Opinião

Problemas na consulta sobre a emergência climática da CIDH

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  • é professor de Direito Internacional na Universidade Federal de Minas Gerais coordenador do Grupo de Pesquisa em Cortes e Tribunais CNPq/UFMG membro da Diretoria do Ramo Brasileiro da International Law Association consultor internacional e organizador da obra Comentário Brasileiro à Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento.

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13 de maio de 2024, 13h22

Era esperado que a opinião consultiva sobre a emergência climática e os direitos humanos solicitada pela República da Colômbia e pela República do Chile à Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) atraísse um alto nível de participação. Enquanto a Opinião Consultiva nº 23 sobre Meio Ambiente e Direitos Humanos de 2017 teve a participação de quatro estados, três organizações internacionais e mais de 40 entidades da sociedade civil, garantindo assim uma participação significativa nos procedimentos consultivos da corte, o atual pedido de parecer consultivo superou amplamente esses números.

Lauro Alves/Secom

Nove estados, 17 órgãos de organizações internacionais e mais de 200 entidades da sociedade civil (incluindo comunidades, ONGs, instituições acadêmicas e indivíduos) participaram da consulta formulando argumentos (seja como pronunciamentos oficiais ou como amici curiae no sentido do artigo 73 do Regulamento da Corte) em relação às perguntas extremamente detalhadas feitas à corte. As observações escritas dos Estados e outras entidades já foram disponibilizadas no site da Corte Interamericana.

Em 9 de janeiro de 2023, a Colômbia e o Chile submeteram à Corte Interamericana de Direitos Humanos um pedido conjunto de parecer consultivo contendo 20 perguntas detalhadas sobre a Emergência Climática e os Direitos Humanos, de acordo com o artigo 64 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (CADH).

Esse pedido faz parte de uma tendência crescente nos estados da região de solicitar opiniões da corte, que parece igualmente disposta a responder a esses pedidos e, nessas ocasiões, a elaborar amplamente sobre as obrigações e interpretações das disposições da convenção. De acordo com o pedido conjunto, o objetivo era “esclarecer as obrigações dos Estados em responder à emergência climática em relação ao direito internacional dos direitos humanos”.

O questionamento visa tanto uma resposta em relação à dimensão individual quanto coletiva dos direitos humanos, permitindo que a corte se pronuncie sobre as obrigações dos Estados em relação a indivíduos e grupos de indivíduos que eventualmente possam ter seus direitos afetados devido a alterações decorrentes das mudanças climáticas resultantes de ações antropogênicas e suas emissões de gases de efeito estufa.

O nível extremamente alto de participação no procedimento consultivo perante a corte levanta questões tanto procedimentais quanto substantivas. A primeira delas diz respeito à condução efetiva dos procedimentos na fase oral. A corte parece estar ciente desse problema e, em uma Ordem Presidencial de 22 de fevereiro de 2024, dividiu as audiências em três locais diferentes (Bridgetown, Brasília e Manaus), consolidando sua prática de realizar atividades também fora de San Jose. A questão permanece sobre como processar e analisar todo o material submetido e como equilibrar as opiniões dos estados com as das organizações internacionais e da sociedade civil.

O objetivo desse ensaio é avaliar a significância dessa participação e identificar algumas de suas particularidades e as questões jurídicas que por ela levantadas, especialmente no que diz respeito à participação dos Estados. Embora a análise apresente mais perguntas do que respostas, talvez a própria Corte seja capaz de esclarecer essas questões quando emitir seu 32º parecer consultivo.

Questões relacionadas à participação: qual peso jurídico?

Comparado às mais de 200 contribuições da sociedade civil, que em sua maioria defendem argumentos progressistas sobre a proteção dos direitos humanos no contexto da emergência climática, apenas oito (dos 35) Estados membros da Organização dos Estados Americanos enviaram observações escritas à Corte Interamericana.

A possibilidade de outros estados membros participarem não está descartada. Na Ordem de 22 de fevereiro, a Corte também reservou tempo para os Estados membros que não enviaram observações escritas, e pode-se esperar que alguns estados aproveitem essa oportunidade para se manifestar. Vale ressaltar que nenhum dos Estados que enviaram observações contestou a jurisdição ou admissibilidade do parecer consultivo, a maioria deles acolhendo a iniciativa da Corte e a oportunidade de esclarecer obrigações decorrentes de diferentes regimes legais.

O nono Estado a participar dos procedimentos é a República de Vanuatu, que está particularmente envolvida na causa climática e em litígios. O artigo 73 do Regulamento da Corte Interamericana de Direitos Humanos não prevê expressamente a participação de Estados não membros da organização. A corte parece ter feito uma analogia com o artigo 44 da convenção (que na verdade trata das competências da Comissão) e afirma em seu site que “qualquer pessoa ou instituição pode apresentar um amicus curiae.

No entanto, dada sua prática flexível e bem estabelecida de admitir organizações internacionais e entidades civis como amici curiae, a decisão da corte de aceitar uma observação de um Estado não pertencente à OEA parece não surpreendente, especialmente à luz do interesse óbvio do Estado em questão.

No entanto, a prática futura será capaz de responder como os procedimentos consultivos da Corte Interamericana serão abertos a estados não-membros, em um claro movimento em direção à sua pretensão universalista. Outra questão emergente é se os estados não-membros também serão autorizados a intervir nas audiências orais e qual peso a corte atribuirá às suas observações.

Embora a presença dos estados no procedimento pareça não apresentar grandes problemas, há também a questão do papel atribuído às entidades e órgãos dos Estados que participam da opinião. Dez entidades sob a alcunha de “organismos estatales“, ou seja, entidades oficiais dentro dos Estados, enviaram contribuições.

Em alguns casos, o Estado em questão decidiu não enviar observações escritas por seu órgão central, mas alguma entidade pública submeteu suas opiniões sobre as questões levantadas (poderia ser este um exemplo de paradiplomacia legal?).

Por exemplo, embora a Guatemala não tenha enviado observações escritas, o Procurador de los Derechos Humanos da República o fez, aparentemente de forma oficial. Curiosamente, a División Relaciones Internacionales y Cooperación da cidade de Montevidéu também apresentou observações, embora o Uruguai não tenha enviado suas opiniões sobre as questões.

A extensão na qual essas observações escritas representam a posição de todo o Estado está aberta à discussão e há pouca prática da corte nesse sentido, pelo menos em relação aos procedimentos consultivos. Em outras ocasiões, a questão seguinte é se essas manifestações poderiam ser utilizadas internamente como posições oficiais do órgão do Estado.

Essa questão parece ser particularmente delicada quando se considera que alguns Estados que enviaram suas opiniões oficiais também tiveram órgãos infraestaduais enviando observações (como o México). Novamente, o peso atribuído a essas opiniões pela corte ainda está por ser verificado.

Se, por um lado, parece difícil vincular todo o Estado por meio de uma declaração de seus órgãos em um procedimento consultivo, o fato de a corte distinguir esse tipo de declaração, mesmo que por motivos organizacionais, como uma declaração de órgãos estatais, é significativo. Em pareceres consultivos anteriores, a corte parece ser particularmente propensa a enfatizar as opiniões dos Estados sobre certas questões.

​​Da mesma forma, pode-se questionar se as interpretações das obrigações de direitos humanos em relação às mudanças climáticas propostas por órgãos ou agências de organizações internacionais (13 no total), ou pelos órgãos da OEA (4), representam, até certo ponto, as opiniões de toda a organização ou carregam algum peso legal específico a ser destacado pela corte.

A corte não costuma mencionar a opinião de organizações da sociedade civil em seus pareceres consultivos, embora se possa sugerir que ela presta atenção especial a elas, especialmente aos materiais jurídicos coletados e aos argumentos apresentados.

A situação atual apresenta a dificuldade de avaliar todos os materiais submetidos em sua variedade: desde questões relacionadas a obrigações referentes aos combustíveis fósseis até interpretações da convenção em relação a grupos vulneráveis. Seja como for, o alto engajamento da sociedade civil pode significar, além do grande interesse no assunto, que uma grande parte dessas entidades estará prestando atenção ao pronunciamento da corte e provavelmente utilizará suas declarações em nível doméstico.

Questão latente: posições dos estados versus posições não estatais

Diante das muitas questões levantadas e que a corte terá que lidar (embora tenha o poder inerente de reformular as perguntas feitas a ela), há alguns pontos que são particularmente sensíveis e sobre os quais parece haver discordância entre os estados e as opiniões da sociedade civil (ver aqui e aqui).

Apenas para mencionar alguns, a questão da adjudicação direta dos direitos coletivos e ambientais via artigo 26 da Convenção Americana (uma questão evitada por alguns estados), os efeitos da aplicação do princípio de obrigações comuns, porém diferenciadas, em relação às obrigações de direitos humanos (ver, por exemplo, as observações de Barbados, Brasil, Chile, Colômbia, Costa Rica, El Salvador, México, Paraguai), e, eventualmente, a própria autonomia do direito humano a um clima equilibrado como um direito protegido sob a Convenção Americana — seguindo o reconhecimento da autonomia do direito a um meio ambiente saudável.

A opinião consultiva da Corte Interamericana sobre a emergência climática e os direitos humanos terá muitos tópicos sobre os quais elaborar, também em relação a outros tratados dos quais os estados da região são signatários, e sobre alguns dos quais não é possível verificar um consenso entre eles — ou mesmo o seu consentimento.

Qual será o papel do Acordo de Paris (e consequentemente as NDCs) na interpretação das obrigações de direitos humanos dos estados? Se o Acordo for considerado por alguns estados da região (como o Brasil) como um tratado de direitos humanos, parece pelo menos concebível que a Corte se pronuncie sobre essa questão. O mesmo vale para o Acordo de Escazú, que já está em vigor, mas não foi ratificado por alguns estados devido à resistência doméstica

Os juízes de San Jose estão diante de questões difíceis, mas necessárias, e o alto nível de participação de diferentes atores destaca as tensões subjacentes entre as expectativas da sociedade civil e as obrigações dos Estados nesse campo. A capacidade da Corte de responder a essas perguntas e de diminuir as tensões pode ser refletida não apenas no direito internacional interamericano, mas também de forma geral, na medida em que suas interpretações e esclarecimentos são adotados em debates universais, inclusive na Corte em Haia.

Autores

  • é professor de Direito Internacional na Universidade Federal de Minas Gerais, coordenador do Grupo de Pesquisa em Cortes e Tribunais Internacionais, organizador da obra Comentário Brasileiro à Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento.

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