Opinião

Por que, no Brasil, é mais fácil modificar uma Constituição do que um Código?

Autor

  • Vinícius Costa Rocha

    é advogado criminalista mestrando em direito na Universidade Federal de Pernambuco e diretor de ensino da Liga Acadêmica em Ciências Criminais da UFPE (UFPECRIM).

5 de março de 2024, 15h18

Finalizado o período carnavalesco, o ano de 2024 se iniciou com grandes expectativas para as ciências criminais. Somente em relação aos processos que tramitam no Supremo, espera-se ao menos a implementação do juízo de garantias (nos moldes do acórdão proferido nos autos das ADIs 6.298, 6.299, 6.300 e 6.305) e o julgamento da ADPF 1.112/DF, recentemente proposta pela Anacrim para que seja declarada a não recepção constitucional do artigo 385 do Código de Processo Penal.

Um fato, porém, reprime esperanças mais sólidas sobre o que virá: o autoritarismo permeia o CPP de 1941 de modo tão profundo que reformas parciais, jurisprudenciais ou legislativas, não são capazes de extirpá-lo.

A pergunta feita no título, extraída de pesquisa feita por Ricardo Gloeckner sobre a genealogia das ideias autoritárias que circundam o processo penal brasileiro,[1] não se apega ao abismo cronológico entre o CPP e a Constituição, nem à possível linguagem démodé do Código redigido por Francisco Campos. A crítica advém da incompatibilidade axiológica entre o conteúdo desses textos, que parece estar se sujeitando a um perigoso processo de esquecimento ou, pior, de escamoteamento.

Embora sejam variadas as razões pelas quais o Código de 1941 permaneça vigente, uma delas está imbricada à dogmática jurídica: o encapsulamento[2] proposto por alguns operadores, que incentivam a aplicação de alguns institutos processuais sem examinar sua razão de ser.[3]

Trata-se de um fenômeno denominado por Gloeckner de “teoria do freio”,[4] visto de forma similar no Brasil e na Itália pós-Mussolini: a partir de uma comparação quase infantil com as transformações promovidas pelo sistema nazista, afirmava-se que o Codice reproduzia os “maiores avanços da ciência processual da época”, sem sofrer graves contaminações do ideal autoritário.

Apesar de Campos, na exposição do CPP de 1941, deixar claro que pretendia fulminar a garantia da presunção de inocência, passou-se a acreditar que aquele Código, antes de tudo, era obra técnica, compatível com os novos primados constitucionais.

Sistema acusatório e inquisitório
Essa visão sub-optimal, como observa Augusto Jobim de Amaral, muitas vezes se amparou na classificação quase maniqueísta entre sistema acusatório e inquisitório, que tinha como vértice apenas a separação formal entre as funções de acusador e juiz.[5] Sustentava-se uma acusatoriedade ou uma natureza “mista” mesmo diante de dispositivos que autorizavam não só a condenação após pedido de absolvição do Ministério Público (artigo 385 do CPP), mas a atribuição de crime mais grave do que o capitulado na denúncia sem sequer se franquear o contraditório às partes (artigo 383 do CPP).

Spacca

Olhares igualmente superficiais, ou esperançosos em excesso, vislumbraram na Lei nº13.964/2019 o tão esperado turning point.

Decerto, institutos como o juízo de garantias (artigo 3º-B e seguintes do CPP) e a técnica de afastamento do magistrado que teve acesso a prova ilícita (artigo 157, § 5º, do CPP) poderiam trazer grandes avanços rumo à constitucionalização.

A esperança, contudo, esbarrou no Supremo e nas conclusões por ele adotadas no julgamento das ADIs 6.298, 6.299, 6.300 e 6.305.

Neste texto, não se pretende avaliar os fundamentos trazidos pela Corte para retalhar o instituto do juízo de garantias, mas tão somente expor reflexão pessimista sobre qualquer expectativa de supressão do autoritarismo no processo penal brasileiro sem uma reforma legislativa completa.

Como observa Ricardo Gloeckner, os institutos do nosso Código, inspirados na obra italiana de Manzini, têm estrutura verdadeiramente monolítica: a ideologia repressiva o permeia de tal maneira que reflete um sistema unitário, incapaz de ser minado por reformas parciais. [6]

Da impossibilidade de desistência pelo Ministério Público (artigos 42 e 576 do CPP) à possibilidade de condenação mesmo após pedido absolutório da parte autora (artigo 385 do CPP), o Código traz uma estrutura na qual não só são promíscuas as funções formais do juiz e do acusador, mas também suas funções políticas: o Judiciário tutela [7] as ações do MP, a fim de resguardar a pretensão coletiva à segurança pública.

É por isso que, originalmente, autorizava-se a decretação de medidas cautelares de ofício e que, ainda hoje, prevê-se remessas necessárias contra absolvições sumárias e concessão de habeas corpus (artigo 574 do CPP).

Reformas para democratizar
Frente a essa unidade repressiva, não há como se alimentar a esperança de que reformas parciais ou decisões a conta-gotas do Supremo seriam capazes de democratizar nosso sistema.

Quando se olha para o artigo 3º-A do CPP, declarado “constitucional” no julgamento das ADIs 6.298, 6.299, 6.300 e 6.305, enxerga-se mais um problema do que uma solução: a redação do texto é impecável, mas é ofuscada por todos os outros dispositivos do Código — ainda vigentes — em sentido contrário.

Bom seria se a inserção de tal dispositivo promove-se uma revogação tácita de todos os outros que com ele conflitam (como o artigo 156), mas o que parece, como ressalta Ricardo Gloeckner, é que ele servirá como verdadeira “burla de etiquetas”. [8] Se a básica separação formal entre Judiciário e Ministério Público já permitia declararem nosso sistema como acusatório ou misto, a declaração trazida pelo artigo 3º-A é prato cheio para as visões míopes.

Com facilidade, esquecer-se-á que é preciso ir muito além do debate sobre os limites de produção de prova pelo juiz para se democratizar o ambiente processual penal brasileiro. A título de exemplo, pense-se no seguinte: como se pode interpretar como constitucional um sistema no qual cabe ao órgão acusador fazer apenas um pedido genérico de condenação, conferindo-se ao juiz a “liberdade motivada” de definir o quantum debeatur (dosimetria da pena) sem a participação efetiva das partes?

No processo civil, nem pedido indenizatório simples, no juizado especial, pode ser feito sem quantificação do valor. No penal, contudo, admite-se tal prática sem questionamentos. O Ministério Público pode requerer a condenação de sujeito pela prática de peculato (artigo 312 do CP), e caberá ao Juízo definir, segundo sua “livre e motivada” interpretação, se vai aplicar uma pena de dois ou de até 12 anos de reclusão.

O que sustenta, dogmática e axiologicamente, essa estrutura?
É a ordem pública inerente aos processos de natureza criminal? O interesse social em jogo? O clamor popular? A maior importância dos bens jurídicos, quando comparado com os processos de natureza cível?

Certamente, raciocínios calcados nesses amuletos facilmente poderiam ser empregados em defesa do sistema vigente, e são eles que respondem de maneira mais fácil a pergunta que intitula o artigo: o que permite a manutenção do Código de 1941 é a tradição autoritária [9] sobre a qual foram ensinados os operadores do sistema jurídico e do sistema político vigente.

Ela permite, na verdade, uma retroalimentação do modelo autoritário delineado por Francisco Campos: não só se ressignifica as disposições do Código de 1941 com roupagens pretensamente democráticas, como também se autoriza, até mesmo, a abolição das poucas garantias ali contidas, fazendo da law in action um ambiente pior do que a law in book. [10]

Em um momento no qual já não se tem mais notícias do avanço na redação de um novo Código de Processo Penal, e da verdadeira adequação de quaisquer dos projetos já feitos aos ditames da Constituição, parece ser hora de priorizar essa pauta.

 


[1] GLOECKNER, Ricardo Jacobsen. Autoritarismo e processo penal: uma genealogia das ideias autoritárias no processo penal brasileiro. v.1. Florianópolis: Tirant Lo Blanch, 2018, p. 471.

[2] A expressão é de Zaffaroni, em: ZAFFARONI, Eugenio Raul. Doutrina penal nazista: a dogmática alemã entre 1943 a 1945 [livro eletrônico]. Florianópolis: Tirant lo Blanch, 2019.

[3] Nesse mesmo sentido: SILVA, Ovídio Baptista da. Processo e ideologia: o paradigma racionalista. 4. Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 1-2.

[4] Assim declara o ministro responsável pela condução dos códigos nacionais de processo civil e processo penal: CAMPOS, Francisco. O Estado nacional: sua estrutura, seu conteúdo ideológico. Brasília: Senado Federal, 2001.

[5] AMARAL, Augusto Jobim do. Introdução à história das ideias do processo penal brasileiro. Revista História. Rio de Janeiro, 2013, v. 1, p. 192-221.

[6] GLOECKNER, Ricardo Jacobsen. Autoritarismo e processo penal II: autoritarismo cool e economia política do processo penal brasileiro. São Paulo: Tirant Lo Blanch, 2023, p. 28-29.

[7] A expressão é de Ricardo Gloeckner, em: Autoritarismo e processo penal II: autoritarismo cool e economia política do processo penal brasileiro. São Paulo: Tirant Lo Blanch, 2023, p. 28.

[8] Ibidem, p. 26-29.

[9] CASARA, Rubens; MELCHIOR, Antonio Pedro. Teoria do processo penal brasileiro. v.1. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013.

[10] No mesmo tom, ressalta Ricardo Gloeckner, nas duas obras citadas.

Autores

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!