Opinião

STF define temática das gravações ambientais clandestinas para fins eleitorais

Autor

  • Guilherme Barcelos

    é doutorando em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP-DF) mestre em Direito Público pela Unisinos-RS pós-graduado em Direito Constitucional (ABDConst) e em Direito Eleitoral (Verbo Jur.) graduado em Direito pela Urcamp-RS membro fundador da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político (Abradep) membro da Comissão de Direito Eleitoral da OAB-DF e professor da pós-graduação em Direito Eleitoral da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj) advogado e sócio-fundador da Barcelos Alarcon Advogados (Brasília).

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5 de maio de 2024, 6h04

Poucas matérias foram tão controversas no âmbito do direito eleitoral sancionador brasileiro quanto o debate que envolve a ilicitude das chamadas gravações ambientais clandestinas como “provas” acusatórias de eventual ilícito tipificado na legislação.

O tema, aliás, foi tratado por este que vos escreve mediante livro, hoje em quarta edição, publicado pela editora Juruá, de Curitiba, intitulado de “Processo Judicial Eleitoral e Provas ilícitas: a problemática das gravações ambientais clandestinas“. A primeira edição data de 2014. E lá se vão dez anos.

Nesta Conjur mesmo escrevemos vários textos para lidar com a temática. E atuamos, no mais, na condição de advogados, perante o STF, justamente para discutir a questão, mediante representação do “Amicus Curiae”, a União dos Vereadores do Brasil (UVB). O tema, portanto, é caro a nós outros.

Na sexta-feira, 26 de abril, o STF resolveu, vez por todas, reputar como ilícitas as gravações ambientais clandestinas para fins eleitorais, assentando, no bojo do RE 1.040.515 (Tema 979), a partir do voto proferido pelo ministro Dias Toffoli, a seguinte tese:

São ilícitas as gravações ambientais clandestinas no âmbito do direito eleitoral, salvo se autorizadas judicialmente, ou realizadas em local aberto, desde que não haja qualquer controle de acesso.

Votaram neste sentido: ministro Dias Toffoli, Gilmar Mendes, Alexandre de Moraes, Cristiano Zanin, Flávio Dino, Nunes Marques e André Mendonça. Divergiram: ministro Roberto Barroso, Luiz Fux, Carmen Lúcia e Edson Fachin.

Consolidado, portanto, o entendimento, por maioria de sete votos a quatro, em sede de Repercussão Geral (RE 1040515, Tema 979), valendo dizer: o entendimento é vinculante, permeando todas as instâncias da Justiça Eleitoral, devendo ser aplicado, desde já, incluídas, diga-se, as eleições 2024 e as demandas judiciais daí derivadas.

O que são as gravações ambientais clandestinas?

As gravações ambientais clandestinas são aquelas que registram o conteúdo de diálogos e que são promovidas por um interlocutor sem o conhecimento do outro. Trata-se, portanto, da captação premeditada e escamoteada do conteúdo de uma conversa, realizada por um dos participantes sem que o outro tenha conhecimento disso.

Já a prática em questão foi e segue sendo recorrente no âmago dos processos eleitorais brasileiros, especialmente em eleições municipais, que são mais concentradas e nas quais os ânimos mais acirrados acabam sendo a tônica.

Tão recorrente o é a prática que o ex-ministro do TSE Tarcisio Vieira de Carvalho Neto chegou a chamar esse fenômeno de “kit 41-A”, em alusão ao ilícito de captação ilícita de sufrágio, também conhecido como “compra de votos”. Enfim, uma prática vil, rasteira, baixa, a denotar a construção de um ilícito de ensaio, uma pantomima acusatória — o sujeito induz o diálogo, capta o conteúdo sem o outro saber, registra o conteúdo, entrega a terceiros e estes fazem uso dele em juízo contra os seus adversários políticos.

Spacca

Isso, diga-se, jamais deveria ter sido aceito pela jurisdição eleitoral como prova de algum ilícito eleitoral, jamais. Mas assim o foi, por um bom tempo, em muitos dos tribunais regionais eleitorais brasileiros, com o apoio acalorado e criticável, de igual forma, do Ministério Público Eleitoral. Lembro até hoje de um procurador regional eleitoral dizendo que a Justiça Eleitoral não poderia fechar os olhos para o fato e que ela deveria punir os ilícitos. Dizia eu: em processo de feição acusatória forma é garantia. E não se pune eventual ilícito passando por cima das garantias processuais e de vários direitos fundamentais outros, como a privacidade de um diálogo e a própria inviolabilidade do domicílio. O contrário seria dar vazão, como queria o procurador, a um pensamento de exceção, onde uma abstração, como “interesse coletivo”, poderia subjugar a normatividade constitucional, um direito fundamental, como a inadmissibilidade das provas ilícitas. Sabemos de onde vem esse tipo de pensamento e o que ele promoveu no curso do século 20… Deveria ter aberto algum livro de história, o (ex…) procurador.

O próprio TSE denotou, todavia, acerca desta polêmica, desde 2012, ao menos, uma postura pendular em suas decisões, ora se posicionando pela licitude, ora pela ilicitude, fato que só fez acirrar as discussões. Veio agora, então, o STF, e resolveu de uma vez essa controvérsia, ao menos assim esperamos. Era hora de dar um fim a essa insegurança jurídica, mas, mais do que isso, a prática condenável em si, a mesma a denotar a apresentação de acusações baseadas no ardil, na deslealdade, na fraude mesmo.

Portanto, de uma vez por todas: com a ressalva do STF, mas segundo o mesmo STF, é ilícita a prática de gravar clandestinamente um diálogo para depois usá-lo em processo acusatório eleitoral. As gravações ambientais clandestinas, ressalva à parte, são ilícitas e imprestáveis, assim devendo ser consideradas por todos os órgãos da Justiça Eleitoral.

O julgamento do STF e os contornos da decisão

De acordo com o voto condutor do julgado, proferido pelo relator, ministro Dias Toffoli:

  • No processo eleitoral, é ilícita a prova colhida por meio de gravação ambiental clandestina, sem autorização judicial e com violação à privacidade e à intimidade dos interlocutores, ainda que realizada por um dos participantes, sem o conhecimento dos demais;
  • A exceção à regra da ilicitude da gravação ambiental feita sem o conhecimento de um dos interlocutores e sem autorização judicial ocorre na hipótese de registro de fato ocorrido em local público desprovido de qualquer controle de acesso, pois, nesse caso, não há violação à intimidade ou quebra da expectativa de privacidade.

Já o ministro Gilmar Mendes, que aderiu ao voto do relator consignando o seu voto, trouxe importante alerta adicional, para dizer que “a estabilidade das decisões do Tribunal Superior Eleitoral quanto ao tema se vincula às especificidades do jogo político, a partir da garantia dos direitos fundamentais e da potencial instrumentalização do direito na modalidade lawfare”. Sim, acerta, pois, Gilmar Mendes, tudo ao trazer luz à concreta possibilidade de instrumentalização do direito e dos próprios resultados eleitorais via condutas caracterizadoras de lawfare.

O ministro Alexandre de Moraes, que também consignou voto escrito, consignou outro relevante lembrete, notadamente quanto ao artigo 8-A da Lei das Interceptações e quanto à sua aplicabilidade em matéria eleitoral (cível ou penal eleitoral).

E o ministro Nunes Marques, para além, aproximou a controvérsia da realidade atual, afirmando que “em um mundo de inteligência artificial crescente, eventual divulgação de áudios ou vídeos adulterados (por vezes utilizando-se do chamado deep fake) poderá trazer consequências danosas e irreversíveis em uma campanha eleitoral, às vésperas de um pleito eleitoral”. Atenção: quando se fala em adulteração, o voto traz à tona questão demasiado relevante, de igual modo, qual seja a proteção da cadeia de custódia da prova.

Quanto à divergência inaugurada pelo ministro Barroso, no que foi acompanhada por Fux, Carmen e Fachin, assentou-se, por fim, em sede de minoria, que a prova deveria ser considerada lícita, por regra, diante de ilícito de natureza eleitoral, não havendo indução ou indício de flagrante preparado, seja em ambiente público, seja em ambiente privado.

Outras causas para sustentar a ilicitude da ‘prova’ em voga

Sustentamos, desde há muito, que a ilicitude/imprestabilidade das gravações ambientais clandestinas em matéria eleitoral possui, não uma, mas várias razões. Não obstante encontre assento nodal na violação à privacidade, notadamente na perspectiva da reserva do diálogo, há outras causas, a saber:

  • violação ao direito de não produzir provas contra si (nemo tenetur se detegere);
  • violação ao artigo 369 do CPC e de como ninguém pode se beneficiar da própria torpeza;
  • violação ao artigo 8-A da Lei das Interceptações;
  • flagrante preparado. Além disso, temos, de igual modo, a questão inerente à cadeia de custódia da prova. Assim expusemos na obra citada na introdução deste texto.

A esse respeito, quero aqui trazer duas considerações adicionais. A primeira é acerca da preservação da cadeia de custódia da prova. E trago isso para dizer: ainda que a gravação venha a ser realizada em local público ou aberto, sem qualquer controle de acesso, o que chancelaria a sua licitude, não há como fugirmos da análise acerca de saber se a cadeia de custódia foi preservada ou não. Logo, mesmo assim, aparentemente lícita, se quebrada for a cadeia de custódia, a prova será imprestável e assim deverá ser reconhecida. Igualmente, diga-se, se autorizada judicialmente. Cadeia de custódia é demonstração da confiabilidade da prova, observado o caminho percorrido entre a sua coleta e a sua apresentação junto ao processo. Se algum elo estiver quebrado, como, p. ex., no caso de a prova não ter sido apresentada em sua integralidade, quebrada estará a cadeia de custódia.

Já a segunda, e derradeira, é acerca do flagrante preparado. De modo que a tese fixada deve, a nosso ver, ser lida da seguinte forma: no processo judicial eleitoral, é ilícita a prova colhida por meio de gravação ambiental clandestina, sem autorização judicial e com violação à privacidade e à intimidade dos interlocutores, ainda que realizada por um dos participantes, sem o conhecimento dos demais. A exceção à regra da ilicitude da gravação ambiental feita sem o conhecimento de um dos interlocutores e sem autorização judicial ocorre na hipótese de registro de fato ocorrido em local público desprovido de qualquer controle de acesso, desde que não haja nenhum indicativo de induzimento ou instigação, que venha denotar hipótese de flagrante preparado. Com isso, penso, estará resolvida a questão.

Considerações finais

Acertou, pois, o STF. São ilícitas, sim, as gravações ambientais clandestinas para fins eleitorais. Para além do acerto, que se encontra posto através da maioria da Corte, observado o julgamento ocorrido no bojo do RE 1040515 (Tema 979), há, de mais a mais, duas questões a serem enfrentadas, uma no âmago dos casos concretos, qual seja a preservação da cadeia de custódia da prova, valendo dizer:  ainda que a gravação venha a ser realizada em local público ou aberto, sem qualquer controle de acesso, o que chancelaria a sua licitude, não há como fugirmos da análise acerca de saber se a cadeia de custódia foi preservada ou não. E outra, quiçá, pelo próprio STF e ainda agora, qual seja a questão inerente ao flagrante preparado, com a inclusão da seguinte ressalva: mesmo realizada em local aberto e sem controle de acesso, a prova não será lícita se houver indicativo de induzimento ou instigação, que venha denotar hipótese de flagrante preparado.

Autores

  • é doutorando em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP-DF), mestre em Direito Público pela Unisinos-RS, pós-graduado em Direito Constitucional (ABDConst) e em Direito Eleitoral (Verbo Jur.), graduado em Direito pela Urcamp-RS, membro fundador da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político (Abradep), membro da Comissão de Direito Eleitoral da OAB-DF e professor da pós-graduação em Direito Eleitoral da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), advogado e sócio-fundador da Barcelos Alarcon Advogados (Brasília).

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