Repensando as Drogas

Carta aberta ao ministro Flávio Dino

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1 de março de 2024, 8h00

Prezado ministro,

Em debate acalorado entre o então professor Fernando Haddad e Marcos Lisboa, no Insper, em 2021, o futuro ministro da Fazenda questionou seu interlocutor, solicitando que apontasse um juiz de esquerda, pois ele, Haddad, desconhecia tal figura.

Talvez por inclinação do próprio curso de Direito, da função de julgar ou, ainda, pelos compromissos e valores historicamente consolidados no campo da administração da justiça, a magistratura costuma ser conhecida por valores conservadores, ou seja, por um quadro composto, predominantemente, por juízes e juízas de “direita”.

Valores próprios da ordem jurídica liberal, como observaram autores tão diversos como Karl Marx e Max Weber, são destinados a preservar o status quo: sob a ótica de um contrato sinalagmático aparentemente isonômico, o empregador tem plenas condições de estabelecer um contrato de trabalho iníquo, e o empregado, premido pela necessidade, aceita essas condições em situação desfavorável.

Esse clássico exemplo — que havia sido superado pelas conquistas históricas da legislação trabalhista, mas que voltou à voga com as reformas liberais recentes — demonstra o quão valores consolidados na ordem jurídica, tais como pacta sund servanda, são conservadores, o que certamente repercute no quadro de magistrados e magistradas que compõem o sistema de justiça.

O ‘juiz de esquerda’
Daí que um “juiz de esquerda” represente, sem a negativa desses valores, um olhar diferenciado, mais preocupado com valores sociais do trabalho, à solidariedade, à igualdade e ao enaltecimento da dignidade da pessoa humana, especialmente daqueles mais vulnerados por condições materiais desfavoráveis de subsistência.

Fellipe Sampaio /SCO/STF
Dino, Lula e Barroso posse Flávio Dino STF

São valores também presentes em nossa Carta Constitucional e cuja defesa, em princípio, pensamos poder esperar de Vossa Excelência, a partir de sua trajetória política.

Mas, justamente a esse respeito, recordamos das ponderações que Zezé da Cufa fez, no lançamento do excelente livro “A Fé e o Fuzil”, do pesquisador e jornalista Bruno Paes Manso (2023).

Zezé disse, com preocupação, que o campo progressista simplesmente não trabalhou nem pensou a sério o problema da segurança pública.

Segundo Zezé, o povo que reside nas comunidades tem se inclinado para a pauta conservadora porque, no universo de insegurança em que vivem, premidos pela violência das facções, das milícias e das polícias, almejam, sim, policiamento militar ostensivo, mas respeitoso; querem ver distância de drogas, que, à sua visão, representam risco de prisão para seus filhos e de ingresso às facções.

E é sobre isso que procuraremos tecer algumas considerações
Vossa Excelência não figura mais como ministro da Justiça e da Segurança Pública, mas, na condição de ministro do Supremo Tribunal Federal, exercerá uma função lindeira entre os sistemas político e jurídico.

Para usar uma expressão cara aos sociólogos do direito de orientação sistêmica, seus votos representarão uma redefinição dos limites do sistema jurídico e político, já que atuam sobre a interpretação daquilo que funciona como elemento de acoplamento estrutural entre esses dois sistemas.

De forma reflexa, suas decisões trarão reflexos sobre a prática policial que, sabemos, atinge seletivamente a população negra, pobre e periférica.

Há inúmeros estudos sobre a seletividade do Direito Penal e a vossa gestão junto ao Ministério da Justiça revela essa compreensão, muito embora, convenhamos, os governos aliados ao PT tenham tido dificuldade em construir uma política de segurança pública que aponte para horizontes menos banhados de sangue.

A Bahia é o triste exemplo de como um governo “de esquerda” conduz políticas de segurança pública “de direita”.

No âmbito de nossa coluna, e a despeito do sentimento externado por Zezé da Cufa, no sentido de que o sentimento geral das populações carentes se volta contra a liberalização das drogas ilícitas, permita-nos invocar o “papel iluminista” da Corte Suprema, em relação à política de combate às drogas e em relação aos reflexos dessa política sobre a violência policial.

É absolutamente compreensível que populações negras, pobres e periféricas, vulneradas pela ácida guerra às drogas, rejeitem frontalmente qualquer alteração na política de liberação do uso e regulação de venda de alguns tipos de drogas.

Como demonstra Max Weber, as estruturas de dominação conseguem se estabilizar no poder justamente porque perseguem e adquirem “legitimidade”, um conceito sociológico que denota, em termos bastante simplificados, “aceitação”.

Szelenyi lembra que Max Weber, em uma conferência, chegou a referir a um “quarto tipo ideal de dominação”, denominado “a vontade dos dominados” [1].

E, de fato, o medo representa um dos elementos mais marcantes nas estruturas de dominação contemporânea, como tivemos oportunidade de tratar em nossa tese de doutoramento [2].

ConJur

Aceitamos, nos mais diversos estratos populacionais, vulnerações a direitos individuais em favor de uma ideia de segurança pública, já que estamos envoltos em um ambiente de medo e insegurança constantes.

No caso de populações periféricas, a violência física presente em ações policiais e o autoritarismo de facções e de milícias conduzem-nas a um estado de medo permanente, em que a droga — mal maior, afirmado e reafirmado em mídias televisivas, redes sociais, igrejas e na própria comunidade — assume papel proeminente.

Estudos, porém, revelam baixa prevalência da relação entorpecentes ilícitos-homicídios. Goldstein e Brownstein, em estudo seminal, revelaram que as estatísticas atribuídas a essa relação são discutíveis [3].

Em sua maioria, as mortes violentas perpetradas com uso de drogas são praticadas sob influência de álcool [4], aceito nas rodas de amigos, nos churrascos de família, na comunhão com Cristo e em toda propaganda televisiva, de eventos esportivos a telenovelas.

Em contrapartida, embora o uso de drogas ilícitas não figure como causa direta da violência, a proibição o é: estudos indicam que mais de um terço das mortes violentas está relacionada à chamada guerra às drogas [5]. Parece-nos que essa dimensão simbólica da droga, reforçada constantemente, tem escopos bastante palpáveis.

A par do argumento liberal de proibição da criminalização da autolesão, que constitui um dos fundamentos dos votos favoráveis à descriminalização do consumo (não venda) de drogas, trazemos a preocupação sobre valores e interesses que circundam a chamada “guerra às drogas”.

Como já foi apontado aqui, o mercado ilícito de entorpecentes movimenta um fluxo de capital significativo, a ponto de repercutir, como já identificado na Colômbia, sobre a liquidez do sistema financeiro daquele país [6].

No estado de São Paulo, entre 2017 e 2022, estima-se que o mercado ilícito tenha movimentado mais de R$ 113 bilhões [7]. Parte desse volume financeiro movimenta uma economia “lícita” local, gerando empregos, renda etc.

E parte substancial do orçamento estatal se volta para uma guerra que, sabe-se, é historicamente fracassada em reduzir a expansão desse mercado. Não são poucos os que ganham com a manutenção de uma guerra constante, em que a droga se apresenta como elemento do demônio, enquanto, sob véu de ignorância de atores e instituições, um mercado de segurança privada armada cresce substancialmente.

Nos Estados Unidos, estima-se que o gasto com segurança pública envolvendo inteligência artificial tenda a subir de US$ 9.3 bilhões (2022) para US$ 71 bilhões, em 2030.

No Brasil, empenha-se com segurança pública quase R$ 80 bilhões/ano, conforme estatísticas publicadas pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública. [8]

Paralelamente, empresas relacionadas ao mercado de armas também experimentam crescimentos significativos.

A Taurus, que domina o mercado brasileiro, teve, por exemplo, incremento de lucro de 62,8% entre 2020 e 2021. [9]

O setor de segurança eletrônica, depois de experimentar um crescimento de 13% entre 2019 e 2020, e 14%, entre 2020 e 2022, estimava que cresceria 18% em 2023, ou seja, em nítida curva ascendente [10].

De acordo com estudo do Instituto Sou da Paz, entre 2011 e 2020, pelo menos 33 mil armas foram desviadas do mercado legal para a ilegalidade, amostra que leva em consideração apenas os casos notificados [11].

Com isso, quer-se apontar para a existência de um mercado que lucra com o estado de guerra em que a população pobre, negra e periférica está submetida. Um estado de guerra permanente, em que vidas são perdidas, mas mercados setoriais são alimentados diuturnamente.

Esses mercados têm representantes no Congresso e resistem a propostas alternativas no âmbito das políticas de segurança pública; como era de se esperar, alinham-se a setores religiosos conservadores, em nítido discurso que reforça o medo e a insegurança.

Lutam, simbolicamente, para evitar o redirecionamento das políticas de segurança pública, a partir das evidências científicas: se o problema das drogas for tratado como um problema de saúde pública, como deveria ser, quem passaria a ser o vilão da segurança pública?

Quiçá o mercado lícito e ilícito de armas de fogo, mercados que poderiam ser afetados por uma condição de segurança pública menos desfavorável. Até o momento, governos de “esquerda” não souberam tratar do tema de maneira eficiente.

Mercado das drogas
Enfim, a manutenção da política atual de combate às drogas favorece um sistema em que o mercado de entorpecentes alimenta, financeiramente, organizações criminosas ilícitas, embora o problema de saúde pública inerente à expansão de consumo pareça ser infinitamente menor do que o problema da segurança pública correlata.

Ter a coragem de enfrentar esse quadro envolve não só “descriminalizar” o consumo, passo importante e iminente, à vista do julgamento pendente do Recurso Extraordinário 635.659, mas não suficiente para solucionar a questão da segurança pública, como observou o próprio Zezé da Cufa; mais que isso, é preciso debater, de forma franca, se o Estado brasileiro, a partir dos valores constitucionais, liberais e sociais, positivados, tem o direito de manter uma guerra civil fratricida constante, que tem norteado a política de segurança pública de governos de esquerda e de direita e que, comodamente, elegeu a “droga” como fonte de todo mal.

Não é tarefa fácil; no entanto, espera-se de Vossa Excelência a sensibilidade para essa questão, a partir de um olhar que fuja ao óbvio e que permita nos brindar com novos horizontes sobre as práticas policiais e jurídicas admitidas pela Corte Suprema.

 

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[1] SZELENYI, Iván. Weber’s theory of domination and post-communist capitalism. Theory and Society, v. 45, n. 1, p. 1-24, feb. 2016. [Online]. Disponível em: <https://link.springer.com/content/pdf/10.1007%2Fs11186-015-9 263-6.pdf>. Acesso em: 26 fev. 2024.

[2] As Múltiplas faces do direito em Max Weber: fundamentos para uma leitura contemporânea. Curitiba: Juruá, 2020;

[3] GOLDSTEIN, P. J.; BROWNSTEIN, H. H. (1987). Drug-Related Crime analysis – Homicide. A Report to the National Institute of Justice;

[4] Laranjeira, R., Duailibi, S. M., & Pinsky, I.. (2005). Álcool e violência: a psiquiatria e a saúde pública. Brazilian Journal of Psychiatry, 27(3), 176–177;

[5] CERQUEIRA, Daniel. Custo de bem estar social dos homicídios relacionados ao proibicionismo das drogas no Brasil. (2023) Brasília: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, disponível em < https://repositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/12132/1/Publicacao_preliminar_TD_Custo_bem_estar_social.pdf>, acesso em 26/02/2024;

[6] SLUTZKY, Pablo; VILLAMIZAR-VILLEGAS, Mauricio; WILLIAMS, Tomas. Drug Money and Bank Lending: The Unintended Consequences of Anti-Money Laundering Policies. [online] Working Papers 2019-5, The George Washington University, Institute for International Economic Policy, revisado em maio de 2020, disponível em <https://www2.gwu.edu/~iiep/assets/docs/papers/2019WP/WilliamsIIEP2019-5-Revised1.pdf>, acesso em 28/09/2023;

[7] FIESP. Mercados ilícitos transnacionais em São Paulo: a economia criminal transnacional. São Paulo: FIESP, 2022 [online]. Disponível em < https://www.fiesp.com.br/file-20221207193330-anuario-2022-web-1/>, acesso em 22/9/2023;

[8] Disponível em < https://forumseguranca.org.br/publicacoes/gastos-com-seguranca-publica/>, acesso em 21/9/2023.

[9] Disponível em <https://www.taurusarmas.com.br/pt/noticias/taurus-tasa4-lucro-cresce-628-no-3t21-e-vendas-no-mercado-nacional-batem-recorde>, acesso em 21/9/2023.

[10] Disponível em <https://tiinside.com.br/09/03/2022/setor-de-seguranca-eletronica-cresce-14-no-brasil-e-fatura-r-924-bilhoes/>, acesso em 21/9/2023.

[11] LANGEANI, Bruno; PASSOS, Ingrid. Desvio fatal: vazamento de armas do mercado legal para o ilegal no Estado de São Paulo. (2020) [online] São Paulo: Instituto Sou da Paz. Disponível em <http://www.soudapaz.org.br>, acesso em 24/2/2024.

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