Direito Eleitoral

O combate à violência política de gênero e as eleições municipais de 2024

Autores

  • Denise Neves Abade

    é doutora em Direito Constitucional e Processual pela Universidad de Valladolid (Espanha) mestre em Direito Processual pela Universidade de São Paulo professora da Universidade Presbiteriana Mackenzie professora membro do Berkeley Center on Comparative Equality & Anti-discrimination Law da Faculdade de Direito da Universidade da Califórnia—Berkeley e procuradora regional da República.

  • Juliana Rodrigues Freitas

    é doutora em Direito Público pela Universidade Federal do Pará com pesquisa sanduíche na Università di Pisa (Itália) e na Universidad Diego Portales (Chile) mestra em direitos humanos pela Universidade do Pará pós-graduada em Direito do Estado pela Universidade Carlos III de Madri (Espanha) professora do Programa de Mestrado em Direito da Graduação e Especializações do Centro Universitário do Estado do Pará (Cesupa) advogada e consultora jurídica na área de Direito Público fundadora da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político (Abradep) e titular da Comissão Especial de Direito Eleitoral OAB Nacional (2022-2024).

22 de janeiro de 2024, 11h34

“A violência, distinguindo-se do poder, é muda; a violência tem início onde termina a fala” (ARENDT, 2002, p. 41). A célebre frase de Hannah Arendt correlaciona violência e política. Há uma equivalência entre a ação política e o discurso – e a violência, nesse contexto, é o oposto da ação política.

Os sistemas democráticos contemporâneos, contudo, não conseguiram coibir a violência política estrutural, naturalizada e camuflada, com presença permanente nas relações sociais. A perpetuação da violência assim é uma forma de calar e barrar conquistas de transformação que grupos que não costumam ocupar os espaços de poder tentam impor. E é exatamente este o fenômeno da violência política de gênero.

Um estudo do IPU e do Pace (Inter-Parliamentary Union and Parliamentary Assembly of the Council of Europe) sobre sexismo, assédio e violência contra mulheres no parlamento de 39 países em cinco regiões e 42 parlamentos concluiu que 81,8% das mulheres sofreram violência psicológica; 46,7% temeram por sua segurança e a de sua família; 44,4% receberam ameaças de morte, estupro, espancamento ou sequestro; e 25,5% sofreram violência física (INTER-PARLIAMENTARY UNION (IPU) AND PARLIAMENTARY ASSEMBLY OF THE COUNCIL OF EUROPE, 2018 [1].

No Brasil, os dados também são alarmantes. O Instituto Alziras produziu em 2018 o relatório “Perfil das Prefeitas do Brasil”, que apresentou dados das prefeitas eleitas em 2016. De acordo com o relatório, a falta de recursos para campanha e de apoio do partido ou da base aliada, com o assédio e a violência no espaço político e a falta de visibilidade na mídia em comparação aos políticos homens, são as principais barreiras que impedem o acesso e a permanência das mulheres na política, especialmente para as prefeitas. Além disso, mais da metade das mulheres eleitas (53%) afirmaram ter sofrido assédio ou violência política simplesmente por serem mulheres. (INSTITUTO ALZIRAS, 2023. Mulheres no Poder) [2].

Basta citar recentes casos envolvendo ameaças de morte e/ou outros tipos de violências contra Manuela D’Ávila, Eliana de Jesus, Isa Penna, Benny Briolly, Duda Salabert, Carolina Iara e Erika Hilton. Ressalte-se que as mulheres sofrem violência política também dentro dos próprios partidos. Não apenas adversários políticos, mas colegas da mesma estrutura partidária muitas vezes agem para limitar o acesso das mulheres às instâncias internas de poder e organização. Nesse contexto, o homicídio da vereadora Marielle Franco deveria ter sido encarado como um compromisso das autoridades brasileiras com nosso Estado Democrático; um marco para a justiça brasileira na defesa de Direitos Humanos. Um símbolo de uma grande transformação, mas isso ainda não ocorreu!

Seguindo a tendência internacional, após o rumoroso caso de Marielle e atendendo aos mandados de criminalização dos textos internacional, em 4 de agosto foi promulgada a Lei nº 14.192 (BRASIL, 2021), que estabelece normas para prevenir, reprimir e combater a violência política contra a mulher e dispõe sobre os crimes de divulgação de fato ou vídeo com conteúdo inverídico no período de campanha eleitoral, para criminalizar a violência política contra a mulher e para assegurar a participação de mulheres em debates eleitorais proporcionalmente ao número de candidatas às eleições proporcionais.

Nos termos da lei, considera-se violência política contra a mulher toda ação, conduta ou omissão com a finalidade de impedir, obstaculizar ou restringir os direitos políticos da mulher, sendo igualmente atos de violência política qualquer distinção, exclusão ou restrição no reconhecimento, gozo ou exercício de seus direitos e de suas liberdades políticas fundamentais, em virtude do sexo.

As normas para prevenir, reprimir e combater a violência política contra a mulher, nos espaços e atividades relacionados ao exercício de seus direitos políticos e de suas funções públicas, e para assegurar a participação de mulheres em debates eleitorais, além da disposição sobre os crimes de divulgação de fato ou vídeo com conteúdo inverídico no período de campanha eleitoral estão previstas na Lei nº 14.192 (BRASIL,2021), que, ainda, garante os direitos de participação política da mulher, vedadas a discriminação e a desigualdade de tratamento em virtude de sexo ou de raça no acesso às instâncias de representação política e no exercício de funções públicas.

As autoridades competentes deverão priorizar o imediato exercício do direito violado, conferindo especial importância às declarações da vítima e aos elementos indiciários.

Esta lei estabelece importantes alterações no Código Eleitoral – Lei nº 4.737 (BRASIL, 1965), na Lei dos Partidos Políticos – Lei nº 9.096 (BRASIL, 1995) e na Lei das Eleições – Lei nº 9.504 (BRASIL, 1997) no que toca ao combate à violência política de gênero, com a tipificação de crimes eleitorais praticados em razão dessa prática. Uma primeira modificação, quanto à propaganda que não será tolerada caso que deprecie a condição de mulher ou estimule sua discriminação em razão do sexo feminino, ou em relação à sua cor, raça ou etnia. (BRASIL. Lei nº 4.737, 1965, artigo 243, X)

Além de a propaganda dever ser imediatamente retirada do meio de comunicação onde está sendo divulgada, sob pena de agravamento da conduta, a mulher que se sentir ofendida por calúnia, difamação ou injúria, sem prejuízo e independentemente da ação penal competente, poderá demandar, no juízo cível, a reparação do dano moral respondendo por este o ofensor e, solidariamente, o partido político deste, quando responsável por ação ou omissão, e quem quer que favorecido pelo crime, haja de qualquer modo contribuído para ele. Além disso, assegura-se o direito de resposta por meio de imprensa, rádio, televisão ou alto-falante, em medida proporcional ao agravo sofrido.

A segunda alteração atribuída pela Lei nº 14.192 foi o agravamento da pena de ⅓ até a metade se o crime de divulgar, na propaganda eleitoral ou durante período de campanha eleitoral, fatos que sabe inverídicos em relação a partidos ou a candidatos e capazes de exercer influência perante o eleitorado, envolver menosprezo ou discriminação à condição de mulher ou a sua cor ou etnia – Lei nº 4.737, artigo 323, §2 o , II (BRASIL, 1965).

O artigo 326-B da Lei nº 4.737 (BRASIL, 1965) tipifica como crime eleitoral assediar, cominado com a pena de reclusão de um a quatro anos, e multa, constranger, humilhar, perseguir ou ameaçar, por qualquer meio, candidata a cargo eletivo ou detentora de mandato eletivo, utilizando-se de menosprezo ou discriminação à condição de mulher ou à sua cor ou etnia, com a finalidade de impedir ou de dificultar a sua campanha eleitoral ou o desempenho de seu mandato eletivo. Com o aumento da pena em um terço, se o crime for cometido contra mulher gestante; maior de sessenta anos ou com deficiência.

Os crimes de calúnia, injúria e difamação na propaganda eleitoral terão a pena de detenção mais o pagamento de multa aumentadas em um terço até a metade quando cometidos, nos termos do artigo 327, IV, da Lei nº 4.737 (BRASIL, 1965), com menosprezo ou discriminação à condição de mulher ou à sua cor, raça ou etnia.

Em relação à Lei dos Partidos Políticos houve a inclusão, pela Lei nº 14.192, da norma do inciso X, artigo 15, que dispõe que o estatuto partidário deverá conter normas de prevenção, repressão e combate à violência política contra a mulher, e ainda, estabelece um período de adequação estatutária de 120 dias, prazo esse já encerrado considerando a data da publicação da lei em 4 de agosto de 2021.

A Lei das Eleições, também alcançada pela modificação introduzida pela Lei nº 14.192, recebeu redação no texto do artigo 46, II, para estabelecer que nas eleições proporcionais, os debates deverão ser organizados de modo que assegurem a presença de número equivalente de candidatos de todos os partidos a um mesmo cargo eletivo e poderão desdobrar-se em mais de um dia, respeitada a proporção de homens e mulheres.

Não apenas a legislação eleitoral foi alterada para absorver a violência política como conduta a ser reprimida, como eventual conteúdo de propaganda ou como crime eleitoral, ou mesmo em situação de agravamento de penalidades para tipificações já previstas; a própria legislação penal enfatiza a necessidade do combate à violência contra a mulher, quando por intermédio da Lei nº 14.197 (BRASIL, 2021), acrescenta o título XII, na parte especial do Código Penal, relativo aos crimes contra o Estado Democrático de direito, e mais precisamente no capítulo III, tipifica a violência política, em seu artigo 359-P, como medida que restringir, impedir ou dificultar, com emprego de violência física, sexual ou psicológica, o exercício de direitos políticos a qualquer pessoa em razão de seu sexo, raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional, e comina pena de reclusão, de três a seis anos, e multa, além da pena correspondente à violência.

Além do movimento no âmbito do legislativo, sob a perspectiva da atuação do Judiciário, o Conselho Nacional de Justiça, por meio do Grupo de Trabalho instituído pela Portaria nº 27, de 2 de fevereiro (CNJ, 2021), elaborou o protocolo para julgamento com perspectiva de gênero, estabelecendo, dentre outras boas práticas, que ao analisar o cumprimento do mínimo por sexo nos registros de candidaturas, por meio do Demonstrativo de Regularidade dos Atos Partidários (Drap), convém à magistrada ou ao magistrado eleitoral adotar postura ativa e sensível à realidade para afastar subterfúgios, como candidaturas fictícias, com a determinação, aos partidos políticos, de exibição de formulário de pedido de registro de candidatura, para conferir a veracidade das informações. E, desde que constatada a falta de autorização, torna-se necessário desconsiderar o quantitativo no cálculo, e caso o número restante não alcance o mínimo legal, o indeferimento do pedido de registro de todo partido revela-se medida adequada (CNJ, 2023. Protocolo para julgamento com perspectiva de gênero 2021) [3].

A previsão de reservas de vagas para disputa de candidaturas proporcionais foi estendida à composição das comissões executivas e dos diretórios nacionais, estaduais e municipais dos partidos políticos, daí a imprescindibilidade do auxílio das Escolas Judiciais Eleitorais ao cumprimento da determinação, pois responsáveis pela capacitação de magistradas e magistrados, servidores e servidoras e dirigentes partidários enquanto replicadores de educação feminista para uma consciência crítica.

Orienta, ainda, o protocolo que assegurar ou regular o lançamento das candidaturas e a participação efetiva no processo eleitoral é necessário, legítimo e urgente, incluindo as de pessoas transgênero, contabilizadas nas cotas de gêneros a partir da autodeclaração. Em caso de burla, faz-se indispensável resposta imediata da instituição responsável por zelar pela efetividade das normas legais, a Justiça Eleitoral.

No que concerne à distribuição do tempo de propaganda eleitoral gratuita, o Tribunal Superior Eleitoral, reconhecendo a prevalência ao princípio da dignidade da pessoa humana e da igualdade de gênero (artigos 1º, III, e 5º, caput, respectivamente, ambos da Constituição Federal), e a assimetria na ocupação de cadeiras em razão do gênero, impôs percentual mínimo na distribuição do tempo de propaganda eleitoral gratuita (Consulta nº 0600252-18/DF), adotando a mesma ratio decidendi do Supremo Tribunal Federal na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 5.617, ou seja, o tempo de propaganda deverá equivaler, proporcionalmente, ao percentual de candidaturas registradas em razão do gênero, a partir do mínimo de 30%.

O protocolo reconheceu que programas de criação ou manutenção à participação política feminina são essenciais para a devida inserção igualitária, plural e multirracial das mulheres nos espaços de poder e decisão, ressalvando a importância da fiscalização e do incentivo da Justiça Eleitoral, efetivada pela aplicação de sanções, incluindo a suspensão de repasse de verba do fundo partidário pela ausência de destinação do mínimo legal, a ser aferida na prestação de contas anual do partido político.

Afastar do ambiente democrático práticas que obstam a inserção feminina igualmente mostra-se prioritário, inclusive porque implicam em violência política contra a mulher, sendo o emprego de políticas afirmativas indispensável a tal fim, conclusão alcançada diante das novas composições dos parlamentos de países vizinhos, inauguradores da reserva de vagas nos assentos legislativos.

É necessário reconhecer a importância de medidas de conscientização que devem ser adotadas especialmente pelos partidos políticos, diretamente responsáveis pelo enfrentamento dessa violência que começa, na maioria da vezes, nas próprias agremiações partidárias, de modo a promover o acesso à educação no que toca à violência política contra a mulher, como a elaboração de cartilha pelo Ministério Público Federal em conjunto com outras entidades, como o Observatório de violência política contra a mulher, e órgãos do Judiciário, Legislativo e Executivo, no intuito não apenas de reprimir, mas de evitar que essa violência, muitas vezes reiterada e institucionalizada, perpetue-se nos espaços de poder (MPF, 2023. Cartilha sobre Violência Política de Gênero) [4].


[1] Disponível em htpp:///C:/Users/Usuario/Downloads/en_2018-issues_brief_web%20

[2] Disponível em: http://alziras.org.br/projetos#PrefeitasBrasileiras)

[3] Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2021/10/protocolo-18-10-2021-final.pdf

[4] Disponível em: https://www.mpf.mp.br/pgr/documentos/Cartillabras11compactado.pdf)

Autores

  • é doutora em Direito Constitucional e Processual pela Universidad de Valladolid (Espanha), mestra em Direito Processual pela Universidade de São Paulo, professora do IDP (PPGD) e da Universidade Presbiteriana Mackenzie, professora membro do Berkeley Center on Comparative, Equality & Anti-discrimination Law, da Faculdade de Direito da Universidade da California, Berkeley, e procuradora Regional da República.

  • é fundadora da Abradep. doutora em Direito Público pela Universidade Federal do Pará, com pesquisa sanduíche na Università di Pisa (Itália) e na Universidad Diego Portales (Chile), mestra em Direitos Humanos pela Universidade do Pará, pós-graduada em Direito do Estado pela Universidade Carlos III de Madri/Espanha, professora do programa de mestrado em Direito, da graduação e especializações do Centro Universitário do Estado do Pará (Cesupa), advogada e consultora jurídica na área de Direito Público e titular da Comissão Especial de Direito Eleitoral, OAB Nacional (2022-2024).

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