Opinião

Pretensão de indenização por desfalques no Pasep e o termo inicial da prescrição

Autores

  • Leonardo Carneiro da Cunha

    é professor associado da Faculdade Direito do Recife (UFPE) nos cursos de graduação mestrado e doutorado e advogado sócio do escritório Carneiro da Cunha Advogados.

  • Marcelo Luz Chaves

    é graduado pela UFPE membro dos grupos de pesquisa em Teoria Contemporânea do Direito Processual (TCDP) e do Grupo de Pesquisa em Direito Processual Civil da Faculdade de Direito do Recife (FDR-PRO) advogado e sócio de Carneiro da Cunha Advogados.

9 de maio de 2024, 20h52

1. Situação que ensejou o Tema 1.150/STJ

O Banco do Brasil é responsável pela administração do Programa de Formação do Patrimônio do Servidor Público (Pasep), conforme estabelece o artigo 5º da Lei Complementar 8/1970.

Os valores do Pasep foram depositados, entre 1972 e 1988, em contas individuais administradas pelo BB, em favor dos servidores públicos da época, de todas as esferas do poder público.

Recentemente, à medida que os valores foram levantados e após exame dos extratos fornecidos pelo banco, perceberam-se significativos desfalques nas contas, resultando no ajuizamento de milhares de ações individuais.

2. Tema 1.150/STJ: legitimidade passiva do BB, prazo prescricional decenal e aplicação da teoria da actio nata

Essas demandas recentes não discutem os critérios de atualização dos valores depositados, como muito já se debateu em décadas passadas [1].

São, na verdade, demandas que discutem desfalques nas contas individualizadas, por ilegalidades praticadas pelo Banco do Brasil: ocorrência de saques e retiradas indevidos, ausência de creditamento dos recursos arrecadados nas contas individualizadas, inobservância dos parâmetros de correção monetária e juros estabelecidos pelo conselho diretor do fundo PIS-Pasep [2] etc.

Nesse contexto, surgiram controvérsias quanto a três matérias usualmente debatidas nessas ações: (a) a legitimidade passiva é da União, pessoa jurídica a qual estava vinculada o conselho diretor do fundo PIS-Pasep, ou do BB, o administrador das constas individualizadas? (b) o prazo prescricional aplicável é o quinquenal (Decreto-Lei 20.190/1932, artigo 1º) ou o decenal (Código Civil, art.igo05)? (c) a fluência do prazo prescricional se inicia do último depósito efetuado na conta individualizada ou da ciência dos desfalques pelo seu titular?

Analisando essas questões, em setembro de 2023, a 1ª Seção do Superior Tribunal de Justiça fixou as seguintes teses jurídicas [3]:

“i) o Banco do Brasil possui legitimidade passiva ad causam para figurar no polo passivo de demanda na qual se discute eventual falha na prestação do serviço quanto à conta vinculada ao Pasep, saques indevidos e desfalques, além da ausência de aplicação dos rendimentos estabelecidas pelo Conselho Diretor do referido programa;

ii) a pretensão ao ressarcimento dos danos havidos em razão dos desfalques em conta individual vinculada ao Pasep se submete ao prazo prescricional decenal previsto pelo art. 205 do Código Civil; e

iii) o termo inicial para a contagem do prazo prescricional é o dia em que o titular, comprovadamente, toma ciência dos desfalques realizados na conta individual vinculada ao Pasep”.

3. Termo a quo do prazo prescricional: acesso ao extrato de movimentações da conta individualizada do Pasep

A fixação da tese jurídica no julgamento de um recurso repetitivo não acaba, por definitivo, com as discussões sobre a matéria julgada. É sempre possível que, no debate processual, surjam nuances não apreciadas no precedente, ou, até mesmo, dúvidas sobre sua interpretação e extensão. A decisão judicial precedente é texto, tal qual a lei, dotado de equivocidade, e a ratio decidendi que se extrai do julgado também é, em alguma medida, vaga [4].

Spacca

Por isso, é necessário aprofundar a análise da terceira tese fixada no Tema 1.150/STJ, a fim de aclarar o seu sentido. Mais especificamente, é preciso averiguar qual seria “o dia em que o titular, comprovadamente, toma ciência dos desfalques realizados na conta individual vinculada ao Pasep”, para que se saiba com precisão qual o termo a quo do prazo prescricional da pretensão indenizatória.

Ao que nos parece, o termo inicial da prescrição é o dia em que é fornecido o extrato da conta individualizada do Pasep ao seu titular. Chegamos a essa conclusão apoiados em três elementos.

Primeiro, em razão dos casos paradigma do Tema 1.150/STJ.

Em dois deles (REsps 1.895.936/TO e 1.895.941/TO) [5], o TJ-TO havia decidido que “de acordo com a teoria actio nata, o termo inicial do prazo prescricional das ações indenizatórias é a data de conhecimento da suposta lesão e de suas consequências pelo titular, que, no caso, somente podem ser aferíveis a partir do acesso deste ao extrato de movimentação da conta Pasep”.

Ao julgar os casos concretos, à luz das teses jurídicas fixadas, a 1ª Seção do STJ entendeu que “o acórdão de origem decidiu de acordo com o entendimento deste eg. STJ, de modo que não merece reforma”. Confirmou-se, portanto, o acerto do TJ-TO quanto à fixação do termo a quo do prazo prescricional.

O cerne de todo sistema de precedentes judiciais é a adoção de soluções iguais para casos análogos; a analogia entre os casos é a pedra de toque da aplicação dos precedentes [6]. Por isso, as circunstâncias fáticas do leading case são essenciais para a correta compreensão do precedente firmado.

Segundo, em razão do voto do ministro Sérgio Kukina.

Os casos paradigmas foram relatados pelo ministro Herman Benjamin, que trouxe voto no sentido de o termo inicial da prescrição ser “o dia em que o titular toma ciência dos desfalques” [7]. Após, o mnistro Sérgio Kukina sugeriu o acréscimo do termo “comprovadamente” na tese, explicando o seguinte [8]:

“É claro que, aqui, pode estar implícita a ideia de que esse termo inicial indicado pela parte autora estará respaldado em algum elemento probatório mínimo. Mas, para que não ficasse dúvidas acerca desse ponto, eu consulto a Vossa Excelência, minha sugestão seria a seguinte: ‘o termo inicial para a contagem do prazo prescricional é o dia em que o titular, comprovadamente, toma ciência dos desfalques’.”

A sugestão foi aceita pelo ministro relator e acompanhada pelos demais membros da 1ª Seção, resultando na terceira tese jurídica fixada. Ressaltou-se, assim, a necessidade de comprovação da ciência dos desfalques pelo titular da conta individualizada.

Nesse contexto, é necessário considerar que, diferentemente de uma conta bancária ordinária, cujas movimentações podem ser acessadas a qualquer tempo pelos seus beneficiários, os extratos das contas individualizadas do Pasep não eram disponibilizados regularmente aos beneficiários do programa. Além disso, tratando-se o Pasep de programa federal, cujas contas individualizadas eram administradas por banco público bicentenário, havia uma legítima expectativa de que os valores depositados estivessem sendo zelosamente cuidados.

Assim, é apenas com o acesso ao extrato da conta individualizada que o seu titular terá comprovada ciência dos desfalques, pois poderá constatar as movimentações indevidas na sua conta.

Terceiro, em razão da jurisprudência consolidada do STJ sobre a matéria.

O próprio ministro Herman Benjamin, em seu voto, esclareceu que se centrou “naquelas questões que já despertaram a atenção da nossa Primeira Seção e das duas Turmas e sobre as quais há jurisprudência – não é pouca, que eu cito no meu voto”.

E, nesse contexto, a jurisprudência do STJ é consolidada no sentido de que “o termo inicial para o ajuizamento da ação em que se busca a reparação de danos é a ciência inequívoca, pelo titular, do direito subjetivo violado acerca da existência do fato e da extensão de suas consequências” (STJ, 1ª Turma, AgInt no REsp 1.811.857/MA, relator: ministro Napoleão Nunes Maia, DJe 9/10/2020).

Sem o acesso ao extrato das movimentações da conta individualizada, o seu titular não pode ter ciência inequívoca do fato ilícito e, muito menos, da extensão de suas consequências. Isso quer dizer que é apenas com a disponibilização do extrato que o titular da conta individualizada pode saber, com precisão, se houve desfalques em sua conta e qual a dimensão do seu prejuízo.

Enfim, apoiados nesses elementos, concluímos que o termo inicial da prescrição da pretensão de indenização pelos desfalques nas contas individualizadas do Pasep, nos termos do Tema 1.150/STJ, é a data em que o Banco do Brasil fornece o extrato da conta individualizada ao seu titular.

 


[1] Pretensão cuja prescrição já foi, inclusive, objeto de julgamento sob o regime dos recursos repetitivos no Tema 545/STJ: “É de cinco anos o prazo prescricional da ação promovida contra a União Federal por titulares de contas vinculadas ao PIS/Pasep visando à cobrança de diferenças de correção monetária incidente sobre o saldo das referidas contas, nos termos do art. 1º do Decreto-Lei 20.910/32”.

[2] As atribuições do Conselho Diretor do Fundo foram previstas pelos arts. 9º e 10 do Decreto 78.276/1976, 7º e 8º do Decreto 4.751/2003 e 3º e 4º do Decreto 9.978/2019. Por sua vez, as atribuições do Banco do Brasil foram estabelecidas pelos arts. 12 do Decreto 78.276/1976, 10 do Decreto 4.751/2003 e 12 do Decreto 9.978/2019.

[3] STJ, 1ª Seção, Tema 1.150, rel. min. Herman Benjamin, DJe 21/9/2023.

[4] CHAVES, Marcelo Luz. Precedentes judiciais: conceito(s) e características. Revista ANNEP de Direito Processual, v. 2, n. 2, art. 96, 2021, p. 82.

[5] O terceiro (REsp 1.951.931/DF) é oriundo do IRDR 0720138-77.2020.8.07.0000, pelo qual o TJDFT fixou a tese da legitimidade do Banco do Brasil para responder por essas ações. Não se discutiu, naquele caso, o prazo prescricional ou seu termo inicial.

[6] Há quem diga, inclusive, que o “Case-law, we might say, unlike statute law, tends to be analogized rather than interpreted” (DUXBURY, Neil. The nature and authority of precedent. Cambridge: Cambridge University Press, 2008, p. 59)

[7] https://www.youtube.com/live/OnVVBilw9IQ?si=yyksXCthFcfij89I&t=6799.

[8] https://www.youtube.com/live/OnVVBilw9IQ?si=yyksXCthFcfij89I&t=7155.

Autores

  • é professor associado da UFPE, professor da Universidade de Coimbra, procurador do estado de Pernambuco, advogado a sócio fundador de Carneiro da Cunha Advogados.

  • é graduado pela UFPE, membro dos grupos de pesquisa em Teoria Contemporânea do Direito Processual (TCDP) e do Grupo de Pesquisa em Direito Processual Civil da Faculdade de Direito do Recife (FDR-PRO), advogado e sócio de Carneiro da Cunha Advogados.

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