Aduanas verdes e 'uma verdade inconveniente'
14 de maio de 2024, 8h00
Em 2006, surgia, no Festival Sundance de Cinema, o documentário norte-americano An Inconvenient Truth (Uma Verdade Inconveniente), dirigido por Davis Guggenheim, sobre a campanha do ex-vice presidente dos Estados Unidos, Al Gore, para a conscientização da humanidade acerca das consequências do aquecimento global e das mudanças climáticas. O filme, que recebeu o Oscar de melhor documentário de 2007, é um sinal de alerta no sentido de que precisamos fazer algo para salvar o planeta de eventos que pouco ou nada remetem a causas naturais, sendo consequência mormente da ação humana [1].
A tragédia que acompanhamos nos últimos dias, no Rio Grande do Sul, que enfrenta o maior desastre “natural” de sua história, com fortes chuvas que já afetam a quase totalidade dos municípios gaúchos, registrando mais de cem mortes e mais de 300 mil desabrigados [2], representa a amplificação exponencial de eventos anteriores, no próprio Rio Grande do Sul [3] e em outras partes do Brasil [4].
É perceptível que as mudanças climáticas representam uma ameaça crescente não apenas ao bem-estar humano, mas também à sobrevivência da nossa própria espécie. Essas mudanças têm sua origem na atividade humana, que muitas vezes utiliza os recursos naturais de maneira não sustentável, comprometendo o equilíbrio ambiental e a saúde do planeta. O desmatamento e o garimpo ilegal, juntamente com a poluição ambiental e o comércio ilegal internacional, emergem como relevantes impulsionadores das mudanças climáticas.
Aduanas verdes
Atenta a essas circunstâncias alarmantes que afetam todo o planeta, a Organização Mundial das Aduanas (OMA) lançou o Green Customs Action Plan [5] (Plano de Ação Aduanas Verdes). Nesse contexto, por Green Customs, (Aduanas Verdes), devem ser compreendidas as medidas que as administrações aduaneiras devem adotar ou desenvolver para reduzir a sua própria pegada ecológica [6] (“Ser”), para proteger o meio ambiente e facilitar o comércio verde (“Fazer”) e para implementar ideias transformadoras rumo à excelência em sustentabilidade (“Inovar”), e, ao fazer isso, impulsionar o progresso relacionado aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas [7].
O Green Customs emerge, também, como uma das áreas prioritárias no Planejamento Estratégico 2022-2025 [8] da OMA. Sua importância crucial demanda ações imediatas e aprimoramentos essenciais para lidar com as ameaças e oportunidades identificadas no Customs Environmental Scan 2021 [9]. Como evidenciado em tal documento, houve uma significativa mudança na mentalidade global em relação ao desenvolvimento sustentável e à preservação do meio ambiente nos últimos anos. Diante desse cenário, a OMA tem se dedicado a desenvolver ferramentas e a capacitar seus agentes aduaneiros para enfrentar os desafios ambientais contemporâneos. Em um contexto que clama por uma revolução industrial verde e uma transição ecológica global, tais esforços tornam-se fundamentais para assegurar um futuro sustentável para o planeta.
“Ser”
As Aduanas Verdes, como exposto, baseiam-se em três iniciativas: Ser, Fazer e Inovar.
Na iniciativa “Ser”, as administrações aduaneiras devem adotar padrões de gestão que busquem reduzir os impactos de sua pegada ecológica. Isso implica a implementação de práticas que minimizem a demanda por recursos naturais não renováveis em suas atividades institucionais. Para alcançar esse objetivo, é crucial que as administrações aduaneiras observem boas práticas internacionais nesse campo, adotem indicadores de produtividade institucional voltados para a sustentabilidade, desenvolvam ferramentas de autoavaliação ambiental e promovam a capacitação dos servidores, incentivando a adoção de hábitos de vida e trabalho mais sustentáveis.
Um exemplo notável dessa abordagem é a Aduana de Singapura, que implementa um programa abrangente de reciclagem de materiais, utiliza energia solar fotovoltaica em suas operações diárias e ocupa apenas edifícios certificados com padrões ambientais de qualidade, organizando ainda atividades de integração da equipe, priorizando ações relacionadas à proteção do meio ambiente, como o plantio de árvores e a limpeza de praias [10].
“Fazer”
No aspecto “Fazer” da iniciativa, as administrações aduaneiras devem implementar medidas práticas para proteger o meio ambiente e facilitar o comércio de produtos, serviços e tecnologias ambientalmente sustentáveis. Um ponto crucial para que isso aconteça é fortalecimento das capacidades de implementação e fiscalização dos Acordos Ambientais Multilaterais (AAM) [11]. Esses tratados internacionais, entre outros temas, visam a combater o comércio ilícito de diversos bens ambientalmente sensíveis, como espécies ameaçadas de extinção, substâncias que destroem a camada de ozônio, poluentes orgânicos persistentes, resíduos perigosos, substâncias químicas nocivas, organismos geneticamente modificados e mercúrio metálico.

Desde tempos antigos, as repartições aduaneiras têm a responsabilidade de aplicar restrições tanto tarifárias quanto não tarifárias ao movimento de mercadorias nas fronteiras dos territórios. Esse papel objetiva proteger não apenas interesses econômicos, como a arrecadação de receitas, mas também interesses difusos e coletivos, incluindo a salvaguarda da saúde pública, a segurança e a proteção do meio ambiente [12]. As administrações aduaneiras devem empregar métodos e técnicas avançados de gestão de riscos e aproveitar redes de informações e inteligência, tanto nacionais quanto internacionais, para identificar cargas de alto risco de forma proativa. Quando se trata de crimes transnacionais ambientais e da implementação de Acordos Ambientais Multilaterais, é essencial a colaboração entre todas as agências de aplicação da lei que atuam nas faixas de fronteira, incluindo autoridades aduaneiras, ambientais e policiais.
Buscando colaborar na aplicação das provisões dos AAM e na repressão aos crimes transnacionais ambientais, a OMA promove e lidera anualmente diversas operações, a exemplo da Thunder (que visa combater o tráfico de espécies ameaçadas) e da Demeter (que objetiva combater o movimento ilegal transfronteiriço de resíduos) [13]. Essas iniciativas desempenham um papel crucial ao aumentar a conscientização das administrações aduaneiras sobre o problema ambiental, ao incentivar a cooperação entre as aduanas e outros órgãos, nacionais e internacionais, e ao permitir a coletar informações de inteligência, que serão utilizadas nas atividades de gerenciamento de risco aduaneiro de seleção de carga para fiscalização.
“Inovar”
O aspecto “Inovar” diz respeito ao pensamento inovador e às medidas transformadoras nas aduanas. Promover o pensamento inovador envolve ações com resultados imediatos e impactos a longo prazo, incluindo projetos-piloto. Essa abordagem é essencial para direcionar recursos e atenção para as necessidades futuras. Nesse contexto, as aduanas devem, v.g., (a) desenvolver tecnologias disruptivas e métodos de trabalho inovadores para facilitar a cooperação eficiente na fiscalização; (b) realizar pesquisas dedicadas a temas como métodos de avaliação, regras de origem, papel futuro das aduanas, Sistema Harmonizado (SH) e incentivos ao comércio para promover o transporte sustentável; (c) ampliar a compreensão dos riscos das mudanças climáticas para as atividades, serviços e operações alfandegárias; e (d) compartilhar experiências sobre o impacto das aduanas na implementação de medidas para reduzir “fuga de carbono” [14]; e emissões de produtos importados.
Como exemplo de inovação, a entidade Conservation International, com o apoio da Microsoft e da Rumah Foundation, colaborou com a National Parks Board de Singapura para desenvolver o aplicativo móvel “Fin Finder” [15], que auxilia fiscais aduaneiros na rápida identificação de espécies de tubarões e arraias sujeitos a tráfico internacional. Outro avanço tecnológico é o eCITES, um sistema informatizado compatível com os Portais Únicos de Comércio Exterior. Esse sistema permite a aplicação, emissão, controle, autenticação e endosso eletrônicos de licenças e certificados Cites [16].
Aduanas verdes e a “verdade inconveniente”
A importância da implementação de uma política Green Customs por uma administração aduaneira ganha bastante notoriedade quando olhamos para o contexto brasileiro. Nosso país detém 58,93% da Amazônia Legal [17], cujo bioma é um dos maiores responsáveis pelo equilíbrio climático do planeta, com floresta que “garante as chuvas para boa parte da América do Sul e tem papel central no combate ao aquecimento global e às mudanças climáticas”, abrigando “imensa biodiversidade, com milhares de espécies de plantas e animais, algumas ainda desconhecidas ou pouco estudadas” [18]. Essa biodiversidade está constantemente ameaçada, e cabe à Receita Federal agir de forma proativa para evitar que o comércio internacional ilícito comprometa não só a Amazônia Legal, mas outros biomas nacionais.
Uma semana depois do início dos primeiros alagamentos que culminaram no grave desastre ambiental que estamos acompanhando no Brasil, a Receita Federal publicou a Portaria Corep nº 113/2024, que instituiu o Grupo Nacional de Combate ao Tráfico de Fauna e Flora na RFB (Grupo Curupira). Trata-se de uma importante iniciativa que se soma a outras já existentes, a exemplo do programa que transforma equipamentos de TV Box confiscados em microcomputadores que são doados a escolas públicas e o inovador programa de destruição de mercadorias apreendidas na Alfândega da Receita Federal em Foz do Iguaçu [19]. Essas iniciativas apontam que a aduana brasileira está alinhada aos esforços internacionais sobre o tema.
Diante do atual cenário de mudanças climáticas e desafios ambientais crescentes, é fundamental que as autoridades aduaneiras, portanto, repensem suas prioridades e assumam um papel de liderança na promoção da sustentabilidade ambiental. Ao adotar medidas que promovam a sustentabilidade, as aduanas não apenas contribuem para a preservação do meio ambiente, mas também garantem um futuro mais seguro, saudável e sustentável para as próximas gerações. Nesse sentido, o Green Customs representa um passo importante na direção certa, pelas Aduanas, contribuindo no enfrentamento da “verdade inconveniente”.
Como sabiamente registrou Mark Twain, citado no documentário de Guggenheim: “It ain’t what you don’t know that gets you into trouble. It’s what you know for sure that just ain’t so”.
[1] Disponível em: https://www.imdb.com/title/tt0497116/?language=pt-br. O leitor pode assistir em tal link um trailer de 2:33 minutos do filme. Pode ainda acompanhar a cerimônia de entrega do Oscar a Guggenheim e sua equipe, incluindo Gore, em: https://www.youtube.com/watch?v=3e6LKm1QcXI. Ambos os acessos em 12.mai.2024.
[2] Disponível em: https://g1.globo.com/politica/noticia/2024/05/11/chuvas-no-rs-ja-mataram-mais-que-soma-de-desastres-naturais-no-estado-entre-1991-e-2022-apontam-dados-de-ministerio.ghtml. Acesso em 12.mai.2024.
[3] No ano passado, o Rio Grande do Sul já havia amargado perdas financeiras e mortes em decorrência de condições extremas associadas às mudanças do clima. Eventos extremos como chuvas no RS causaram prejuízos de R$ 105 bi no ano passado. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/economia/macroeconomia/eventos-extremos-como-chuvas-no-rs-causaram-prejuizos-de-r-105-bi-no-ano-passado/. Acesso em: 12.mai.2024.
[4] Em fevereiro deste ano, por exemplo, um temporal devastador nos municípios de São Sebastião e Aparecida, que durou mais de um mês, matou 64 pessoas e deixou milhares de desabrigados (disponível em: https://g1.globo.com/rs/rio-grande-do-sul/noticia/2024/05/09/governo-do-rs-estima-em-r-19-bilhoes-custo-para-plano-de-reconstrucao-do-rs-apos-enchentes.ghtml). De agosto a novembro do ano passado, uma onda de fumaça tomou conta da atmosfera da região metropolitana de Manaus. Por diversos dias, a cidade chegou a figurar entre as duas piores em qualidade de ar do mundo (disponível em: https://www.terra.com.br/planeta/noticias/fumaca-encobre-manaus-por-que-cidade-registrou-a-segunda-pior-qualidade-do-ar-no-mundo,f8f5f1e7d8bd173b28ac17f6f644809d0zj74b0f.html). Ambos os acessos em 12.mai.2024.
[5] WCO. Green Customs Action Plan. [2021]. Disponível em: https://www.wcoomd.org/-/media/wco/public/global/pdf/topics/key-issues/green-customs/gcap-public.pdf?la=en. Acesso em: 12 mai. 2024. O Plano de Ação Aduaneira Verde foi endossado pela 88ª Sessão da Comissão de Política e pela 141ª/142ª Sessão do Conselho. Deve ser considerado como um documento dinâmico que será regularmente atualizado e incluirá atividades adicionais com base nos planos futuros definidos pela Secretaria em cooperação com os membros.
[6] A pegada ecológica é uma medida do impacto humano sobre o meio ambiente, especificamente em termos de recursos naturais consumidos e da capacidade da Terra para regenerar esses recursos e absorver os resíduos gerados pela atividade humana. Ela é calculada considerando diversos fatores, como quantidade de alimentos consumidos, energia utilizada, espaço habitacional ocupado e quantidade de resíduos produzidos.
[7] Os 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) foram elaborados no contexto da Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável da Organização das Nações Unidas, firmada em 2015, e podem ser encontrados em: https://brasil.un.org/pt-br/sdgs. Acesso em: 12 mai. 2024.
[8] WCO. Strategic Plan 2022-2025. Disponível em: https://www.wcoomd.org/en/about-us/what-is-the-wco/strategic-plan.aspx. Acesso em: 12 mai. 2024.
[9] WCO. Environmental Scan 2021. Disponível em: https://www.wcoomd.org/-/media/wco/public/global/pdf/about-us/wco-in-brief/environmental-scan-2021.pdf?db=web. Acesso em: 12 mai. 2024.
[10] SINGAPORE CUSTOMS. Some thoughts on Customs role in sustainable development. In: WCO News 98. Issue 2 / 2022. 20 jun. 2022. Disponível em: https://mag.wcoomd.org/magazine/98-issue-2-2022/singapore/. Acesso em: 12 mai. 2024.
[11] Atualmente, o Brasil é signatário dos sete principais AAM: a Convenção sobre o Comércio Internacional das Espécies da Flora e Fauna Selvagens em Perigo de Extinção (Cites); o Protocolo de Montreal sobre Substâncias que Destroem a Camada de Ozônio; a Convenção de Basileia sobre o Controle de Movimentos Transfronteiriços de Resíduos Perigosos e seu Depósito; a Convenção de Estocolmo sobre Poluentes Orgânicos Persistentes; a Convenção de Roterdã sobre Procedimento de Consentimento Prévio Informado para o Comércio Internacional de Certas Substâncias Químicas e Agrotóxicos Perigosos; o Protocolo de Cartagena sobre Biossegurança; e a Convenção de Minamata sobre Mercúrio.
[12] BASALDÚA, Ricardo Xavier. Naturaleza jurídica y elementos esenciales del contrabando. In: CARRERO, Germán Pardo. Ilícitos Aduaneros y Sanciones. Bogotá: Tirant lo Blanch, 2022. p. 1211-1255.
[13] WCO. Environment Programme. Disponível em: https://www.wcoomd.org/en/topics/enforcement-and-compliance/activities-and-programmes/environment-programme.aspx. Acesso em: 12 mai. 2024.
[14] A fuga de carbono acontece quando as emissões de gases de efeito estufa aumentam em um país devido à redução dessas emissões em outro país que implementou políticas climáticas mais rigorosas. EUROPEAN COMISSION. Carbon leakage. Disponível em: https://climate.ec.europa.eu/eu-action/eu-emissions-trading-system-eu-ets/free-allocation/carbon-leakage_en. Acesso em: 12 mai. 2024.
[15] CONSERVATION INTERNATIONAL. The first AI-based mobile app for shark and ray fin identification to combat illegal wildlife trade. Disponível em: https://wildlifedetection.org/fin-finder. Acesso em: 10 mai. 2024.
[16] Convenção sobre o Comércio Internacional das Espécies da Flora e Fauna Selvagens em Perigo de Extinção (CITES). Essa convenção, firmada em 1973, controla o comércio internacional de espécies ameaçadas de extinção por meio de um sistema de licenças e certificados. Disponível em: https://cites.org/eng/prog/eCITES. Acesso em: 12 mai. 2024.
[17] IBGE. Amazônia Legal. [2022]. Disponível em: https://www.ibge.gov.br/geociencias/informacoes-ambientais/geologia/15819-amazonia-legal.html#:~:text=A%20Amaz%C3%B4nia%20Legal%20apresenta%20uma,%2C93%25%20do%20territ%C3%B3rio%20brasileiro. Acesso em: 12 mai. 2024.
[18] AMAZÔNIA PROTEGE. Por quê?. Disponível em: http://amazoniaprotege.mpf.mp.br/o-projeto/por-que#:~:text=A%20floresta%20garante%20as%20chuvas,global%20e%20%C3%A0s%20mudan%C3%A7as%20clim%C3%A1ticas. Acesso em: 12 mai. 2024.
[19] Sobre o tema, aguarda-se a publicação de estudo de autoria de Hipólito Caplan e Eduardo Costa, com exemplos de destinação sustentável, como a de resíduos de cigarros destruídos a cooperativas agropecuárias, como combustível de caldeiras, equipadas com chaminés dotadas de filtros antipoluentes. CAPLAN, Hipólito J. A.; COSTA, Eduardo B. O programa de destruição de mercadorias apreendidas na Alfândega da Receita Federal em Foz do Iguaçu: condicionantes históricos, sustentabilidade e inovação. In: OLIVEIRA, Dihego A. S; VALLE, Mauricio D. T.; TREVISAN, Rosaldo (coord.). Cadernos de Direito Aduaneiro: Tomo IV (Tributação sobre o Comércio Exterior e Direito Aduaneiro – Institutos e Procedimentos) [2024].
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