Repensando as Drogas

Crack: tinha uma pedra, mas não um caminho

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  • é graduado em Direito UFJF (pela Universidade de Juiz de Fora) pós-graduado em Direito pela Emerj (Escola de Magistratura do Rio de Janeiro). Mestre em Direito Constitucional pelo IDP (Instituto Brasileiro de Desenvolvimento e Pesquisa) pós-graduando em Jurisdição Penal Contemporânea e Sistema Prisional pela Enfam (Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados). Doutorando em Direito Constitucional pelo IDP. Juiz de Direito no TJ-GO (Tribunal de Justiça de Goiás). Autor do livro “Atitude suspeita — a seletividade na atuação da Polícia Militar e Poder Judiciário no combate ao narcotráfico".

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31 de maio de 2024, 9h20

Poucas substâncias causam tanto pânico quanto o crack. Em especial no Brasil, por ser um dos países em que mais se utiliza a referido entorpecente [1].

ABC Color/Reprodução

Crack nos remete a imagem de moribundos perambulando pelos grandes centros urbanos à semelhança de zumbis. Cadáveres reanimados que vivem e agem de forma instintiva. Mortos-vivos privados de vontade própria e personalidade.

Afastando das analogias cinematográficas, o senso comum classificaria os usuários de crack como “dejetos humanos”. A escória da sociedade contemporânea. “Semoventes” que traficam, furtam, roubam, agridem e retiram a vida alheia a fim de sustentar o odioso vício. Um câncer que precisa ser extirpado com o punho de ferro do direito penal. Cadeia! Jaula! Cemitério! Tolerância zero é pouco aos desprovidos de senso moral.

Particularmente, não enxergo desta forma. Talvez o sentimento que mais me afete seja “pena”. Sempre maltrapilhos, esqueléticos, com lesões na mucosa oral e dentes perdidos. Também sinto medo! E, mesmo com todo humanismo que tento cultivar, confesso ser difícil não nutrir um pequeno sentimento de repulsa por aqueles que optaram por trilhar o “caminho das pedras”.

No íntimo, meu preconceito aflora e os coloco na prateleira dos “derrotados”. Uma espécie de – “eu sei que a vida não é fácil, mas precisava seguir esse caminho?” – Por que não estudou, trabalhou, estreitou laços afetivos, se dedicou, venceu as adversidades?

Os questionamentos, quase sub-reptícios, possuem um problema de origem. As indagações que faço são cabíveis no mundo ao qual pertenço. Nos conceitos que pude criar ao longo da vida. Como se eu, fazendo uma projeção mental, me visualizasse entregue ao crack. Não observasse o “bê-á-bá” do caminho “decente”. Estudar, trabalhar, constituir família, pagar impostos, é algo natural para mim. Cresci circundado de exemplos e, consequentemente, objetivos. Possuo um pertencimento. Vínculos de afeto. Crio expectativas e tento supri-las.

Existia uma linha previamente traçada que pude utilizar de referência. As condições também me foram favoráveis. Não seguir essa trilha pré-moldada, talvez, fosse uma derrota particular (ainda que a realidade seja um pouco mais complexa).

Mas a vida não sorri para todos. E para além de pedras no caminho… muitos não possuem um próprio caminho para se orientar.  Não me refiro às dificuldades financeiras (ou não somente a elas). Ao contrário do ecoado pelo senso comum, o crack não é a causa da exclusão social, e sim… sua consequência. Usuários deste entorpecente, em regra, já se encontravam em situação de extrema vulnerabilidade social quando da sua primeira utilização. A maioria, sem trabalho, sem moradia, sem pertencimento social, sem laços familiares etc.

Estudos indicam que o crack surgiu na década de 1980, nos bairros pobres dos centros de Nova York, Los Angeles e Miami. No Brasil, em 1990, foi realizada a primeira apreensão da droga no município de São Paulo, conforme registros de arquivos da Divisão de Investigação sobre Entorpecentes (Dise).

O crack começou a ser utilizado no Brasil por jovens da zona leste da periferia de São Paulo. Posteriormente migrou para a região central da cidade, nos arredores da Estação da Luz (local atualmente conhecido como Cracolândia). Habitualmente, a droga encontra terreno fértil em regiões centrais empobrecidas, com o deslocamento da classe média para os bairros mais afastados.

Em meados de 92, passou a ser usado dentro da Casa de Detenção (Carandiru), em substituição a cocaína injetável e o receio dos detentos de contaminação pelo Human Immunodeficiency Vírus (HIV).

Tempos depois, o Primeiro Comando da Capital (PCC) proibiu a venda desta substância dentro dos estabelecimentos penais. O objetivo era evitar conflitos. Não obstante, passou a deter o monopólio da venda em diversos bairros periféricos.

No início do século 21, a droga se espalhou pelo Brasil

Independentemente do local e data, desde a origem, o crack sempre se relacionou às condições econômicas e sociais de seus usuários. Pobres, pretos ou pardos, sem escolaridade, moradores de periferia, moradores de rua, desempregados etc. [2]

Alguns motivos fomentaram a sua utilização: baixo preço; desnecessidade do uso de seringas e agulhas; efeitos psicoativos intensos e rápidos.

Com o aumento da utilização, passamos a “demonizar” o crack e seus usuários, desviando o discurso da dimensão socioeconômica, política, clínica e cultural.

Ao que pese o pânico social criado (sem se olvidar dos significativos efeitos prejudiciais que esta droga pode causar), crack e cocaína (tecnicamente: hidrocloreto de cocaína) são, grosseiramente, a mesma substância. O que difere é a via de administração.

Pedras de crack são feitas de duas maneiras: com a pasta base da cocaína ou com a cocaína em pó (refinada). No primeiro método, é adicionado à pasta base (produto bruto, sem éter ou acetona) o bicarbonato de sódio. Daí surgem pequenos cristais que ao serem aquecidos produzem estalos [3]. Crack é a onomatopeia do aquecimento da matéria bruta da cocaína.

Por ser fumado, o crack possibilita um alto grau de absorção pelo pulmão e atinge o cérebro de forma ligeira.  Gera um rápido estímulo, intensa sensação prazerosa, seguido de uma fulminante depressão.

A utilização desta substância, pela parcela vulnerável da população, advém da atração magnética entre uma realidade sofrida e a química que proporciona prazer imediato. A condição de excluído social precede a utilização da droga. A busca pelo entorpecente é somente um “fenômeno de superfície”.

Freud utilizava o termo “destruidor de preocupações” para se referir à cocaína. Basta pensarmos na mesma substância, com efeitos mais rápidos e intensos, na população mais sofrida.

Não é forçoso concluir que gerar mais sofrimento, além de não solucionar o problema, o agrava. Violência estatal, cadeia, e, principalmente, a violência simbólica, com a coisificação do “cracudo”, gera um ciclo vicioso. Aumentar o mal-estar do toxicômano é um equívoco de saída. Se dor levasse ao afastamento do vício, moradores de rua e detentos seriam eternos sóbrios.

A saída não é o cárcere. Tão pouco pertence ao puritanismo. Cobrar abstinência, sem nenhuma contrapartida, de quem tem uma vida miserável, desassistida, violentada… é desleal.

O mundo livre das drogas (lícitas ou ilícitas) é uma ilusão. Não vivemos longe delas. É preciso mudar o discurso e o enfoque. Estado e sociedade precisam canalizar esforços para reduzir danos.

A redução de danos não parte da utopia de um mundo abstêmio. Utiliza de estratégias para minimizar os danos causados pelos entorpecentes. O primeiro, e mais importante deles, é humanizar o atendimento do dependente. A psicanálise, psiquiatria, psicologia, dentre outras áreas, inserta na política de redução de danos, busca entender a origem do problema e apontar caminhos possíveis. Desloca a abordagem da droga, em si mesma, para o sujeito que se droga.

Por vezes, ofertar drogas menos prejudiciais (a exemplo da metadona  droga utilizada para minimizar a abstinência de heroína em países europeus, em virtude do efeito mais leve e prolongado) é o início do caminho.

Por vezes, ofertar a própria droga, mais pura, de forma assistida, surte efeitos positivos. O caso concreto vai fornecer os subsídios necessários ao profissional da saúde para interpretar qual a melhor estratégia a trilhar. Sempre tendo como objetivo um atendimento pessoalizado, humano e que se pretende eficaz [4].

Incontáveis foram as operações estatais baseadas, unicamente, na repreensão, com o objetivo de acabar com a principal Cracolândia paulista. Bombas de efeito moral, gás lacrimogêneo, balas de borracha, cacetetes, apreensão de drogas, prisão de traficantes e apreensão de usuários. O efeito?! Aumentou o raio de circulação dos usuários/dependentes.

No sentido diametralmente oposto, cita-se o programa “De Braços Abertos”, que disponibilizava serviços de saúde pública, acesso a atividades ocupacionais, alimentação, hospedagem, capacitação, dentre outras medidas, aos frequentadores da Cracolância. O efeito?! Diminuição dos frequentadores e minimização dos delitos [5].

Pode parecer economicamente inviável, mas seguramente as estratégias de redução de danos são mais baratas que o cárcere e afetam de forma positiva a segurança pública.

O usuário de crack, perambulando pela rua, é somente um vetor de emersão das mazelas que criamos e fingimos não ver. A degradação social o precede. É nosso dever civilizatório ajudar.

 

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[1] Brasil é o maior consumidor de crack do mundo. G1. São Paulo, 07 de mar. de 2017.Disponível em: https://g1.globo.com/bemestar/noticia/brasil-e-o-maior-consumidor-de-crack-do-mundo-bem-estar-explica-a-droga-que-vicia-rapidamente-e-porque-e-tao-dificil-largar.ghtml#.. Acesso em 29 de maio de 2024.

[2] Pesquisa Nacional sobre o uso de crack: quem são os usuários de crack e/ou similares do Brasil? quantos são nas capitais brasileiras? /organizadores: Francisco Inácio Bastos, Neilane Bertoni. – Rio de Janeiro: Editora ICICT/FIOCRUZ, 2014.

[3] HART, Carl. Um preço muito alto: a jornada de um neurocientista que desafia nossa visão sobre drogas. Trad. Clóvis Marques. 1. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2014.

[4] NICODEMOS, Júlio Cesar de Oliveira. Psicanálise, redução de danos e uso abusivo de drogas: estratégias possíveis diante do impossível. Curitiba: CRV, 2020.

[5] Programa “De Braços Abertos” completa um ano com diminuição do fluxo de usuários e da criminalidade na região. Disponível em: https://www.capital.sp.gov.br/w/noticia/programa-de-bracos-abertos-completa-um-ano-com. Acesso em 29 de maio de 2024.

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  • é graduado em Direito UFJF (pela Universidade de Juiz de Fora), pós-graduado em Direito pela Emerj (Escola de Magistratura do Rio de Janeiro). Mestre em Direito Constitucional pelo IDP (Instituto Brasileiro de Desenvolvimento e Pesquisa), pós-graduando em Jurisdição Penal Contemporânea e Sistema Prisional pela Enfam (Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados). Doutorando em Direito Constitucional pelo IDP. Juiz de Direito no TJ-GO (Tribunal de Justiça de Goiás). Autor do livro “Atitude suspeita — a seletividade na atuação da Polícia Militar e Poder Judiciário no combate ao narcotráfico".

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