Opinião

Por que AGU erra ao dizer que juiz pode condenar contra pedido do MP

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15 de abril de 2024, 11h19

Mesmo com os esforços das recentes reformas legislativas pontuais ao Código de Processo Penal e a atuação do Supremo Tribunal Federal ao longo dos mais de 35 anos na devida filtragem constitucional, alguns entulhos autoritários do contexto jurídico-político em que nosso CPP foi promulgado insistem em manterem-se vivos e determinar em grande medida o sistema processual penal.

Mesmo após a promulgação da Constituição de 1988 e até mesmo a afirmação categórica do artigo 3º-A do Código incluído pela Lei 13.964/2019 da estrutura acusatória do sistema processual e a impossibilidade da substituição da atuação do órgão acusatório, a manutenção da vigência ou validade do artigo 385 é capaz de trair ou fazer ruir todos os esforços para a construção de um sistema processual penal acusatório e, portanto, compatível com o Estado democrático de Direito.

Isto é, o texto que autoriza o órgão jurisdicional condenar, ainda quando o titular da ação penal pública tenha pedido a absolvição, só pôde sobreviver desde a década de 1940 graças à sucessão de regimes autoritários que se valiam da confusão nos papeis constitucionalmente delimitados dos sujeitos processuais [1] para atingir os propósitos de diminuição da eficácia dos direitos e garantias fundamentais que, no fundo, constituem barreiras contra regimes autoritários.

Ou seja: o advento da democracia e a CF-88 por si só já deveria representar a expulsão do artigo 385. Afinal, se o MP passou a ser o órgão defensor de tantos direitos e da própria democracia, por qual razão, quando pedir absolvição, o juiz pode condenar mesmo assim? Não parece um despropósito e uma contradição?

Julgamento da ADPF 1.122

O julgamento da ADPF 1.122, ajuizada pela Anacrim, que pede a declaração de não recepção do artigo 385 do CPP será, por isso, fundamental para extirpar entulho autoritário de um sistema inquisitorial para a construção de um sistema acusatório democrático dentro do processo penal e, ainda mais, revelará o futuro jurídico-democrático que pretendemos erigir na direção da consolidação do Estado democrático de Direito com a reafirmação da normatividade de garantias fundamentais e fundantes como o contraditório, a ampla defesa e o devido processo legal.

De fato, permitir a condenação de acusado quando o próprio titular da ação penal pública pede a absolvição ofende vários princípios e preceitos constitucionais. Fundamentalmente, fica violada a imparcialidade que deve ter o juiz. Ao condenar, apenas aponta que o julgador tomara lado, o da acusação. Mas o intrigante é que o lado que o juiz tomou não concorda com ele. E mesmo assim o juiz sustenta a acusação.

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Ora, embora em alguma medida o autoritarismo na dinâmica processual penal seja, em parte, creditada a uma cultura jurídica inquisitorial, não devemos esquecer que a teoria determina a prática e a prática determina a teoria. Assim, a declaração de não recepção do artigo 385 do CPP e a impossibilidade de o julgador condenar quando houver pedido de absolvição pelo órgão ministerial terá, ainda, a virtude de provocar uma mudança cultural.

O que mais espanta, entretanto, é a persistência dessa cultura jurídica inquisitorial e autoritária que ainda insiste na constitucionalidade da possibilidade de condenação quando houver pedido de absolvição do titular da ação penal pública como, por exemplo, foi o sentido do parecer da AGU (Advocacia Geral da União) no âmbito da ADPF 1.122.

Em primeiro lugar, o parecer da AGU sustenta, em preliminar, a ilegitimidade ativa da Associação Nacional da Advocacia Criminal (a mesma Anacrim que atuou na defesa da ADC 44 — a da presunção da inocência!) como obstáculo formal para o conhecimento da arguição, sob o fundamento de que a entidade se limita a representar advogados criminalistas e, portanto, apenas parcela da classe.

Essa concepção, no entanto, não resiste à tendência atual do STF de uma interpretação não restritiva do conceito de “entidade de classe” como forma de possibilitar a participação da sociedade civil organizada nos processos de controle concentrado de constitucionalidade (ADI 4.029, rel. min. Luiz Fux, j. 8-3-2012).

Como anotado pelo voto do ministro Barroso na ADPF 527, deve-se ter um conceito abrangente de classe que não se limita à proteção de categorias econômicas ou políticas, mas o conjunto de pessoas ligadas por uma mesma atividade para a defesa de interesses ou grupos vulneráveis e minoritários.

Nesse caso, foi considerado legitimada para instaurar o controle de constitucionalidade a Associação Brasileira de Gays, Lésbicas e Transgeneros que certamente não congregam toda a população LGBTQIA+ do país.

A entidade promotora da demanda representa os advogados criminalistas que, se de um lado, representam parcela da classe de advogados, por outro lado, no caso em questão, preenche os requisitos da homogeneidade, caráter nacional pela presença de membros em, ao menos, nove estados-membros e a pertinência temática.

Desse modo, a Anacrim deve ser considerada entidade de classe de âmbito nacional em uma compreensão constitucionalmente adequada da legitimidade ativa das ações de controle concentrado de constitucionalidade movida pela ideia de uma sociedade aberta de intérpretes da Constituição (Peter Häberle).

Jurisdição constitucional

Não bastasse essa tentativa de monopolizar o acesso à jurisdição constitucional por parte da AGU, na medida em que adota uma concepção restritiva de entidade de classe de âmbito nacional, o parecer adota uma interpretação inconstitucional do artigo 385 do CPP típica de um sistema inquisitorial de modelos autoritários, ainda que pretenda conferir um verniz de legitimidade ao pugnar por uma interpretação conforme que limita a possibilidade de condenação quando haja pedido de absolvição pelo titular da ação penal pública à exigência de fundamentação ou ônus argumentativo elevado do magistrado como forma de exceção.

Contudo, a AGU esquece que, ao se admitir a exceção, abre-se a possibilidade para que ela se torne a regra. Sabemos muito bem o que isso significa em um contexto de circulação de uma cultura jurídica autoritária do processo penal: que os marginalizados de sempre continuarão a ser condenados, mesmo quando o Ministério Público e todo o acervo probatório for favorável à absolvição do acusado.

Mais do que isso, significa também admitir que garantias constitucionais que estruturam nosso Estado democrático de Direito como o contraditório, a ampla defesa e a imparcialidade jurisdicional sejam relativizadas, sem qualquer previsão constitucional para tanto, em favor de uma estrutura persecutória de um direito penal simbólico que pretende apenas satisfazer e aplainar a opinião pública.

Admitir, portanto, a condenação sem pedido do titular da ação penal pública, mesmo que de forma excepcional e justificada, é confundir a atuação do juiz e do órgão de acusação no processo penal com graves consequências para o sistema processual penal e, no limite, descaracterizar a dinâmica da atuação processual em prejuízo à defesa que poderá ser surpreendida. O parecer peca, assim, no principal. No âmago. Permitir a constitucionalidade da condenação mesmo com pedido de absolvição do órgão ministerial é afrontar a estrutura do sistema acusatório da Constituição de 1988.

É hora de aprofundarmos ainda mais na estruturação do sistema acusatório como único caminho possível para a transformação da mentalidade e das práticas jurisdicionais inquisitivas que, de forma autoritária, ainda resistem ao Estado democrático de Direito e à plena e ampla efetividade das garantias constitucionais.

Mas, tem mais. O parecer da AGU, nesse sentido, trai seu próprio papel constitucionalmente delimitado nas ações de controle concentrado de constitucionalidade. É que, ao contrário da sua atuação vinculada à defesa do ato impugnado na ADI como se descortina do artigo 103, §3º da CF/88, ao não prescrever qualquer atuação vinculada na ADPF, a Lei 9.882/99 pressupõe que a atuação da AGU será para a garantia da integridade constitucional.

E o parecer não vai nesse sentido. A oitiva da AGU na ADPF, segundo se extrai do §2º do art. 5º da Lei 9882/99, só faz sentido se o for para a defesa da própria normatividade da Constituição de 1988. Fora disso, que sentido teria? Portanto, como defensor da Constituição que a criou, a defesa da manutenção do artigo 385 do CPP pela AGU revela uma contradição. Insolúvel.

Já é hora de extirparmos qualquer sentido de um processo penal de emergência ou de exceção, se quisermos levar a sério a estrutura processual penal acusatória de um verdadeiro Estado Democrático de Direito. E, mais do que isso, dar um passo para além de um discurso dogmático petrificado.

A dogmática jurídica vem fabricando próteses para fantasmas, como já diz Warat. Sustentar um dispositivo como o artigo 385 é dar um passo de 70 anos para trás. É voltar à Constituição de 1937, em vigor quando da aprovação do CPP. E isso deve ter alguma importância, pois não?

 

Clique aqui para ler a petição da AGU na ADPF 1.122

 

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[1] COUTINHO, Jacinto de Nelson Miranda. Sistema acusatório: cada parte no lugar constitucionalmente demarcado. Revista de informação legislativa. v. 46, n. 183 (jul./set. 2009), p. 103-115.

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