Repensando as Drogas

Uma crônica da diamba e um livro para indicar

Autor

2 de fevereiro de 2024, 8h00

Recebo no celular a mensagem de meu melhor amigo (bem, como isto é uma crônica, e não é possível saber o que é factual ou não, nem este amigo poderá se vangloriar — se é que haveria algum motivo para tanto —, nem os demais deverão chatear-se — aliás, quem disse que algum amigo me mandou a mensagem que segue?):

Nada como uma vovó canábica!

E seguia o vídeo da mãe dele dançando e se divertindo na chuva com as netinhas.

A tal vovó sofria de dores incapacitantes provenientes de uma fibromialgia. Passou a consumir, sob prescrição médica, óleos de extratos integrais de flores de maconha com predominância de THC e CBD. Ganhou qualidade de vida, com melhoras significativas nos sintomas da doença e, de lambuja, um invejável bom humor.

Dia desses encontrei um conhecido para quem eu havia indicado uma médica prescritora, para atender a mãe dele — também com fibromialgia. Era o que achavam.

– Você não acredita. Fomos na doutora e ela foi maravilhosa, já foi brincando que tínhamos ido atrás da maconha, mas era preciso antes avaliar, e tal. Ela desconfiou de outra coisa. Encaminhou minha mãe para uma neuro. E fecharam o diagnóstico, na verdade, em esclerose múltipla. Sabe, no fundo, estamos felizes, porque agora temos um tratamento certo, ela está tomando uma injeção semanal da farmácia de alto custo do SUS, e também se tratando com os óleos de cannabis para os sintomas. Está bem melhor!

E a doutora prescritora nem do beque é.

Graças a uma médica maconheira — que não usa —, a mãe desse conhecido teve a chance de evitar a rápida progressão de uma doença terrível.

Em um texto belíssimo, uma amiga contou de sua experiência com maconha na faculdade e como isso impactou sua relação com os pais – as censuras, as cobranças, o preconceito.

Citou As Flores do Bem, do Sidarta Ribeiro, no trecho que fala da mãe, na velhice, tendo aproveitado os benefícios das flores após, em tempos passados, ter vivenciado também questões familiares delicadas envolvendo a erva [1].

“(…) no fim da vida, acometida por crises de depressão e fibromialgia, minha mãe encontrou nas flores um alento insuspeitado. A virada veio numa véspera de Natal em que a casa borbulhava de familiares e amigos, mas ela se recusava a sair do quarto. A ceia estava pronta para ser servida e nada dela aparecer. Fui buscá-la e a encontrei prostrada na cama, com dores terríveis e péssimo humor. Depois de alguma insistência minha, aceitou dar um tapa num baseado. Tragou, tossiu um pouco, devaneou por alguns minutos e afinal foi tomar banho. Quando reapareceu, tinha aquela expressão de alegria juvenil que todos amávamos nela. Desceu as escadas rumo à sala cheia e a festa começou. Partilhamos, cantamos, dançamos e tivemos mais uma noite feliz”.

Minha amiga não teve a mesma sorte de acompanhar a evolução de sua mãe em relação às flores do bem, de vê-la envelhecer aplacando suas dores e elevando seu espírito.

Estivesse viva nos dias de hoje, vendo as falácias do pânico moral dando lugar a abordagens científicas honestas, quem sabe?

Mas e a referência ao texto dela, onde encontramos?

E vai publicar como, sendo juíza?

Temos evoluído, pero no mucho.

O país que por último aboliu a escravidão é sério candidato à ridícula posição de um dos últimos a avançar em termos de liberdades civis e direitos humanos no tema — porque é disso que se trata quando se fala em regulamentar o cultivo e os usos da maconha. Uma planta. Fruto da natureza, que a arrogância humana um dia ousou proibir.

Algum conhecido viaja para Nova York e volta comentando do cheiro de maconha por todo lado.

Não é preciso colocar num prato da balança o que para alguns seria um insuportável incômodo e no outro a conta de crianças mortas em razão da guerra às drogas, como meu colega de coletivo, o ciclista (e também diplomata) Eduardo Roedel, já fez neste espaço magistralmente [2].

Basta lembrar que não costumamos sequer nos dar conta do cheiro da poluição a que estamos sujeitos nas grandes cidades e que nos mata aos poucos. É tão natural!

Mas há quem volte de lá com a experiência de ter podido sair do armário.

Promotor de Justiça brasuca fumando um beque, caminhando na calçada de cara erguida e sorriso no rosto?

Em Nova York já aconteceu.

A maconha recreativa para alguns é a medicinal, a terapêutica, para outros.  O que é dar uma relaxada após um dia estressante de trabalho pode não ser diferente de uma terapia fitoterápica para controle de ansiedade e promoção de bem-estar.

Minha curiosidade sociológica me fez ir a uma dessas lojas dedicadas à jardinagem canábica no ano passado.

Estacionei minha scooter ao lado de uma SUV das grandes. No banco de trás, duas cadeirinhas infantis.

Dela desceu uma mulher, na casa dos 40 anos, carregando no rosto um misto de constrangimento e discrição.

Não pude deixar de imaginar, ao vê-la entrar na loja, ela cuidando do jardim, de repente com as crianças.

– Mamãe, mamãe, o tato pegou uma minhoquinha!

Mãe também de um garoto com paralisia cerebral muito amável, ela encontrou nas flores uma dupla terapia: o cultivar, em benefício principalmente do filho, que se envolveu entusiasmado com o seu jardim de ervas medicinais e flores, e o vaporizar, que àquela mãe trouxe tranquilidade.

Sidarta Ribeiro cita Oliver Sacks:

“Em quarenta anos de prática médica, descobri que apenas dois tipos de ‘terapia’ não farmacológica são de vital importância para pacientes com doenças neurológicas crônicas: música e jardins” [3].

No interior da loja, fui atendido por uma jovem simpática e atenciosa, que ouviu de mim, meio sem jeito, o famigerado “só tô dando uma olhada”.

Disse da minha curiosidade, despertada pelo tratamento com óleos de maconha, ainda impactado pelo fato de ter passado de um estado em que acordava todas as madrugadas com uma dor insuportável no braço direito, por conta de uma provável artrite reativa que me acompanhou por longos meses, para noites tranquilas, experimentando uma melhora notável, e livre daquela dor, após menos de duas semanas com as gotinhas.

Ouvi dela algumas histórias lindas de bem-estar na relação com as flores, mas também uma inusitada advertência:

– Mas é preciso responsabilidade. Não é para adolescente e nem para quem não lida bem com o THC…

O inusitado é preconceito meu. Por que não poderia esperar ouvir isso dela?

O meu caso, o da vovó canábica, o da mãe do Sidarta e aquele da paciente com esclerose múltipla — e inúmeros outros — talvez não convençam os mais afeitos a pesquisas com rigorosos padrões científicos.

Não só para esses, mas para todos que têm a disposição de abrir a mente para uma revolução em curso: As Flores do Bem, do Sidarta. Está tudo lá.

Leu e não se convenceu? Não abre mão da guerra às drogas, com seus “infelizes efeitos colaterais (necessários, fazer o quê?”), e de cercear a liberdade de adultos acessarem uma planta?

“Duas coisas são infinitas: o universo e a estupidez humana. Mas, em relação ao universo, ainda não tenho certeza absoluta”, teria dito Albert Einstein.


[1] 1ª ed. São Paulo: Fósforo, 2023, p. 135.

[2] Quantas crianças mortas você tolera para combater as drogas? (2 de junho de 2023) [https://www.conjur.com.br/2023-jun-02/repensado-drogas-quantas-criancas-mortas-voce-tolera-combater-drogas/].

[3] Wy We Need Gardens. Everything in Its Place First Loves and Last Tales. Nova York: knopf, 2019, citado em As flores do bem. 1ª ed. São Paulo: Fósforo, 2023, p. 87.

Autores

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!