Opinião

IVA instituído pela reforma tributária não é dual

Autor

  • Daniel Soares Gomes

    é advogado atuante nas áreas de Direito Tributário Comércio Exterior Aduaneiro e Societário do escritório David & Athayde Advogados mestrando em Ciências Contábeis pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES) e especialista em Direito Tributário pela Faculdade de Direito de Vitória (FDV).

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24 de maio de 2024, 17h19

A reforma tributária, introduzida pela Emenda Constitucional 132/2022, passou a prever um novo sistema tributário em relação aos tributos incidentes sobre o consumo. Desde o início dos debates e proposituras de um novo modelo de tributação, passou-se a conclamar o IVA-Dual (imposto sobre valor agregado — value-added tax — VAT) como aquele adequado.

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Por mais que não exista menção nenhuma ao IVA na Constituição alterada, o PLP 68/2024, projeto de lei complementar encaminhado pele equipe econômica do governo federal para regulamentar a reforma mencionada, já logo no início de suas exposições de motivo conclama que o IBS e a CBS compõem o chamado Imposto sobre Valor Adicionado – IVA Dual, cerne da reforma tributária [1].

O IVA não é lá um modelo com o qual já não estávamos acostumados. Em sua concepção ideal, o IVA é cobrado sobre toda e qualquer transação (base ampla) e possui mecanismos para se evitar a tributação em cascata, ou seja, evitar-se a não cumulatividade, já prevista, testada e amplamente debatida no nosso sistema tributário.

Em que pese o nome, o imposto sobre valor acrescido não incide, em regra, no valor que se agrega ao bem ou serviço, posto que o método mais comumente utilizado – débito x crédito – é subtrativo, seja pelo confronto dos tributos destacados nos documentos fiscais, método do imposto-contra-imposto (tax-on-tax), utilizado no ICMS e IPI, ou ainda, confrontando-se bases de entrada e saída, base-contra-base (basis on basis), utilizado no PIS e Cofins.

A técnica de não cumulatividade prevista pela EC 132/2023 é do imposto-contra-imposto, com a peculiaridade ainda de se exigir a liquidação do tributo pelo fornecedor para aproveitamento do crédito.

Comparação equivocada

Com tantas referências e inspirações nos sistemas e técnicas utilizadas pela legislação tributária estrangeira sobre a tributação do consumo, talvez a referência menos acertada seja chamar esse novo modelo de IVA Dual e compará-lo ao modelo de Canadá e Índia.

A menção ou qualquer comparação superficial com países que não possuem o mesmo nível de desenvolvimento, matrizes econômicas, mercado consumidor, ou ainda, com sistemas normativos distintos, posto que os dois países mencionados possuem tradição jurídica no common law [2], é no mínimo equivocada.

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No Canadá, que possui um modelo federativo com dois entes, governo federal e provincial, existe um imposto federal sobre bens e serviços, o GST (good and service tax), que em algumas províncias foi unificado/harmonizado no HST (harmonised sales tax). Além disso, outras províncias não unificaram seus tributos, cobrando em separado o PST [3] (provincial retail sales tax) [4].

O modelo federativo da Índia é divido entre as competências federais e estaduais. Nesse país foi instituído o GST (goods and services tax), num modelo duplo, existindo um GST central, cobrado pelo governo federal, e um GST estadual [5].

Portanto, os modelos de IVA no Canadá e na Índia são duplos em função do modelo federativo, considerando a dupla competência dos entes federados (federal e estados/províncias) para instituir seu próprio tributo [6].

Nada dual

Já no Brasil, o modelo de tributação sobre o comércio não é “dual” por alguns aspectos.

Primeiro porque a reforma tributária instituiu três tributos sobre o consumo IBS, CBS e IS, e ainda, manteve o IPI.  Portanto, coexistirão ao menos quatro tributos sobre o consumo previstos pela EC 132/2024.

O IBS, CBS e o IPI utilizam o modelo de não cumulatividade subtrativo do imposto-sobre-imposto, portanto, técnica de se tributar o valor agregado. Temos aí, três IVAs. O IS, na sua concepção atual, provavelmente será cumulativo [7], mas não deixa de ser um tributo incidente sobre a comercialização.

Não obstante, no contexto federativo brasileiro são três os entes que repartem competência da CBS e do IBS, União para o primeiro, estados e municípios compartilham do segundo. Inclusive, cada ente federativo fixará sua alíquota própria por lei específica. Portanto, não existe IVA nacional e subnacional, existem três entes que definem a alíquota desses dois tributos.

Portanto, seja pelo número de tributos criados/mantidos pela reforma tributária, ou ainda, pela quantidade de entes que compartilham essa nova sistemática de tributação, o IVA da reforma tributária não é dual.

Nomear nosso IVA como dual, passando uma ideia de adequação aos padrões internacionais ou de simplificação do nosso modelo de tributação sobre o consumo, não retira do nosso portifólio fiscal o IBS, CBS, IS, II, IPI e, durante a transição que se finda em 2032, ICMS, ISS, PIS e Cofins, sem se esquecer ainda da Cide e IRRF em casos de importação de serviço ou pagamento de royalties.

 


[1] Senhor Presidente da República,

  1. Submeto à apreciação de Vossa Excelência este Projeto de Lei Complementar, que regulamenta a Reforma Tributária promovida pela Emenda Constitucional nº 132, promulgada pelo Congresso Nacional em 20 de dezembro de 2023.
  2. O Projeto institui o Imposto sobre Bens e Serviços – IBS, de competência compartilhada entre Estados, Municípios e Distrito Federal, e a Contribuição Social sobre Bens e Serviços – CBS, de competência da União. Esses dois tributos compõem o chamado Imposto sobre Valor Adicionado – IVA Dual, cerne da Reforma Tributária. Ademais, o Projeto institui também o Imposto Seletivo – IS, de competência da União, com natureza regulatória, para desestimular o consumo de bens prejudiciais à saúde e ao meio ambiente. Reúne, portanto, a maior parcela dos assuntos delegados pela Emenda Constitucional à legislação complementar.

[2] Quebec é a única província com um código civil, que é baseado no Código Napoleão francês (Código Napoleônico). https://www.justice.gc.ca/eng/csj-sjc/just/img/courten.pdf

[3] Esse último, é chamado na província do Quebec de QST (quebec sales tax)

[4] https://taxsummaries.pwc.com/canada/corporate/other-taxes

[5] https://taxsummaries.pwc.com/india/corporate/other-taxes#

[6] Aqui nem se entra no debate se outros tributos especiais sobre o consumo também não poderiam descaracterizar essa classificação.

[7] Art. 153, VIII, § 6º, II da Constituição Federal. E Art. 394 do PLP 68/2020, segundo o qual: “O Imposto Seletivo incidirá uma única vez sobre o bem, sendo vedado qualquer tipo de aproveitamento de crédito do imposto com operações anteriores ou geração de créditos para operações posteriores.”

Autores

  • é mestrando em Contabilidade e Finanças pela Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), especialista em Direito Tributário pela Faculdade de Direito de Vitória (FDV), advogado atuante na área tributária e sócio do escritório David & Athayde Advogados.

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