha, algodão e no ciclo do café. O Brasil adotou o sistema escravagista em toda a sua extensão territorial.

Foram mais de 300 anos de escravidão sistêmica. Construção de estruturas estatais, socioeconômicas, alicerçadas na exploração, imposição, privilégios, conceitos, preconceitos, e valorização da branquitude. Isso tem um peso na nossa história e não desaparece em um piscar de olhos. Ao contrário, as tensões sociais visam a manutenção do status anterior.

A abolição, infelizmente, não adveio de um ato heroico-humanitário. Ao contrário, fora resultado de pressões externas e um acordo de elites para manutenção das castas sociais. Em 1845 a Lei Inglesa — Bill Aberdeen — proibiu o tráfico de escravos pelo Atlântico. Paulatinamente, leis nacionais como a Lei Eusébio de Queirós (1850), Lei do Ventre Livre (1871), Lei dos Sexagenários (1885), restringiam a prática do tráfico negro. Em maio de 1888 fora promulgada a Lei Áurea.

Lei 601/1850

No país que mais recebeu escravos, os utilizou por mais tempo e em toda extensão territorial, a abolição não ocorreu mediante práticas sociais, assistenciais e/ou indenizatórias. Não houve reforma agrária. Ao contrário, no decorrer do processo, promulgou-se a Lei nº 601 de 18 de setembro de 1850 (Estatuto da Terra) que estabelecia o fim da apropriação de terras através do trabalho (sistema de sesmarias). A norma tinha uma finalidade específica: impedir que o negro virasse o dono da terra. Terra que fora ofertada ao imigrante branco europeu.

Imagem do Cabeça de Porco em 1880

O negro, ex-escravo, analfabeto, sem recursos, foi jogado a própria sorte. Não bastasse, o Código Penal dos Estados Unidos do Brasil de 1890 criminalizou a cultura negra e tudo que a circundava. As práticas da capoeiragem, do candomblé, do samba de terreiro, eram delituosas. A vadiagem também. Bastaria não conseguir trabalho (preferencialmente ofertado ao branco europeu em um processo de eugenização), sem ter recursos para se manter, que o negro “voltaria à senzala”. A lógica era elementar: vamos libertar para depois prender.

A recém-liberta população escrava, em busca de trabalho e meios de subsistência, migra para grandes cidades, principalmente a capital da época, o Rio de Janeiro. O movimento desordenado, tumultuado e não assistido pelo Estado, faz surgir os primeiros cortiços, espécies de habitações coletivas precárias de aluguel. O romance naturalista de Aluísio de Azevedo, publicado em 1890, “O Cortiço”, já denunciava a exploração e as péssimas condições de vida dos moradores destas construções cariocas.

Nas palavras de Azevedo [2]:

Entretanto, das portas surgiam cabeças congestionadas de sono; ouviam-se amplos bocejos, fortes como o marulhar das ondas; pigarreava-se grosso por toda a parte; começavam as xícaras a tilintar; o cheiro quente do café aquecia, suplantando todos os outros; trocavam-se de janela para janela as primeiras palavras, os bons-dias; reatavam-se conversas interrompidas à noite; a pequenada cá fora traquinava já, e lá dentro das casas vinham choros abafados de crianças que ainda não andam. No confuso rumor que se formava, destacavam-se risos, sons de vozes que altercavam, sem se saber onde, grasnar de marrecos, cantar de galos, cacarejar de galinhas. De alguns quartos saiam mulheres que vinham pendurar cá fora, na parede, a gaiola do papagaio, e os louros, à semelhança dos donos, cumprimentavam-se ruidosamente, espanejando-se à luz nova do dia.

A solução aristocrática, mais uma vez, fora fechar os olhos para aquela classe incômoda e por fim a este “entrave” ao desenvolvimento e progresso nacional. O slogan era “embranquecer” e “higienizar”. Os cortiços não eram bem-vindos. Tal fato é materializado com a derrubada, por ordem do prefeito do Rio de Janeiro, doutor Barata Ribeiro, do “Cabeça de Porco”, maior cortiço situado no centro da cidade. Os poucos pertences dos moradores, foram destruídos e vieram abaixo, junto ao cortiço. A zona sul e os jornais da época enalteciam o ocorrido.

De acordo com Chaloub [3]:

Em geral, as notícias sobre o episódio louvavam a decisão e a coragem do prefeito com alusões à mitologia greco-romana. Em estilo gongórico, bastante comum na imprensa do período, a Gazeta transfigurava o prefeito em Perseu, e o Cabeça de Porco em Cabeça de Medusa: assim, ficamos informados que a ação de Barata foi tão corajosa quanto a do filho de Júpiter, que viajou até as proximidades do inferno para dar cabo de um monstro de cabeça enorme e cabeleira de serpentes, temido pelos próprios imortais. Já no Jornal do Brasil, havia receio de que a estalagem fosse como “uma hidra igual à dos que nos fala a mitologia”. A hidra era uma serpente de múltiplas cabeças, cujo o hálito venenoso matava a todos os que dela se aproximavam. Se cortadas, estas cabeças tinham a propriedade de renascer. Ou seja, o Jornal do Brasil parecia temer que o Cabeça de Porco pudesse ressurgir. Na mitologia, a derrota da hidra foi um dos trabalhos de Hércules. A moral da história do JB é que o Barata Ribeiro, homem pequeno e magricela, devia ser um Hércules dos ‘novos tempos’, e sua missão era purificar a cidade, livrando-a definitivamente daquele mundo de imundície.

O Cabeça de Porco veio abaixo em 1893, e contava com quase 4.000 moradores [4].

A derrubada dos cortiços entremeados no centro da cidade maravilhosa, deu origem ao processo de favelização. Os “egressos” do Cabeça de Porco juntaram alguns tapumes, poucos pertences que restaram, e subiram o morro, criando a primeira favela carioca: Favela da Providência.

Hoje as favelas, ou comunidades, são grandes problemas nacionais. Sem infraestrutura e saneamento básico. A classe menos favorecida que lá reside, em sua maioria descendentes dos escravos, sem estudos, sem pertencimento, desassistida, em um país com aproximadamente 10 milhões de desempregados/desocupados, tenta sobreviver.

Contudo, parcela significativa das “castas superiores” e a formalização de um Estado policialesco, orientado, principalmente, pela doutrina da “guerra às drogas”, continua somente enxergando as favelas como um entrave ao desenvolvimento e progresso nacional. Elas enfeiam a paisagem. “Produzem” criminosos que incomodam o asfalto.

A resposta estatal, mais uma vez, não advém com políticas sociais inclusivas, como verificamos pós abolição da escravidão, mas, tão somente, com o Direito Penal. Criminalizemos o traficante, penalizemos o usuário. As retroescavadeiras que destroçaram os cortiços, hoje foram substituídas por blindados com plataformas giratórias de disparos de fuzil.

Não é preciso muito esforço para verificar que a simplista política de segurança pública, em especial voltada à “guerra às drogas”, não vem surtindo resultados satisfatórios de minimização da criminalidade. Por outro lado, levando-se em consideração o histórico de ações estatais contra as classes “subalternas”, elas cumprem perfeitamente o seu papel.

Nós, da zona sul, continuamos a aplaudir!

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[1]LAURENTINO, Gomes. Escravidão: do primeiro leilão de cativos em Portugal até a morte de Zumbi dos Palmares, volume 1. 1ª ed. Rio de Janeiro: Globo Livros, 2019.

[2] AZEVEDO, Aluísio. O cortiço. 3.ed. Jandira – SP: Principis, 2019.

[3] CHALHOUB, Sidney. Cidade Febril: cortiços e epidemias na corte imperial. São Paulo, Companhia das letras, 1996.

[4] Estado de Minas – CABEÇA DE PORCO.  Disponível em: <https://www.em.com.br/app/noticia/cultura/2019/01/07/interna_cultura,1019285/cabeca-de-porco.shtml>. Acesso em 23 de maio de 2024.

 

Autores

  • é graduado em Direito UFJF (pela Universidade de Juiz de Fora), pós-graduado em Direito pela Emerj (Escola de Magistratura do Rio de Janeiro). Mestre em Direito Constitucional pelo IDP (Instituto Brasileiro de Desenvolvimento e Pesquisa), pós-graduando em Jurisdição Penal Contemporânea e Sistema Prisional pela Enfam (Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados). Doutorando em Direito Constitucional pelo IDP. Juiz de Direito no TJ-GO (Tribunal de Justiça de Goiás). Autor do livro “Atitude suspeita — a seletividade na atuação da Polícia Militar e Poder Judiciário no combate ao narcotráfico".

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