Opinião

Precisamos falar sobre drogas: repressão não surtiu o efeito desejado

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10 de março de 2024, 6h04

O álcool mata bancado pelo código penal
Onde quem fuma maconha é que é marginal
E por que não legalizar? e por que não legalizar?
Estão ganhando dinheiro e vendo o povo se matar
Tendo que viver escondido no submundo
Tratado como pilantra, safado, vagabundo
Por fumar uma erva fumada em todo mundo
É mais que seguro proibir que é um absurdo
Aí provoca um tráfico que te mata em um segundo
…”
(Planet Hemp)

Há mais de duas décadas venho sustentando a necessidade de mudarmos o rumo em relação ao tratamento dado à questão das drogas. Questão que está sendo discutida e julgada no STF (Supremo Tribunal Federal) desde de 2015 em razão da interposição de Recurso Extraordinário (RE 635.659) visando o reconhecimento da “inconstitucionalidade” do artigo 28 da Lei 11.343, de 2006 (Lei Antidrogas). Assim, vejo, uma vez mais, como necessário destacar determinadas questões.

A partir da década de 1970 à “guerra às drogas” declarada pelos Estados Unidos priorizou medidas repressoras e punitivista que culminaram na criminalização do uso de drogas e na exacerbação das penas do tráfico e dos crimes a ele conexos. A política americana influenciou países latino-americanos como o Brasil, que a exemplo dos EUA, vem ao longo dos anos punindo usuários e traficantes de forma sistemática e indiscriminada.

É incontestável que as medidas de caráter repressora adotadas até então pelos Estados Unidos da América e por todos os países subordinados a política americana de combate às drogas não surtiram o efeito desejado.

Penas elevadas, prisões de usuários, regime fechado de cumprimento de pena para os condenados por tráfico, fim da liberdade provisória, confisco de bens, uso das forças armadas (em alguns países estrangeiros), ocupação de favelas pela polícia e, até mesmo, pelo exército e outras tantas providências que levaram em consideração apenas o maior rigor das leis e o caminho, muitas vezes cego, da repressão de nada adiantaram.

No Brasil o número de presos condenados por tráfico vem crescendo a cada ano, um em cada três presos do país respondem por tráfico de drogas contribuindo, inegavelmente, para o encarceramento em massa dos mais vulneráveis (negros e pobres).

Fernando Frazão/Agência Brasil

Se por um lado a atual Lei 11.343, de 2006 despenalizou o consumo de drogas (artigo 28), uma vez que não há mais a possibilidade de se aplicar a pena privativa de liberdade, por outro lado, endureceu a pena para o crime de tráfico, que por ausência de critérios objetivos tem levado milhares de pessoas para prisão.

Em 2006 quando a Lei 11.343 entrou em vigor, eram cerca de 31 mil presos por tráfico nos presídios brasileiros. Em junho de 2022 (há quase dois anos), segundo o Depen, hávia 197 mil pessoas presas por conta da Lei de Drogas, sendo 164 mil detidas por associação ao tráfico.

É forçoso destacar que o que é considerado tráfico para alguns, no caso os mais vulneráveis e etiquetados pelo sistema penal, para outros é considerado porte de drogas.

O sistema penal é seletivo. Como bem já destacou em pesquisa (Mapa do Encarceramento) Jacqueline Sinhoretto, “há uma aplicação desigual das regras e procedimentos judiciais”. Assim, por exemplo, no momento em que o policial escolhe quem deve ou não revistar. Ou a maneira de tratar uma pessoa flagrada portando uma determinada quantidade de entorpecentes. “A quantia pode ser a mesma. Determinadas pessoas podem ser acusadas por porte e outras, por tráfico“, disse a pesquisadora.

Recurso extraordinário

No julgamento do RE 635.659 no STF, o ministro Alexandre de Moraes trouxe inúmeros dados sobre essa abominável forma de discriminação em relação aos negros, pobres, com baixa escolaridade e residentes nas periferias.

Importante observar que a grande maioria destes condenados por “tráfico” são na verdade usuários ou que fazem do comércio um meio para manter seu vício. O problema se agrava pelo fato da lei ser genérica o que fere inclusive o princípio da taxatividade dos tipos penais e, ainda, não diferenciar claramente o traficante do usuário ou de tratar com o mesmo rigor, pena mínima de 5 anos, pessoas que se encontram em escalas e situações distintas.

A criminalização com a consequente punição do usuário afronta princípios fundamentais do direito penal. Entre os quais destaca-se:

i.O princípio da lesividade, segundo o qual ninguém poderá ser punido por conduta que não lesione direitos de terceiros e que não exceda o âmbito do próprio autor. Vale lembrar que o direito penal não pune a autolesão;
ii. O princípio da subsidiariedade. De acordo com este princípio, desnecessário recorrer ao direito penal quando a conduta seria melhor tratada em outro ramo do direito, menos danoso ao individuo e com um custo social  menor. A lei penal somente deve ser utilizado como remédio sancionador extremo, como ultima ratio;
iii. O princípio da proporcionalidade da pena em relação à gravidade do “dano” causado pelo delito. A pena, principalmente em relação aquele que se situa na zona cinzenta entre o “tráfico” e o “uso”, e que dependo do seu status social será tratado como traficante ou usuário, é extremamente elevada e desproporcional.

Reprodução

O “custo-benefício”, para usar um termo que se popularizou, da criminalização do uso é alto, ou seja, traz muito mais custos e, digo, nenhum benefício. A proibição do uso de drogas obriga os usuários a se misturarem a traficantes para obtenção da droga. A proibição do uso de drogas faz com que o preço da mesma aumente, gerando lucros maiores para os traficantes.

Além do aparecimento de drogas mais baratas (veja o crack) e de “qualidade” comprometida que causam maiores risco a saúde e a vida do usuário. Outra consequência, inegável, da proibição do consumo é o aumento da corrupção policial.

Caso, realmente, a política repressora e punitiva da chamada “guerra às drogas” tivesse surtido algum efeito, não teria aumentado a diversidade de drogas, inclusive sintéticas. Não teria, também, havido o aumento considerável do número de consumidores. É preciso reconhecer, que com as “armas” utilizadas pelo Estado até hoje na “guerra às drogas” não foram eficazes nem para diminuir o consumo e nem para combater o tráfico.

Necessário pois, que o Estado e a sociedade entendam de uma vez por todas que nem tudo pode e deve ser objeto do direito penal. Neste viés, devem ser excluídas do direito penal as condutas que não afetam qualquer bem jurídico; as “condutas desviadas” [1]; as condutas, ainda que “pecaminosa, imoral, escandalosa ou diferente” [2], mas que não extrapola o individuo; as condutas desprovidas de nocividade social [3], etc.

Maria Lúcia Karam[4] com toda propriedade, há mais de três décadas, esclarece que

descriminalizar não significa liberalizar. Ao contrário, descriminalizar implica em abrir maiores espaços para a criação de mecanismos não penais de controle sobre a produção, a distribuição e o consumo de drogas, eliminando um sistema contraproducente e de graves efeitos negativos, em prol da intervenção de outros instrumentos, menos perniciosos e mais adequados, na busca de caminhos mais racionais e mais eficazes para tratar essa questão.”

Por tudo, pelos princípios norteadores de um direito penal mínimo e garantista, corolário do Estado democrático de direito, pela prevalência da dignidade humana e, principalmente, pela vida, espero que o STF declare inconstitucional a criminalização do uso de drogas dando o primeiro passo na busca de solução para este grande problema.

Por fim, no que pese os entendimentos em contrário, entende-se que o Supremo deveria ter seguido o substancioso e bem fundamentado voto do relator, ministro Gilmar Mendes (antes de mudar o seu voto) quando em 2015 decidiu pela inconstitucionalidade do artigo 28 da Lei 11.343/2006 e, consequentemente, pela descriminalização da posse para consumo de drogas ilícitas, de todas as droga e não apenas da “maconha”.

 

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[1] BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro. Rio de Janeiro: Revan, 1990.

[2] Idem.

[3] CERVINI, Raúl. Os processos de descriminalização. Trad. Eliana Granja et. al. São Paulo: RT, 1995.

[4] KARAM, Maria Lúcia. De crimes, penas e fantasias. Niterói, Rio de Janeiro: Luam, 1991.

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