Opinião

O artigo 385 do CPP e o modelo acusatório de processo

Autor

  • Galtiênio da Cruz Paulino

    é mestre pela Universidade Católica de Brasília doutorando pela Universidade do Porto pós-graduado em Direito Público pela ESMPU e em Ciências Criminais pela Uniderp orientador pedagógico da ESMPU ex-procurador da Fazenda Nacional e atualmente procurador da República e membro-auxiliar na Assessoria Criminal no STJ.

26 de fevereiro de 2024, 18h28

A Anacrim (Associação Nacional da Advocacia Criminal) interpôs no Supremo Tribunal Federal ação de arguição de descumprimento de preceito fundamental, a ADPF nº 1.122, objetivando que seja declarado como não recepcionado pela Constituição o artigo 385 do Código de Processo Penal [1].

De acordo com a entidade, quando o Ministério Público requer a absolvição em uma ação penal, o juiz não poderá condenar, assim como o juiz não poderá converter uma prisão em flagrante em preventiva quando o parquet requer a aplicação de medidas cautelares diversas da prisão.

O modelo acusatório de divisão de funções se sustenta no princípio acusatório, que se funda em uma estrutura processual baseada na diferenciação entre o criador (acusador) e a criação (acusação) [2]. Esse princípio pode ser enquadrado como formal ou material. Em ambas as espécies há a diferenciação entre o acusador e o julgador (elemento acusador — criador), divergindo, porém, no elemento criação (acusação).

O princípio acusatório será material “sempre que não houver qualquer espécie de interferência judicial na atividade para que a ação penal seja oferecida, ou então para que ela tenha o conteúdo que o juiz entenda correto” [3].

Por outro lado, o princípio acusatório, sob uma perspectiva formal, é “decorrente de uma clara preocupação do julgador com a existência ou conteúdo de uma acusação no processo, ao invés de primar pela independência do julgador frente ao Poder Judiciário” [4].

No princípio acusatório formal, há vinculação entre o órgão de acusação e o julgador, ocorrendo separação apenas sobre o aspecto formal. Essa divisão do princípio acusatório será de suma importância quando se analisar a questão da prisão preventiva.

Quando a decisão final sobre o arquivamento de uma investigação sai do âmbito do Ministério Público e passa para o Poder Judiciário, há uma clara violação ao princípio acusatório sob a perspectiva material, pois ocasiona uma vinculação entre o criador (acusador) e a criação (acusação).

Esta (criação — acusação) passa a ser do julgador (Judiciário), não do Ministério Público, visto que ocorre a imposição da continuidade da investigação e/ou da interposição de uma ação penal.

O julgador, ao determinar a continuidade da persecução, sob o argumento de que está preocupado com a existência ou o conteúdo da acusação, atua em consonância com o princípio acusatório apenas sob o aspecto formal, mesmo que ocorra a apresentação de ação penal pelo Ministério Público.

O verdadeiro acusador, em tal situação, é o juízo.

Essa situação está presente também nos casos de decretação de prisão preventiva quando o Ministério Público é contrário à medida.

A prisão cautelar, como é o caso da prisão preventiva, não é um fim em si mesmo, busca assegurar a eficácia da persecução penal e impõe a observância dos direitos fundamentais do acusado.

A restrição da liberdade só é admitida se houver a demonstração da existência de elementos suficientes para se discutir o mérito da persecução penal, a ser realizada na fase processual, sendo que essa análise inicial (possibilidade de se superar a fase investigativa para a processual) é efetuada pelo Ministério Público, enquanto titular da acusação, e, em fase final/decisória, pelo juiz, enquanto titular da função imparcial de julgar.

Decretação de prisão preventiva
Diante desse cenário, o entendimento de que a decretação de uma prisão preventiva engloba apenas a observância dos requisitos dos artigos 311, 312 e 313 do Código de Processo Penal é equivocado.

Quando decretada no curso de uma investigação, deve-se observar também os reflexos da prisão na fase persecutória processual, que diz respeito à necessidade de oferecimento de denúncia nos casos de ação penal pública ou o arquivamento do caso.

Por conseguinte, além dos referidos requisitos legais, o pedido de prisão obrigatoriamente deve passar pelo crivo de apreciação e aprovação do Ministério Público, em razão de o parquet ser o titular exclusivo da ação penal pública.

O Ministério Público analisará não apenas a presença dos citados requisitos legais, mas aferirá também se o caso está maduro para o ajuizamento, em razão de ser o titular exclusivo da atribuição de ajuizar uma ação penal pública.

Situação diferente acontece quando o MP apresenta a ação penal (criação da acusação) e, após a instrução processual, requer a absolvição. Em tal hipótese, o juiz não é obrigado a absolver.

É necessário diferenciar também, sob a perspectiva do modelo acusatório de divisão de funções no processo, a “criação da acusação” da “criação da decisão”.

A primeira é da atribuição (função) exclusiva do Ministério Público, como resultado do princípio acusatório sob a perspectiva material. Já a segunda é resultado da discussão em contraditório ocorrida no curso de um processo, em que as partes antagônicas (acusação e defesa) expõem e produzem seus fundamentos fáticos, probatórios e jurídicos referentes ao caso.

Após a instrução, é necessário que um terceiro imparcial, enquanto representante do Estado e da sociedade, profira uma decisão que se coadune de forma mais precisa com o interesse público. Entender de forma diversa resulta na vinculação da decisão do Poder Judiciário ao pedido formulado pelo MP (parte — criador da acusação), de modo a transformar o julgador em mero chancelador das manifestações do criador da acusação, que passa a ter o poder de criar o teor de uma decisão judicial.

O criador da acusação é também o criador da decisão?
Em caso positivo, cria-se um modelo processual de concentração das funções de acusar e decidir em um mesmo órgão, ferindo, desse modo, o modelo acusatório de processo. O juiz, responsável pela criação do resultado, não pode ter apenas o papel de homologação do entendimento de umas das partes processuais.

A importância da separação formal e material das funções no processo penal está presente no desenvolvimento da ideia de separação de poderes formulada por Montesquieu, o qual afirmava que todo homem detentor de poder tende a abusar dele.

Essa possibilidade de abuso também está presente no exercício de funções processuais. Por esse motivo, é atribuição precípua do juiz aplicar a lei ao caso concreto, substituindo os interesses e vontades das partes, buscando solucionar os conflitos jurídicos de forma definitiva.

Assim como na ideia de separação de poderes, haverá supressão da liberdade no processo quando os poderes se concentrarem em um único titular, extinguindo-se, desse modo, a atividade judicante e a liberdade da sociedade de decidir seus conflitos.

A atividade decisória concentrada em um dos polos da relação processual torna o juiz, repita-se, um órgão meramente chancelador.

A criação da decisão possibilita que o juiz alcance a dimensão orgânica-funcional da jurisdição, que necessita de uma efetiva atuação judicial, materializada por meio da sentença, condenatória ou absolutória, de acordo com o livre convencimento do juiz, que se baseará nos elementos fáticos e probatórios colhidos durante a instrução processual.

Essa situação é diferente das proferidas pelo juiz ao homologar um acordo resultante da incidência de um instituto negocial, visto que o resultado advindo de um contexto de justiça negocial é decorrente da composição de interesses entre as partes, cabendo ao juiz realizar o controle de legalidade ao homologar o pacto.

 


[1] Art. 385. Nos crimes de ação pública, o juiz poderá proferir sentença condenatória, ainda que o Ministério Público tenha opinado pela absolvição, bem como requerer agravantes, embora nenhum tenha sido alegada.

[2] ANDRADE, Mauro Fonseca. Sistemas processuais penais e seus princípios reitores. 2.ª edição. Curitiba: Juruá Editora, 2013, p. 265.

[3] ANDRADE, Mauro Fonseca. Sistemas processuais penais e seus princípios reitores. 2.ª edição. Curitiba: Juruá Editora, 2013, p. 267.

[4] ANDRADE, Mauro Fonseca. Sistemas processuais penais e seus princípios reitores. 2.ª edição. Curitiba: Juruá Editora, 2013, p. 267.

Autores

  • é mestre pela Universidade Católica de Brasília, doutorando pela Universidade do Porto, pós-graduado em Direito Público pela ESMPU e em Ciências Criminais pela Uniderp, orientador pedagógico da ESMPU, ex-procurador da Fazenda Nacional e atualmente procurador da República e membro-auxiliar na Assessoria Criminal no STJ.

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