Justiça Tributária

O princípio da neutralidade tributária aplicado ao IBS

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22 de maio de 2024, 17h21

Quando dois amigos começam a discutir sobre determinado assunto e perguntam a você qual deles tem razão, você, visando não se indispor com nenhum deles, provavelmente, dirá que prefere manter-se neutro e não influenciar o resultado da contenda.

Do mesmo modo, no direito tributário, um imposto é considerado neutro quando não afeta a estruturação das operações promovidas pelo contribuinte (p.ex. não comprar de empresas do Simples Nacional), nem seu processo de produção (p.ex. utilizar insumo com qualidade inferior, porém com menor carga tributária) ou de comercialização (p. ex. operações de triangulação) e nem tampouco sua localização (p.ex. benefícios fiscais concedidos por estados e municípios).

Ou seja, quando um imposto atende ao princípio da neutralidade ele não influencia as decisões dos contribuintes quanto aos métodos de produção ou comercialização de seus produtos, quanto à escolha dos fornecedores, quanto ao uso da mão de obra (própria ou terceirizada) etc.

Podemos afirmar que o imposto verdadeiramente neutro gera receita à Fazenda Pública sem influenciar as decisões econômicas dos contribuintes.

Maneira eficiente

Em nossa opinião, a maneira mais eficiente de garantir a neutralidade tributária é por meio da não cumulatividade plena e do creditamento amplo, além, é claro, do fim dos benefícios fiscais, pressupostos esses que não são atendidos por nossa atual legislação tributária sobre o consumo. Senão vejamos:

1) Limitação quanto ao direito de creditamento: tanto a legislação do ICMS quanto a legislação do IPI só permitem o creditamento referente a insumos incorporados fisicamente ao produto. Trata-se do famigerado “crédito físico”;

2) Limitação quanto às hipóteses de utilização, transferência a terceiros ou obtenção de ressarcimento de créditos acumulados de ICMS, fato este que acarreta custos financeiros às empresas e, não raro, resulta em perda de competitividade do produto nacional no exterior;

3) Limitação quanto ao uso de créditos de ICMS relacionados com a aquisição de ativo imobilizado (regra do 1/48) e vedação ao crédito decorrente de compra de bens de uso e consumo;

4) Uso exacerbado do regime de substituição tributária, que implica no não creditamento do ICMS/ST pago pelo contribuinte substituído, acarretando-lhe aumento de custo tributário;

5) Concessão de benefícios fiscais pelos entes subnacionais (guerra fiscal), influenciando a decisão do contribuinte quanto ao local de instalação de sua empresa.

Nesse diapasão, vale lembrar que a principal característica do Imposto sobre Valor Agregado (IVA) mundo afora é a ampla possibilidade de creditamento do imposto pago na operação anterior, possibilitando que (i) a cadeia produtiva seja desonerada, (ii) o imposto seja não cumulativo e (iii) o IVA seja repassado ao consumidor final.

Princípio da neutralidade

Spacca

Infelizmente, a nosso sentir, a EC 132/2023 não respeitou adequadamente o princípio da neutralidade tributária, expressamente previsto no § 1º do artigo 156-A da CF/1988, pois diversos benefícios fiscais continuarão existindo (vide artigos 8º e 9º da EC nº 132/2023, §§ 2º e 3º do artigo 146 e inciso VIII do § 1º do artigo 225 da CF/1988 e artigo 92-B do ADCT) e, considerando-se o disposto na alínea “a” do inciso I do artigo 7º do PLP nº 68/2024, verifica-se que será mais vantajoso para o contribuinte contratar mão de obra terceirizada do que utilizar mão de obra própria, haja vista que esta não gerará crédito, enquanto aquela sim.

Esta questão afeta diretamente a estruturação das operações do contribuinte com fundamento, único e exclusivo, no resultado tributário a ser alcançado, fato este que, claramente, afronta o princípio da neutralidade.

Nesse sentido, saliente-se que em alguns países que utilizam o IVA (p.ex. França), é possível defender o creditamento de todas as despesas necessárias e essenciais à atividade da empresa, incluindo as despesas com mão de obra própria, em observância ao princípio da neutralidade.

Outrossim, ressalte-se que, na prática, o creditamento constitui uma importante ferramenta de combate à “pejotização”, haja vista que, a teor do disposto no precitado PLP nº 68/2024, somente a contratação de mão de obra terceirizada ensejará o creditamento a título de IBS.

Se considerarmos que, após a reforma trabalhista, restou autorizada a terceirização de mão de obra relacionada à atividade-fim da empresa, certamente, caso o creditamento correspondente ao IBS [1] não seja permitido, haverá um importante aumento da “pejotização” em nosso país e, consequente, diminuição dos empregos formais, principalmente nas empresas brasileiras não integrantes do Simples Nacional.

Ademais, caso essa diferenciação quanto ao direito de creditamento (contratação de mão obra própria x contratação de mão de obra terceirizada) não seja eliminada, certamente haverá um significativo aumento de planejamentos tributários abusivos envolvendo a utilização de cooperativas ou de micro e pequenas empresas, cujos encargos sociais e trabalhistas são menores, acarretando prejuízos ao financiamento da Previdência Social e, consequentemente, obrigando o governo a aumentar seus gastos com o pagamento de aposentadorias, pensões e licenças securitárias.

Em suma, não há proporcionalidade, razoabilidade ou qualquer justificativa plausível para que a lei instituidora do IBS, orientada por novas e modernas diretrizes constitucionais, admita o creditamento quando o resultado pretendido pelo contribuinte (p.ex. fabricação de um produto, comercialização de uma mercadoria, prestação de um serviço etc.) for alcançado indiretamente, por meio de mão de obra terceirizada, e não o admita quando o mesmo resultado for alcançado diretamente, por meio de mão de obra própria.

A par do acima exposto, cumpre esclarecer que no modelo constitucional vigente a não cumulatividade atinente ao ICMS, prevista no inciso I do § 2º do artigo 155 da CF/1988, é concretizada pela utilização do método denominado “imposto contra imposto”, que consiste na apuração do imposto devido mediante o abatimento do imposto cobrado na operação anterior.

A respeito do método “imposto contra imposto”, assim leciona André Mendes Moreira [2]:

“Em que pese o nome, o imposto sobre valor acrescido não tributa — em regra — o valor que se agrega ao bem ou serviço em cada etapa de circulação. Em sua técnica de apuração mais comumente utilizada, a incidência do IVA se dá sobre o valor da venda da mercadoria ou do serviço. Em um segundo momento é que se deduz do quantum a ser pago (calculado, repise-se, mediante aplicação da alíquota sobre o preço cheio) o montante de imposto que incidiu na operação anterior. É neste ponto que atua a não-cumulatividade. Abatendo-se do IVA devido aquele recolhido na etapa anterior consagra-se a apuração intitulada invoice credit (crédito sobre a fatura) ou tax on tax (imposto-contra-imposto). As nomenclaturas são autoexplicativas: na fatura (nota fiscal) o imposto que incidiu na operação vem destacado, sendo abatido do IVA a pagar pelo contribuinte adquirente.
(…)
No Brasil, como já referido, o método imposto-contra-imposto foi utilizado desde os primórdios da implantação da não-cumulatividade, quando ainda vigorava o vetusto Imposto de Consumo, no final da década de 1950. Desde então e até os dias atuais, o referido método é o único utilizado pelos tributos não-cumulativos brasileiros.”

E ainda, em outra obra de sua autoria [3]:

“A CR/88 (assim como as Constituições que lhe antecederam) optou pelo método imposto contra imposto (subtração indireta) de apuração dos tributos não-cumulativos. Assim, o cálculo do IPI e do ICMS a pagar é feito mediante compensação do imposto incidente nas operações anteriores, tal como ocorre com o IVA europeu.
Todavia, em relação ao PIS/Cofins não cumulativos, a Carta não definiu a sistemática de apuração (base-contra-base, imposto-contra-imposto ou adição), deixando-a a critério do legislador ordinário.” (Grifou-se)

Nessa seara, vale destacar que a não cumulatividade relacionada ao IBS, prevista no inciso VIII do § 1º do artigo 156-A da CF/1988, é mais ampla que aquela relacionada ao ICMS, prevista no inciso I do § 2º do artigo 155 da CF/1988. Confira-se:

Art. 155. Compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir impostos sobre:
(…)

  • 2º O imposto previsto no inciso II atenderá ao seguinte:

I – será não-cumulativo, compensando-se o que for devido em cada operação relativa à circulação de mercadorias ou prestação de serviços com o montante cobrado nas anteriores pelo mesmo ou outro Estado ou pelo Distrito Federal;

Art. 156-A. Lei complementar instituirá imposto sobre bens e serviços de competência compartilhada entre Estados, Distrito Federal e Municípios.

  • 1º O imposto previsto no caput será informado pelo princípio da neutralidade e atenderá ao seguinte:
    (…)

VIII – será não cumulativo, compensando-se o imposto devido pelo contribuinte com o montante cobrado sobre todas as operações nas quais seja adquirente de bem material ou imaterial, inclusive direito, ou de serviço, excetuadas exclusivamente as consideradas de uso ou consumo pessoal especificadas em lei complementar e as hipóteses previstas nesta Constituição; (Grifou-se)

Dessarte, e considerando que, no tocante ao IBS, todas as operações [4], excetuadas, exclusivamente, as consideradas de uso ou consumo pessoal, devidamente especificadas em lei complementar, e aquelas discriminadas na própria CF/1988, ensejarão créditos para o contribuinte, nos parece claro que se o contribuinte agregar ao preço do bem ou do serviço o custo de sua própria mão de obra e sobre esse valor incidir o IBS, revela-se ilógico, desproporcional, desarrazoado e, portanto, injustificável não permitir o creditamento do custo da mão de obra suportado diretamente pelo contribuinte e permiti-lo quando suportado indiretamente, por meio da terceirização.

De mais a mais, verifica-se que a CF/1988 não proíbe esse creditamento, pelo contrário, ela o impõe, na medida em que ela estabelece, no § 1º do artigo 156-A, que o IBS será regido pelo princípio da neutralidade, o qual, conforme esclarecido anteriormente, visa evitar que as decisões administrativas e operacionais do contribuinte sejam tomadas com base na incidência tributária, o que caracterizaria uma indesejada influência do tributo na atividade empresarial, provocando distorções concorrenciais e estimulando planejamentos tributários abusivos, os quais, obviamente, afrontam os objetivos da reforma tributária, em especial, quanto à simplificação da tributação e à diminuição do contencioso tributário.

Por fim, importa ressaltar que a não cumulatividade, como simples técnica de compensação que é, visa assegurar que o valor do imposto recolhido na operação anterior seja computado (creditado) pelo contribuinte no cálculo do imposto que deverá ser pago ao término do período de apuração, sem, contudo, impedir que outros créditos também sejam computados.

Não fosse assim, o crédito presumido, por exemplo, deveria ser considerado inconstitucional, haja vista que, comumente, ele é maior que o valor do imposto correspondente à operação anterior. Ou seja, a não cumulatividade assegura que, no mínimo, o imposto recolhido na operação anterior seja creditado, mas não proíbe que outros créditos, relacionados com despesas suportadas pelo contribuinte no desenvolvimento de sua atividade empresarial, tais como, por exemplo, as despesas com mão de obra própria, também sejam passíveis de creditamento.

 

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[1] O IBS não incide sobre as relações de emprego (alínea “a” do inciso I do art. 7º do PLP nº 68/2024).

[2] MOREIRA, André Mendes. In, Não-cumulatividade tributária no Brasil e no mundo: origens, conceito e pressupostos. In Sistema Tributário Brasileiro e a Crise Atual – VI Congresso Nacional de Estudos Tributários. CARVALHO, Paulo de Barros e SOUZA, Priscila de. São Paulo: Noeses / IBET, 2009, p. 47-48.

[3] MOREIRA. André Mendes. In, A não cumulatividade dos tributos. São Paulo: Noeses, 2010, p. 124.

[4] Geraldo Ataliba e Cleber Giardino analisaram o significado do vocábulo “operações” e esclarecem que, embora esse vocábulo possa apresentar um sentido econômico, físico ou jurídico, para o intérprete do Direito só interessa o sentido jurídico, sendo este o seguinte: “Operações são atos jurídicos; atos regulados pelo Direito como produtores de determinada eficácia jurídica.” In, ATALIBA, Geraldo; GIARDINO, Cléber. Núcleo da definição constitucional do ICM – Operações, circulação e saída. Revista de direito tributário. São Paulo: Revista dos Tribunais, v. 25/26, ano 7, 1983, p. 105.

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