Opinião

Acusado que foge não tem direito de defesa?

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12 de janeiro de 2024, 6h04

“Ó juízes! Se quereis que o inocente acusado não fuja, facilitai-lhe os meios de se defender.”
Voltaire [1]

Um tema que vem inundando as revistas jurídicas é o do acusado dito “foragido”, e o direito que ele teria ou não de participar virtualmente da audiência nesta condição. Impressiona como o processo penal brasileiro é, nos mínimos detalhes, todo impregnado da presunção de culpa do acusado, embora a nossa Constituição diga o contrário. Diz-se que o princípio da presunção de inocência impõe ao Estado e seus agentes o dever de tratar o acusado como inocente, e a primeira coisa que se faz no processo penal é tratá-lo da maneira exatamente oposta.

O personagem Mancha Negra, da Disney, especialista em fugas

O processo penal no Brasil e no mundo é todo estruturado de modo a aterrorizar o inocente. Começa-se por decretar a prisão do acusado, depois de uma investigação toda secreta, uma acusação também construída no mais absoluto mistério, e espera-se que esse modelo não amedronte o mais inocente dos cidadãos. Filangieri, com seu espírito libertário e iluminista, não se cansava de denunciar o processo penal inquisitivo, e ponderava, em palavras impregnadas de sensibilidade, que, num modelo que tal, a situação do acusado inocente é sempre muito pior do que a do culpado:

“A situação do acusado, durante este período, é um estado de violência e tormento. Se a sua consciência não o censura por nenhum crime, a sua imaginação não deixa de atormentá-lo e enchê-lo de terror. (…). Ao seu infortúnio se acrescenta ainda a humilhação, o desespero e a miséria de sua família. (…). Ele não sabe quais perguntas lhe serão feitas e como deverá respondê-las. (…). A condição do verdadeiro criminoso é nessas situações melhor que a sua, porque quem tem consciência do crime que cometeu e conhece as circunstâncias que o acompanharam, pode facilmente prever o que há de provas contra ele e elidir-las com as suas respostas.” [2] (tradução livre)

O comportamento do acusado inocente no processo penal é reativo e instintivo: ele é pego de surpresa com relação a tudo o que as autoridades, em absoluto segredo, construíram contra ele. A fuga, nesse contexto, é um desses atos de desespero que uma pessoa pratica diante de uma situação inesperada que lhe infunde medo, desconfiança e incertezas. Em outras palavras, a fuga é um ato de desconfiança a um sistema que, tal como é desenvolvido, só pode gerar desconfiança mesmo.

A fuga é, por assim dizer, um ato de reciprocidade do acusado: ele foge porque não confia em um sistema de justiça que lhe trata desde o primeiro contato com desconfiança, sendo precisamente esse “primeiro contato” o decreto de prisão que lhe quer retirar a liberdade que até então, como presumido inocente, gozava.

A fuga, logo, não é um comportamento sintomático do culpado; o inocente pode também, num ato de desespero, fugir, pois como lembra Lucchini, se não existe fuga sem medo, existe medo sem culpa, e, portanto, “l’orribile sistema di perseguitare l’individuo senza la prova della sua delinquenza, non si potrà ritenere la sua fuga od il tentativo di fuga come prova o indizio di colpabilità.” [3]

Fugir é um fato em cuja base podem existir várias motivações, motivações estas que tanto o inocente como o culpado podem sentir: medo de ser linchado, medo das nossas masmorras que chamamos de prisão, enfim, medo de todo esse sistema voltado a presumir e confirmar a sua culpa.

Veja que a própria expressão “foragido”, com a carga pejorativa que lhe é inerente (foragido=predador que está a solta), intensifica ainda mais a presunção de culpa, pois um homem “foragido” só pode ser, segundo esse terrível modo de proceder dos juízes, um homem culpado que não tem interesse na justiça, quando, na verdade, ele foge precisamente porque a justiça que ele acreditava existir – aquela que ouve o acusado antes de prendê-lo, aquela que respeita o contraditório e o devido processo legal – não lhe socorre enquanto cidadão. Daí ele fugir dessa “justiça”. Sobre a fuga do acusado ser equívoca como sinal de culpabilidade, pondera com muita argúcia Malatesta:

“O indício da ocultação da pessoa não é sempre um indício muito concludente de criminalidade. O inocente também foge ou se esconde por uma natural hesitação de espírito, ou pela consciência de sua fraqueza em face da formidável potência de uma acusação; especialmente, se sabe que, para se defender, tem de combater contra um preconceito, contra um partido, contra um fanatismo religioso ou político. O inocente também foge ou se esconde, por temer vexações judiciais, não obstante a inocência; e este motivo infirmante, terá tanto mais força, quanto mais vexatório for o processo, quanto maior for a força preponderante concedida à acusação, quanto mais arbitrários forem os juízes, quanto mais ameaçadoras forem as prisões preventivas, tormento dos inocentes e dos réus.” [4]

Não existe, portanto, contradição alguma entre a inocência do acusado e a sua fuga; antes, o que existe é precisamente um ato de medo do inocente diante de um sistema que, desde logo, já o considera culpado e quer prendê-lo antes mesmo de ouvi-lo, ou, “na melhor das hipóteses”, prendê-lo para ouvi-lo. O que se deveria entender é que o acusado quer o básico: ser ouvido como um inocente. Se o acusado foge e ainda assim quer ser ouvido, isso, longe de ser sintoma de culpa, é um alerta para o legislador e os juízes de que o sistema processual penal não está estruturado de modo a acolher a inocência e protegê-la. Finalizo, assim, este artigo, remetendo o leitor à frase de Voltaire na epígrafe. Ela resume tudo o que aqui foi dito…

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[1] VOLTAIRE. Comentários políticos, Trad. Antonio de Pádua Danesi, São Paulo: Matins Fontes, 2001, p. 172.

[2] FILANGIERI, Gaetano. La scienza della legislazione, Volume terzo, Milano: Dalla Società Tipogragica de’classici italiani, 1822, p. 32.

[3] “La fuga, disse MONTESQUIEU, è compagna del timor freddo, ma non della colpa; perchè se non vi è fuga senza timore, v’ è timore senza colpa. E sino a che non verranno tolti i modi vessatori, l’orribile sistema di perseguitare l’individuo senza la prova della sua delinquenza, non si potrà ritenere la sua fuga od il tentativo di fuga come prova o indizio di colpabilità.” (LUCCHINI, Luigi. Il carcere preventivo ed il mecanismo istruttorio che vi si riferisce nel processo penale, Venezia, 1872, p. 129)

[4] MALATESTA. A lógica das provas em matéria criminal, Trad. J. Alves de Sá, Livraria Teixeira, São Paulo, 2ª Edição, p. 274.

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