Opinião

Condenação da Suíça pelo Tribunal Europeu: mudança do clima é tema de direitos humanos

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7 de maio de 2024, 7h02

O Tribunal Europeu dos Direitos Humanos proferiu no último dia 9 de abril decisão condenando a Suíça por sua conduta omissiva no combate às alterações climáticas.

Corte Europeia de Direitos Humanos

O processo no âmbito do qual a decisão foi proferida foi ajuizado por uma associação de mulheres idosas suíças comprometidas com o sistema climático, a Verein KlimaSeniorinnen Schweiz, e outras quatro pessoas físicas.

Em síntese, as demandantes processaram a Suíça, uma vez que (i) a sua saúde estaria ameaçada pelo aumento das ondas de calor exacerbadas pelas alterações climáticas, bem como porque (2) o governo suíço teria violado os direitos humanos protegidos pela Convenção Europeia dos Direitos do Homem ao deixar de implementar legislação e medidas suficientes para combater as alterações climáticas.

Artigo recentemente publicado nesta ConJur, de autoria do excepcional professor Gabriel Wedy, detalha os termos do processo.

O tribunal concluiu que as ações que vêm sendo tomadas pela Suíça contra as alterações climáticas seriam, de fato, insuficientes e, ainda, que essa omissão constitui uma violação dos direitos humanos protegidos pela convenção.

Mais especificamente, o tribunal concluiu que a proteção à vida privada e familiar, conferida pelo artigo 8º da convenção, abrange o direito dos indivíduos de gozar de proteção efetiva, por parte do Estado, contra os efeitos e riscos nocivos das alterações climáticas sobre a sua vida, saúde, bem-estar e qualidade de vida.

Com efeito, para efetivamente garantir os direitos protegidos pelo artigo 8º da Convenção, o tribunal entendeu os Estados teriam a obrigação de adotar, e aplicar efetivamente, na prática, regulamentos e medidas capazes de mitigar os efeitos existentes e potencialmente irreversíveis, bem como os efeitos futuros da mudança do clima.

Em especial, em linha com outros compromissos internacionais sobre mudança climática, entendeu aquela corte que se faz necessário que os estados coloquem em prática, tempestivamente e de forma adequada e consistente, regulamentações e medidas necessárias para a redução substancial e progressiva dos seus níveis de emissão de GEE, com vista a alcançar a sua neutralidade, em princípio, até 2050.

Vale notar que o que foi determinante para a condenação da Suíça não foi propriamente a participação do país nas emissões globais de carbono, mas, sim, a constatação de que a atual política interna suíça não é suficiente para garantir a redução das emissões de GEE e para atingimento da neutralidade de carbono em 2050.

Nessa linha, o tribunal considerou ser necessário, para fins cumprimento do artigo 8º da convenção pelos estados, (1) a adoção de medidas gerais especificando um cronograma-alvo para alcançar neutralidade de carbono e orçamento global de carbono restante para o mesmo período, em linha com a meta de emissões nacionais e/ ou globais estabelecidas com base nos compromissos de mitigação das alterações climáticas celebrados;

(2) o estabelecimento de metas intermediárias de redução de emissões de GEE (por setor ou outras metodologias relevantes) que sejam considerados suficientes, em princípio, para cumprir as metas nacionais de redução de GEE dentro dos prazos relevantes assumidos nas políticas nacionais;

(3) o fornecimento de provas que demonstrem o cumprimento ou o processo de cumprimento das metas relevantes de redução de emissões de GEE;

(4) a manutenção das metas relevantes de redução de GEE atualizadas; e

(5) a sua atuação tempestiva, apropriada e consistente quando na concepção e implementação da legislação e medidas relevantes.

No que diz respeito à Suíça, o tribunal constatou que, além de ter deixado de cumprir objetivos anteriormente assumidos para a redução das emissões de GEE, existiam lacunas críticas no processo de implementação das regulamentações nacionais relevantes, incluindo uma falha em quantificar, através de um orçamento de carbono ou de outra forma, as limitações nacionais de emissões de GEE.

O tribunal concluiu, assim, que, ao deixar de agir de forma tempestiva, adequada e consistente em relação à concepção, desenvolvimento e implementação do quadro legislativo e regulamentar relevante, a Suíça violou o artigo 8º da convenção.

Vale notar que as demandantes não formularam um pedido indenizatório. Por isso mesmo, apesar de ter reconhecido a violação da Suíça ao artigo 8º da convenção, o tribunal não impôs qualquer condenação ou medida específica à Suíça, deixando a implementação do acórdão a cargo das autoridades suíças.

Impacto e consequências da decisão

Em um primeiro momento e sob um olhar mais cínico, é possível questionar, em um plano mais filosófico e ideológico do que jurídico, a real eficácia da decisão no combate às mudanças do clima. Afinal, qual o real impacto das emissões suíças de GEE? E, mais, qual será o impacto, na redução global de emissões de GEE e nas alterações climáticas, da imposição e da adoção, pela Suíça, de uma política climática mais efetiva?

Quer nos parecer, no entanto, que a recente decisão do tribunal tem impacto simbólico e político, marcando o reconhecimento das implicações das mudanças climáticas nos direitos humanos e nas obrigações dos Estados para combater seus efeitos.

E, para além dos estados-membros do Conselho da Europa que estão sob a jurisdição do tribunal, a decisão terá, ao nosso ver, um impacto global.

Interessante notar aqui que, apesar de as alterações climáticas acontecerem a nível global e não respeitarem fronteiras, a decisão deixa claro que cada Estado, independente da sua participação nas emissões cumulativas globais de CO2, deve tomar, no âmbito da sua política interna, todas as medidas necessárias e ao seu alcance para cumprir as metas de redução de emissão de GEE a que se comprometeu, e alcançar a sua neutralidade até 2050. Caso contrário, poderá ser responsabilizado.

Justamente porque a decisão reforça a responsabilidade dos Estados na atuação contra as alterações climáticas e na proteção dos direitos humanos em relação a essas alterações, a decisão pode vir a influenciar (e mesmo pressionar) outros países, incluindo o Brasil, a adotar políticas mais robustas e eficazes para reduzir as emissões de GEE e proteger os direitos dos cidadãos em relação às mudanças climáticas.

Até porque, a decisão não só destaca a necessidade de os Estados implementarem e adotarem, na prática, regulamentação e medidas tempestivas e eficazes para combater as mudanças climáticas, como traz também (ao menos alguns) parâmetros esperados das ações estatais contra as alterações do clima.

Com a decisão fica claro, por exemplo, a necessidade da atuação imediata de cada Estado e, ainda, a importância do estabelecimento de metas intermediárias de redução de emissões de GEE, não sendo suficiente ou adequado a mera indicação de que a neutralidade de carbono será atingida em 2050.

A decisão pode aumentar, ainda, a conscientização global sobre a urgência da ação climática e a própria litigância climática, incentivando indivíduos e organizações, inclusive brasileiros, a buscar o Poder Judiciário para responsabilizar empresas cujas operações produzam emissões significativas de GEE ou cujas atividades favoreçam, de alguma outra forma, o aumento da temperatura do planeta, bem como o próprio governo, por suas políticas climáticas insuficientes ou inadequadas.

No Brasil seria possível pensar, por exemplo, no ajuizamento de ação direta de inconstitucionalidade por omissão ou mesmo de uma arguição de descumprimento de preceito fundamental sob o argumento, em linha com o que restou decidido pelo Tribunal Europeu, de que a política climática brasileira, tal como posta, não seria suficiente para a proteção e defesa dos direitos fundamentais à vida (artigo 5º, caput, da Constituição Federal), à saúde (artigo 6º da CF), à dignidade das pessoas (artigo 1º, III, da CF) e ao meio ambiente ecologicamente equilibrado (artigo 225, caput, da CF), bem como dos direitos e compromissos internacionais assumidos pelo Brasil (artigo 5º, § 2º, da CF).

E a discussão, nos parece, teria resultado incerto. Se, de um lado, o Brasil é signatário de vários tratados internacionais (incluídos aí aqueles que tratam do clima), não se pode negar, de outro, a existência de frequentes discussões acerca da sua aplicabilidade e até mesmo sobre o seu real sentido e alcance.

Vislumbra-se, ainda, a possibilidade de outros tribunais internacionais, como a Corte Interamericana de Direitos Humanos, serem acionados para examinar o papel da política climática e da (in)ação dos Estados no que tange aos efeitos da questão climática sobre os direitos humanos.

O ponto que nos parece definitivamente tomado como referência é o da relação direta e inafastável entre Direitos Humanos e mudança do clima. As discussões acerca desse tema permeiam a frente ambiental, a frente da biodiversidade, e precisa debruçar-se sobre os efeitos da mudança do clima sobre a viabilidade da vida humana.

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Fenômenos climáticos extremos, a exemplo do vivido nos últimos dias no Rio Grande do Sul, a frequência alarmante dos incidentes envolvendo os refugiados do clima, que buscam espaços em que a vida ainda é viável pela disponibilidade de recursos naturais a tanto, entre tantos outros eventos, reforçam a necessidade de se ter olhar sobre a relação entre vida humana, mais ainda do que Direitos Humanos, e o fenômeno da mudança do clima.

Demandas como a posta na Suíça, que foi admitida pela Corte Europeia, que negara exame de questão de mesma ordem quando provocada por cidadãos que pretendiam responsabilizar o governo português — ali por questões de ordem procedimental, porquanto ainda não se tinham esgotado debates em âmbito administrativo — pela inação diante da questão climática, estabelecem os parâmetros para tais discussões entre a sociedade civil e os estados.

Assim, ainda que tímida a decisão da Corte Europeia de impor obrigações ao Estado suíço, timidez esta que se credita a um cuidado extremo no que tange à intervenção sobre políticas internas dos Estados, ainda que derivada de um instrumento internacional que se invocou descumprido, vemos na decisão uma tendência que entendemos será intensificada: os países serão chamados a efetivamente estabelecer políticas internas adequadas ao atendimento às medidas necessárias à redução efetiva das emissões de GEE.

O efeito desses debates, no plano internacional, será de enorme dimensão. A uma, porque a assimetria de medidas internas entre Estados necessariamente gerará assimetrias que desencadearão medidas de reequilíbrio que provavelmente serão implementadas no plano das relações econômicas entre Estados, gerando o uso de barreiras econômicas não-tarifárias como veículo de reequilíbrio, o que é sempre polêmico.

A duas, porque a efetiva adoção das medidas de controle interno de emissão de GEE deverá ser conduzida de forma a não desqualificar os Estados que historicamente tiveram menor contribuição às emissões de GEE como destinatários dos inúmeros mecanismos que se espera, um dia, deixem de ser pauta teórica das Conferências das Partes (COPs) da Convenção-Quadro sobre a Mudança do Clima (UNFCCC) para tornarem-se efetivas.

A espera pela efetiva implementação do Acordo de Paris, ao mesmo tempo em que gera expectativas, pode ser um fator de contenção no desembolso de verbas próprias, no combate às emissões de GEE, pelos estados que aguardam verbas vindas da implementação do referido acordo.

E enquanto essa intrincada rede, de múltiplas variáveis, nos leva a cada dia mais próximos da irreversibilidade dos efeitos da mudança do clima, a decisão do Tribunal Europeu nos mostra a sabedoria dos excepcionais: já em 1991 o saudoso e inigualável professor Guido Soares dizia a seus alunos que “o Direito, no futuro, se resumirá a duas vertentes: os direitos humanos e os direitos do ambiente”. “O mais será derivado dessas duas vertentes.”

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