Opinião

Extensão dos efeitos objetivos da coisa julgada anglo-saxônica: o collateral estoppel

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25 de janeiro de 2024, 6h32

A doutrina da coisa julgada desenvolvida nos países da tradição da civil law é oriunda do antigo Direito Romano, remontando ao Digesto (século 6) [1] [2]. De outro lado, a influência do Direito Romano na Grã-Bretanha somente se tornou relevante a partir do século 11 [3]. Há, portanto, pelo menos 500 anos de tradições paralelas.

Com efeito, a necessidade de estabilizar as decisões judiciais de modo a proporcionar segurança jurídica e paz social, fim último da doutrina da res judicata romana, teve de ser satisfeita por outra via nas ilhas britânicas. O espaço deixado pela ausência da res judicata possibilitou o desenvolvimento de uma doutrina paralela para se chegar a resultados semelhantes.

O meio pelo qual os ingleses antigos asseguraram a estabilidade das suas decisões judiciais partiu de um princípio de direito material denominado estoppel [4]. O estoppel (do inglês antigo estoppen, parar), constituiu-se a partir de premissas éticas que visavam impedir a deslealdade nas relações sociais, semelhantes às do latino venire contra factum proprium. O estoppen, como o venire, é compreendido como uma cláusula geral da boa-fé objetiva que veda um sujeito de comportar-se contraditoriamente de modo a prejudicar terceiros [5].

Ora, os ingleses antigos passaram a aplicar esse princípio quando constataram, no comportamento processual das partes, manifestações contra as quais, posteriormente, não poderiam contraditoriamente opor-se. Assim, suas alegações, refutações, verificações probatórias, uma vez que integrassem os autos (records), não poderiam ser contrariadas por elas mesmas. Daí o estoppel by record. Com o tempo, os ingleses aperceberam-se que as decisões judiciais derivavam dos comportamentos processuais das partes. Aquilo que elas alegassem, provassem, defendessem, acabava por emoldurar, por assim dizer, a decisão prolatada no processo. Assim, as partes não poderiam contradizer o que fora estabelecido em decisão judicial, sob pena de, ao fazê-lo, contrariar seu próprio comportamento processual, ainda que de modo colateral. Do estoppel by record nasce o collateral estoppel, a saber, a vedação da relitigação daquilo que ficar judicialmente estabelecido.

Importante notar que, diferentemente da res judicata romana, no collateral estoppel inglês não há restrição a pedido ou a dispositivo. O collateral estoppel nasce para vedar às partes que reabram discussões acerca daquilo que for decidido, em amplíssima fórmula. A vedação, destarte, não se restringe ao julgamento de procedência ou improcedência dos pedidos principais, mas alcança as questões logicamente antecedentes (questões prejudiciais) a esse julgamento que o juiz vier a resolver [6] [7].

Assim, o direito inglês já contava com longa tradição de reconhecer a indiscutibilidade de questões decididas em juízo quando a doutrina da res judicata romana chegou na Grã-Bretanha [8]. Portanto, nos sistemas jurídicos de inspiração saxônica, a discussão acerca dos limites objetivos da coisa julgada causa pouca dificuldade, havendo consenso, por força do collateral estoppel, de que as decisões acerca de questões prejudiciais também são indiscutíveis pelas partes [9].


[1] Há referência mais antiga ao princípio da estabilidade das decisões judiciais, como faz notar Jordi Nieva Fenoll, em La Cosa Juzgada, p. 25-30, apontando para o preceito VI, § 5, do Código de Hamurabi (1753 a.C).

[2] O Digesto, como é sabido, representa uma compilação de fontes mais antigas. Entretanto, a escassez e a precariedade das informações relativas a essas fontes antigas torna inseguro precisar as datas com exatidão. Quando muito, poder-se-ia dizer que a doutrina da res judicata remonta ao século III, já que o Digesto, neste tema, faz referência a Ulpiano.

[3] A instabilidade da ocupação romana causada pela resistência britânica desde o século I até a sua retirada, no século V, mitigou a influência do sistema jurídico romano na Grã-Bretanha. Somente no século VI, com a chegada do cristianismo e, com ele, dos tribunais eclesiásticos, é que as doutrinas jurídicas romanas vicejaram entre juristas britânicos. Nada obstante, é somente com a Conquista Normanda, no século XI – notadamente com o convite a Lombard Vacarius para ensinar Direito Romano em Oxford -, que o sistema jurídico romano se propagou – e, com ele, a doutrina da res judicata. Cf. SCRUTTON, Thomas Edward. The influence of the Roman Law on the Law of England. Cambridge: Cambridge University Press, 1885. xvi, reimpresso em 2010 por The Lawbook Exchange.

[4] MARINONI, Luiz Guilherme. Coisa julgada sobre questão. São Paulo: RT, 2018, pp. 31-50.

[5] Cf, sobre todos, CORDEIRO, António Menezes. Da boa-fé no direito civil. 5ª reimp. Coimbra: Almedina, 2013, pp. 742-751. MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2018, § 74, n. 1-4 (livro digital).

[6] Questão logicamente antecedente é aqui tratada como sinônimo de questão prejudicial. Por questão prejudicial entende-se uma dúvida a respeito de um efeito jurídico afirmado ou refutado por uma das partes que antecede logicamente o pedido e que é objeto de controvérsia no processo. Por exemplo: a paternidade na ação de alimentos, a culpa na responsabilidade extracontratual subjetiva ou o nexo de causalidade na objetiva, a validade do contrato na busca pelo adimplemento contratual, a propriedade na indenização por perecimento do bem. A questão prejudicial pode ou não ser passível de suscitação via ação autônoma (MARINONI, Luiz Guilherme. Coisa julgada sobre questão, inclusive em benefício de terceiro. Revista de Processo | vol. 259/2016 | p. 97 – 116 | Set / 2016, §§ 3 e 4). Há controvérsia, no direito inglês, se o estoppel alcança somente os efeitos jurídicos decorrentes da resolução de questão prejudicial ou se também alcança os fatos dos quais derivam tais efeitos jurídicos.

[7] Talvez o significado que aqui se adota de questão prejudicial se assemelhe ao que Savigny denominou “motivos” da sentença (“É preciso atribuir autoridade de coisa julgada não apenas à decisão mesma (condenação  absolvição), mas também aos seus motivos; em outros termos, os motivos formam parte integrante da sentença e a autoridade da coisa julgada tem como limites o seu conteúdo, aí compreendidos os seus motivos. (M. E C. de Savigny, Sistema del derecho romano actual. Madrid: Centro Editorial de Góngora, s/d, apud MARINONI, Luiz Guilherme. Coisa julgada sobre questão (2018), p. 161, nota de rodapé n. 40). É possível que a má-compreensão acerca da expressão “motivos” utilizada por Savigny, dada a confundir-se com “fundamentos” da sentença, tenha gerado a acalorada reação de Giuseppe Chiovenda (Sulla cosa giudicata, Saggi di diritto processuale civile. v. 2, Milano: Giuffrè, 1993, pp. 399 e ss., apud MARINONI (2018), pp. 143 e ss.), para quem os “motivos” da sentença são mera cognitio, e não iudicium, mera etapa de raciocínio lógico, não podendo produzir efeitos de coisa julgada por não ter sido objeto de enfrentamento decisório sério, profundo e exauriente, por parte do juiz. Aliás, talvez aqui, justamente, resida a imprecisão de Chiovenda: embora se concorde que não se possa atribuir efeito de coisa julgada a fundamento (confusão com o raciocínio generalista para extração de ratio decidendi e aplicação de precedentes no case law), parece-me que a resolução de questões prejudiciais não necessariamente se dão em cognição sumária. Na verdade, questões prejudiciais podem ser tão relevantes para o julgamento acerca do pedido principal formulado pela parte que podem representar o ponto sobre o qual o juízo mais se debruce e as partes mais debatam. Se, de fato, a sentença possa resultar, em certa medida, de um exercício lógico, como derivação de premissas, não é menos certo que o acertamento das premissas sobre as quais essa derivação se produz deve ocorrer com a mesma seriedade. Assim, se as hipóteses aqui aventadas estiverem corretas, poder-se-ia solucionar o conflito entre Savigny e Chiovenda reconhecendo, com este último, que decisões judiciais que resolvam questões prejudiciais produzidas por meio de cognição sumária não podem produzir coisa julgada, assim como os fundamentos da sentença não o podem (problematiza-se, apenas, se os fatos podem. Mas essa caixa de pandora não será aberta aqui). Mas, de outro lado, quando a questão prejudicial é amplamente debatida pelas partes, com contraditório material e oportunidade de dilação probatória, e tendo o juiz decidido-a expressamente com a devida fundamentação, não há razão para que os “motivos” (na imprecisa dicção de Savigny), rectius: questões prejudiciais, produzam coisa julgada. Raciocínio análogo é desenvolvido por Luiz Guilherme Marinoni (2018), loc. cit e passim.

[8] Com a chegada da res judicata romana e todo o seu repertório conceitual adjacente, os ingleses passaram a reconhecer um âmbito de indiscutibilidade e imutabilidade no pedido principal – a claim preclusion, correspondente à noção tradicional de coisa julgada romana – e outro nas questões prejudiciais – as issue preclusions, correspondentes ao collateral estoppel e o direct estoppel.

[9] Cf. Restatement (Second) of Judgements – § 27 Issue Preclusion—General Rule “When an issue of fact or law is actually litigated and determined by a valid and final judgment, and the determination is essential to the judgment, the determination is conclusive in a subsequent action between the parties, whether on the same or a different claim.

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