Contas à Vista

Não é sustentável gerir mudança climática por crédito extraordinário

Autor

  • é livre-docente em Direito Financeiro (USP) doutora em Direito Administrativo (UFMG) com estudos pós-doutorais em administração (FGV-RJ) procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo e professora (FGV-SP).

    Ver todos os posts

14 de maio de 2024, 8h00

O desastre ambiental que se abateu sobre o povo gaúcho reclama célere resposta estatal coordenada para reconstruir o tecido social e econômico devastado pelas chuvas. Todavia não é possível admitir a tese de que esse fenômeno, que tem ocorrido de forma cada vez mais reiterada ao longo dos últimos anos, seria um problema imprevisível, esporádico e territorialmente isolado, para justificar o cabimento ineptamente reativo de créditos extraordinários.

Eventos extremos como temporais com inundações, ciclones e estiagens prolongadas deixaram de ser ocorrências excepcionais. Segundo noticiado pelo jornal O Globo, a partir de dados do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden), em 2023, o Brasil “registrou 1.161 desastres naturais, mais de três por dia, em média. É um recorde desde que os registros começaram em 2011”.

Uma vez refutada a hipótese da imprevisibilidade, resta claro que é a falta de medidas robustas de prevenção que tem ensejado o acúmulo crescente de mortes e deslocamentos populacionais forçados, em decorrência de tragédias climáticas que não estão adstritas ao sul do país.

A tragédia humanitária é agravada pela percepção de desperdício de vidas, ao que se soma o caráter irracional do elevado dispêndio reativo de recursos públicos e privados. O custo de reparação dos danos e prejuízos de tais desastres foram estimados pela Confederação Nacional dos Municípios (CNM) em R$ 401,3 bilhões no período de 2013 a 2023.

Há oito anos, a própria CNM publicou estudo de Johnny Amorim Liberato, que constatara, ao longo da década de 2005 a 2014, que as atividades de prevenção correspondiam a apenas 2% das ações de defesa civil da União, enquanto as medidas reparatórias respondiam a 98% do volume total empregado:

“A CNM utilizou os dados contidos nos três principais programas criados pelo Ministério da Integração Nacional para desenvolver ações de defesa civil, quais sejam: 2027 – Prevenção e Preparação para Desastres; 1029 – Respostas aos Desastres e Reconstrução; e 2040 – Gestão e Respostas a Desastres Naturais. Com esses programas, de 2005 a 2014, a União gastou R$ 6 bilhões em ações de proteção e defesa civil; destes, o governo federal empregou R$ 147,7 milhões em ações de prevenção, que correspondem a apenas 2% do investimento total. O que impressiona é que 98% foram gastos em ações emergenciais de resposta e de reconstrução de cenários afetados, ou seja, R$ 5,9 bilhões, em detrimento à prevenção.”

Dados recentes reforçam o diagnóstico de que a prevenção é residual em face da remediação aos desastres naturais já consumados (contingência). No ano passado, a prevenção não chegou a 3% do programa de gestão de desastres da União.

Importa destacar, porém, que essa dinâmica não é exclusividade do governo federal, como se pode ler aqui em relação a SP, aqui em relação ao RJ e aqui sobre o RS.

Desproporção

Diante do aquecimento global e correlatas mudanças climáticas, os riscos ambientais não podem ser tratados como uma equação securitária de baixo impacto fiscal, cuja ocorrência supostamente remota justificaria a reduzida alocação em prevenção, dada sua episódica gestão mediante créditos extraordinários.

Eventos climáticos extremos deixaram de ser exceção e sua intensificação demanda um consistente planejamento para que lhes sejam oferecidas respostas ordinárias de envergadura proporcional ao desafio que encerram.

Muito embora seja incontroversa a percepção de que remediar, nesses casos, tende a ser pior e mais caro do que prevenir, não é essa lógica que orienta o projeto de lei de diretrizes orçamentárias da União relativo ao exercício financeiro de 2025 (PLDO/2025 [1]), quando se lê, no item 5.3.7.1.1, relativo a “providências em caso de materialização de risco fiscal” na seara ambiental, que:

além da previsão orçamentária de recursos na ação de proteção e defesa civil no programa de Gestão de Riscos de Desastres, é possível ao poder público viabilizar recursos via créditos extraordinários em situações que demandem ação célere e específica.”

O problema de tal concepção – a qual também se encontra prevista na LDO-2024 [2] – é que a dotação da prevenção é proporcionalmente muito baixa diante da escalada dos desafios climáticos que o Brasil já tem presenciado.

É contraditória, por sinal, a alcunha de “Regime Fiscal Sustentável” conferida à Lei Complementar 200/2023, quando se percebe que a Gestão de Riscos de Desastres (Programa 2218, que compreende ações de prevenção e controle, bem como de resposta aos desastres já consumados) não alcançou sequer o patamar de R$1,5 bilhão em despesas pagas [3] na execução orçamentária de 2023.

Spacca

Por força dos limites fiscais (majorados pelo teto de despesas primárias e mantidos de forma relativamente equivalente pela LC 200/2023), há uma consistente trajetória de decréscimo no volume de recursos federais aplicados na prevenção a desastres ao longo dos últimos anos, que não foi revertida na presente gestão.

Trata-se, aliás, de uma contradição com a previsão do PPA federal 2024-2027 [4], de que, nessa seara, a União visa “reduzir os riscos de desastres e ampliar a capacidade e a tempestividade de resposta e de reconstrução pós-desastres”, mediante os seguintes objetivos específicos:

“• Ampliar a capacidade dos municípios para a gestão dos riscos de desastres, com investimentos em prevenção, mitigação, preparação, mapeamento, monitoramento, alerta, integração das políticas públicas e capacitação dos atores do Sistema Nacional de Proteção e Defesa Civil;

• Otimizar o apoio federal nas ações de respostas e de recuperação pós-desastres.”

É preciso, pois, fortalecer o Sistema Nacional de Proteção e Defesa Civil (Sinpdec) para que, de fato, seu arranjo federativo consiga “congregar todas as competências para a gestão dos riscos e desastres sempre com ênfase na prevenção”.

Realidade precária exige arranjo organizado

Em busca de tal desiderato, nenhuma medida preventiva seria mais robusta do que o levantamento sistemático e, ato contínuo, o aprimoramento das condições de funcionamento das atividades de defesa civil e gestão de desastres no país a partir da sua base municipal.

A esse respeito, vale trazer à tona o exemplo dos dados de 2022, informados pelos municípios paulistas na dimensão i-Cidade do Índice de Efetividade da Gestão Municipal (IEG-M), do Tribunal de Contas do Estado de São Paulo (TCE-SP).

No estado mais rico e, em tese, tecnicamente mais capacitado da federação, mais da metade dos municípios (57%, ou seja, 365 entre 645) não possuía plano de contingência de defesa civil. Mesmo entre os 279 municípios paulistas que responderam possuir o aludido plano, 91 deles não o haviam enviado à Coordenadoria Estadual de Proteção e Defesa Civil do Estado de São Paulo. 72 não possuíam cadastro dos locais para abrigo à população em situação de desastre disponibilizado junto ao citado órgão de coordenação estadual. 179 não realizavam regularmente exercícios simulados para as contingências previstas no respectivo plano. 180 entes municipais não dispunham de sinal, dispositivo ou sistema de alarme para desastres. 109 municípios não utilizavam os sistemas disponíveis de alerta e alarme para desastres. Além disso, 152 responderam não possuir possui cadastro da lista de fornecedores para coleta e distribuição de suprimentos de ajuda humanitária.

No âmbito do i-Cidade do IEG-M de 2022, houve também o diagnóstico de que cerca de um terço dos municípios de São Paulo (31%) não possuía, em 2022, canal de atendimento de emergência à população para registro de ocorrências de desastres. Um quarto dos municípios paulistas não capacitava seus agentes para ações municipais de Defesa Civil. Enquanto 66 municípios assumiram que não possuíam Coordenadoria Municipal de Defesa Civil estruturada, conforme prescreve a Lei nº 12.608/2012.

Tais dados relativos aos municípios de São Paulo evidenciam uma realidade precária que merece correção pedagógica dos órgãos de controle e suporte técnico das demais instâncias federativas. Esse, por sinal, é o escopo nuclear do IEG-M, criado há dez anos pelo TCE-SP, instituição que recentemente celebrou seu centenário em alto nível.

Sem um arranjo organizado e, de fato, funcional de defesa civil, não há cooperação federativa capaz de enfrentar as mudanças climáticas e os eventos extremos dela decorrentes em bases efetivamente preventivas nos níveis local, regional e nacional.

O exemplo do Green New Deal

Na ausência desse diálogo cooperativo, a resposta reativa (contingência) tende a ser atabalhoada e, por vezes, até mesmo conflituosa, a exemplo do recente impasse sobre liberação de recursos sem plano de trabalho ocorrido entre o ministro da Integração e do Desenvolvimento Regional e o prefeito do município de Farroupilha, como se pode ler aqui.

Ao fim e ao cabo, revela-se muito frágil a apresentação de propostas curtas, a despeito de algumas delas até soarem como soluções grandiloquentes (como um Plano Marshall contingente) para lidar com problemas antigos e complexos. Os crônicos impasses brasileiros na gestão dos riscos ambientais não são passíveis de serem resolvidos por créditos extraordinários. Uma vez que os desastres naturais não são episódicos, a resposta estatal não pode ser meramente reativa, fragmentada e ocasional.

As mudanças climáticas reclamam reflexão sistêmica, que passa por uma profunda revisão dos próprios limites fiscais que são impostos ao poder público para lhes fazer face. Eis algo melhor endereçado no Green New Deal americano, como se pode ler aqui e aqui, no qual foram concebidos intensivos investimentos estatais para a transição tecnológica necessária ao enfrentamento do aquecimento global.

O “Regime Fiscal Sustentável” trazido pela LC 200/2023 somente teria feito jus ao nome que lhe foi conferido pela Emenda 126/2022, se tivesse seguido os passos do Green New Deal. Não só perdeu a oportunidade, como o vulgarmente conhecido “Novo Arcabouço Fiscal” rebaixou semanticamente a noção íntegra do que seja “sustentável”.

Ao invés de projetar o Brasil na fronteira tecnológica do enfrentamento da crise climática, a Lei Complementar 200 manteve a estratégia antieconômica e humanitariamente desastrosa de tratar risco ambiental como algo pouco prioritário, que poderia ser apenas muito residualmente prevenido.

Para quem não olha além do seu curto prazo eleitoral e da sua mais estreita miopia fiscalista, bastaria remediar os desastres naturais mediante créditos extraordinários liberados a conta-gotas em face de tragédias já consumadas, como a que, infelizmente, ora se sucede com a população gaúcha. Diante de calamidades dessa envergadura, a solidariedade privada importa, mas jamais será capaz de suplantar a ausência de atuação tempestiva e suficiente do Estado.

 


[1] O PLDO/2025 está disponível em https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=9586941&ts=1714438320277&disposition=inline, tendo sido o excerto citado extraído da página 135 do Anexo V (p. 935 do documento consolidado)

[2] Trata-se de previsão constante do Anexo de Riscos Fiscais (Anexo V) da Lei nº 14.791, de 29 de dezembro de 2023, disponível em https://www.gov.br/planejamento/pt-br/assuntos/orcamento/orcamentos-anuais/2024/ldo/ldo2024-lei14791-29dez2023-anexov.pdf (p. 149-151).

[3] Como se pode ler a partir do PLDO/2025:

[4] Disponível em https://www.gov.br/planejamento/presidencial-ppa-2024-2027 (p. 170-171).

Autores

  • é livre-docente em Direito Financeiro (USP), doutora em Direito Administrativo (UFMG), com estudos pós-doutorais em administração (FGV-RJ), procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo e professora (FGV-SP).

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!