Opinião

Reforma tributária e mecanismos de resposta a calamidades públicas

Autor

  • José Luis Ribeiro Brazuna

    é advogado em São Paulo e Brasília sócio fundador do Bratax (Brazuna Ruschmann e Soriano Sociedade de Advogados) professor do Instituto Brasileiro de Direito Tributário (IBDT) e mestre em Direito Tributário pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.

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23 de maio de 2024, 7h07

Em artigo aqui publicado em 11 de maio último, Alexandre Rossato S. Avila [1] chama a nossa atenção para a necessidade de ajuste da legislação gaúcha com relação às doações efetuadas em períodos de calamidade pública, tendo em vista a grave situação enfrentada pelo Rio Grande do Sul no presente momento.

Conforme o autor aponta, a legislação local estaria preparada para não exigir o ICMS sobre doações de mercadorias, em especial após a celebração do Convênio ICMS nº 54/2024. Esse convênio também assegurou a manutenção do crédito do ICMS relativo às operações anteriores, quando os contribuintes gaúchos efetuarem saídas de mercadorias isentas do imposto ou quando se tratar de mercadorias em estoque que tenham sido extraviadas, perdidas, furtadas, roubadas, deterioradas ou destruídas.

Quanto às doações em dinheiro, o articulista anota a necessidade de se ajustar a legislação local, pois a faixa de isenção ao ITCMD atualmente vigente seria muito baixa (pouco mais de R$ 3 mil). Basta alteração legislativa pela própria Assembleia Legislativa.

Ausência de mecanismos

Essas pertinentes observações despertam a nossa preocupação com relação à ausência de mecanismos de resposta às situações de calamidades públicas, tanto no texto da reforma tributária aprovada pela Emenda Constitucional nº 132/2023, quanto no primeiro projeto de lei complementar para a sua regulamentação (PLP 68/2024), recentemente apresentado pelo Poder Executivo ao Congresso.

O nosso texto constitucional prevê, no seu artigo 21, inciso XVIII, a competência da União para planejar e promover a defesa permanente contra as calamidades públicas, especialmente as secas e as inundações.  Além disso, a União é quem pode instituir empréstimos compulsórios para atender a despesas extraordinárias, decorrentes de calamidade pública (artigo 148, inciso I); e, ouvidos o Conselho da República e o Conselho de Defesa Nacional, é quem pode decretar estado de defesa para restabelecer a ordem pública ou a paz social, quando ameaçadas por calamidades de grandes proporções na natureza (artigo 136).

Spacca

Em razão da experiência enfrentada com a pandemia da Covid-19, inseriu-se no artigo 49, inciso XVIII, a competência para o Congresso decretar estado de calamidade pública de âmbito nacional, hipótese em que a União: (1) pode adotar regime extraordinário fiscal, financeiro e de contratações para atender às necessidades dele decorrentes; (2) pode utilizar processos simplificados de contratação de pessoal, em caráter temporário e emergencial, e de obras, serviços e compras; (3) pode apresentar proposições legislativas e atos de enfrentamento da calamidade, com dispensa das limitações legais quanto ao aumento de despesas e à renúncia de receita tributária, inclusive superando a vedação para a contratação com o poder público por parte de empesas em débito com a seguridade social; e (4) fica dispensada de observar uma série de regras relativas à manutenção do equilíbrio fiscal-orçamentário.

Com a implementação do novo sistema de tributação sobre o consumo, vigorará a regra do artigo 156-A, § 1º, inciso X, segundo a qual IBS e CBS não poderão ser objeto de incentivos e benefícios financeiros ou fiscais, salvo os regimes específicos, diferenciados ou favorecidos previstos na própria Constituição. Tais regimes, no entanto, dizem respeito a segmentos econômicos ou a bens e serviços específicos que, no curso do processo legislativo que levou à aprovação da Emenda nº 132, lograram romper a barreira da absoluta uniformidade da incidência do IBS e da CBS, que era advogada pelos autores intelectuais da reforma.

Há exceções, portanto, à uniformidade da tributação e à vedação da concessão de benefícios fiscais.  No entanto, nenhuma delas se mostra apropriada para responder a uma situação extrema como esta enfrentada pelo Rio Grande do Sul.

Hipóteses previstas

Considerando-se as hipóteses de isenção ou redução em 100% da cobrança do IBS e da CBS, poderá haver desoneração apenas do seguinte: serviços de transporte público coletivo de passageiros rodoviário e metroviário de caráter urbano, semiurbano e metropolitano; dispositivos médicos, dispositivos de acessibilidade para pessoas com deficiência e medicamentos; produtos hortícolas, frutas e ovos; serviços prestados por Instituição Científica, Tecnológica e de Inovação (ICT) sem fins lucrativos; automóveis de passageiros para pessoas com deficiência ou com transtorno do espectro autista, ou para uso como taxi; e atividades de reabilitação urbana de zonas históricas e de áreas críticas de recuperação e reconversão urbanística. No caso dos serviços de educação de ensino superior alcançados pelo Programa Universidade para Todos (Prouni), apenas a CBS poderá ser reduzida totalmente.

Todas essas hipóteses, porém, visam a adaptar a uniformidade da tributação a especificidades de cada segmento, tipo de serviço ou produto. É a mesma tônica da desoneração da Cesta Básica Nacional de Alimentos, cujo conteúdo proposto no PLP 68/2024 foi tão tímido ao ponto de excluir o sal da alimentação básica dos brasileiros.

A Emenda nº 132 previu, ainda, a criação do chamado regime de cashback, segundo o qual poderá haver a devolução do imposto a pessoas físicas, com o objetivo de reduzir as desigualdades da renda. Igualmente, não nos parece ser esse um mecanismo apropriado para o enfrentamento de calamidades situadas em pontos específicos do território nacional. Com efeito, ainda que uma crise ambiental como a gaúcha possa levar muitas pessoas a uma situação de relevante vulnerabilidade econômica, trata-se de uma catástrofe de tal proporção que alcança a comunidade na sua integralidade: ricos e pobres são atingidos.

Caminhos

Haveria espaço, de outro lado, para desonerações mais flexíveis com relação aos bens e serviços alcançados pelo imposto seletivo. No entanto, o impacto desse tipo de medida seria bastante limitado, uma vez que, por ora, o que se pretende onerar com o “imposto do pecado” são apenas veículos automotores, aeronaves, embarcações, bebidas alcóolicas, refrigerantes, produtos fumígenos e bens minerais.

O sistema tributário atual, ainda que repleto de vicissitudes, apresenta caminhos mais eficientes para dar resposta a crises como a enfrentada pelo estado do Rio Grande do Sul.  A maior liberdade para desonerar, se por um lado levou à construção de um sistema casuístico e de privilégios, por outro, se bem utilizada, permite uma pronta resposta do Direito Tributário a situações extremas.

Já há quem proponha, por exemplo, a aprovação de uma espécie de “Perse Gaúcho”, para desonerar de IRPJ, CSLL, PIS e Cofins as empresas instaladas naquele Estado, com o propósito de viabilizar a sua recuperação.  Para que uma medida desse tipo surta efeito, para além do ano de 2027, quando a PIS e Cofins já terão sido substituídas pela CBS, haverá a necessidade de se rever a regra absoluta do artigo 156-A, § 1º, inciso X.

Há de se pensar e propor rapidamente, portanto, algum tipo de ajuste para que o novo sistema criado pela Emenda nº 132/2023 possa também responder à altura quando houver crises similares de calamidade pública, ainda que não queiramos que eles se repitam.

Ao que nos parece, esse ajuste deve ser feito por alteração da Constituição, para que se aprove e posteriormente se regulamente um regime diferenciado para casos emergenciais de calamidade pública, como medida complementar àquelas que foram inseridas no texto constitucional por ocasião do enfrentamento da crise pandêmica recente.

A realidade se impõe em situações como essas, queiramos nós ou não.

 


[1] Tributação das doações em situação de calamidade. Consultor Jurídico. Disponível em https://www.conjur.com.br/2024-mai-11/tributacao-das-doacoes-em-situacao-de-calamidade-publica/.

Autores

  • é professor do IBDT, mestre em Direito Tributário pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e fundador do Bratax (Brazuna, Ruschmann e Soriano Sociedade de Advogados).

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