Fábrica de Leis

Legislação intergeracional: pautas essenciais para os legisladores em 2024

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2 de janeiro de 2024, 8h00

Legislar é projetar uma realidade futura.

Dada uma certa realidade presente (que pode variar de lugar para lugar, mas que pode ser a mesma para o planeta), o direito “conforma” comportamentos considerando o que seria justo, adequado, devido, conforme a dignidade humana. E é sobre esses legítimos fins e a importância em justificá-los que uma legislação responsável deveria prestar atenção.

Spacca

A nossa Constituição Federal é uma vasta cadeia de fontes do direito [1], somadas a outras legislações que prescrevem o “avaliar” como elemento essencial ao repertório dos processos decisórios republicanos. E essa avaliação, base da justificação da escolha de prioridades legislativas, pode colaborar para que o povo brasileiro tenha uma vida mais digna (artigos 5º e 6º, CF).

Nas escolas de Direito do país, quando se iniciam os estudos sobre direito, normas, leis, os futuros integrantes do sistema de administração da justiça, da administração pública, da advocacia, aprendem que o direito é um “dever ser”. Porém, pouco se discute sobre como deveria ser o processo de escolha de prioridades legislativas e das suas justificações. Vivemos na sociedade da informação e da desinformação. Por isso, nunca foi tão importante trazer dados e evidências aos processos decisórios transparentes e participativos quanto nos dias atuais.

A cultura jurídica atribui sentidos aos atos, fatos e cria consequências, que por vezes não seriam possíveis no complexo mundo das pessoas e seus conflitos. O direito e seus operadores são capazes de inventar coisas que não existem, sobretudo para alterar comportamentos.

A legislação do século 21 está a anos-luz do modelo de elaboração legislativa iniciado, de forma mais “moderna, no fim do século 18.

Hoje, há conflitos mais severos em torno de moralidades, um avanço tecnológico contínuo e disruptivo, fricções institucionais no modelo clássico de divisão de poderes. Hoje, é possível verificar os efeitos das omissões sobre direitos fundamentais, sobre a desigualdade, o desenvolvimento econômico social.

Hoje, é possível acompanhar os trabalhos parlamentares, observar os parlamentares e muitas vezes interagir com eles, sem se deslocar para os grandes centros.

Universal, a atividade de legislação planeja os efeitos desejáveis para além da nossa existência e dirige esse olhar sobre a responsabilidade para o futuro. Toda atividade humana é passível de inovação, e não seria diferente com aquela que tanto impacto traz para a vida de pessoas e instituições.

A legislação intergeracional [2] é um passo à frente na corriqueira atividade de legislar, que acontece desde a Câmara Municipal de nove vereadores em  Serra da Saudade, o menor município do Brasil, até o Congresso Nacional. Ela lida com problemas públicos cujas consequências ultrapassam a geração presente e que precisam ser pensadas e incluídas em textos normativos (legais e infralegais). As consequências de não levar a sério a legislação intergeracional passa também pelo alcance das consequências pensadas sobre a vida de filhas e filhos, netas e netos e bisnetas e bisnetos dos que hoje se importam ou não com a qualidade das leis que assim o são porque tratam de temas relevantes.

Avaliar para legislar no sentido intergeracional significa pensar a longo prazo, planejar — verbo que costuma causar alergia em parlamentares que vivem de curto prazo. Ou que  insistem em ignorar que a qualidade do gasto público também alcança o funcionamento das atividades parlamentares.

E não só isso, já que podem atingir as condições de existência do patrimônio natural e o próprio sentido da vida sobre a Terra como a conhecemos hoje. Na prática, isso significa que prioridades legislativas intergeracionais devem ser consideradas no exercício das competências que cabem ao Legislativo, tanto as legislativas quanto as fiscalizatórias sobre atos do Executivo.

Nesse sentido, em 19 de dezembro de 2023 foi reinstituída a Comissão Nacional para os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), organismo destinado a implementar a Agenda 2030 e os 17 ODS no Brasil.

Conhecer os ODS é o primeiro passo para a escolha de pautas legislativas que façam sentido e que tenham um olhar lúcido sobre o futuro intergeracional.

Uma legislação intergeracional para o Brasil, inicialmente, necessitaria fortalecer e assegurar a implementação dos seguintes temas: água (saneamento); alimentação (agricultura sustentável e fome zero); equidade de gêneros (paz, justiça e instituições eficazes); erradicação da pobreza (trabalho decente e crescimento econômico, indústria, inovação, infraestrutura); a proteção à infância e à velhice. Não há hierarquia nessa menção, apenas o denso rol de problemas públicos que temos e seus desdobramentos sobre a dignidade da pessoa humana e todo o elenco dos artigos 5º e 6º da nossa Constituição Federal, aliás o nosso maior repositório de temas intergeracionais.

A questão da qualidade da água necessária para a sobrevivência, passando pela agropecuária/produção alimentar e geração de energia, passa por uma articulação com o saneamento no Brasil e suas consequências sobre a saúde pública e a desigualdade [3] —  situações bem conhecidas e documentados, mas ainda ignoradas por que tem água potável, acesso à rede de esgoto ou mesmo a uma torneira dentro de casa.

Mas a questão não para por aí. A situação global da poluição de plásticos — somada à necessidade de um devido tratamento dos resíduos com ações governamentais da economia circular — ganhou relevância com a Conferência de Nairobi e o Tratado para o fim do uso de plásticos que hoje são encontrados dentro de seres vivos e até mesmo nas nuvens.

Com raríssimas exceções, toda cidade no Brasil tem um rio cheio de plástico para chamar de seu. Ações governamentais com foco em seca e claro, no contexto da mudança climática são vitais porque nenhuma política industrial, tecnológica, se sustenta sem água (onde estão as políticas para reuso, a tecnologia para dessalinização em áreas secas, o aproveitamento de águas pluviais). A participação das comunidades nestes processos decisórios chama pelos comitês de bacias hidrográficas.

Crianças sem acesso à devida alimentação já serão desiguais, de partida e ao longo da vida. A situação dos idosos não é menos pior, uma vez que o impacto das doenças crônicas na saúde pública é relevante.

Os estudos sobre disparidade de gênero e prosperidade demonstram que o cuidado e valorização das mulheres [4] traz benefícios civilizacionais que vão desde o crescimento econômico, passando por queda da mortalidade infantil e melhoria nos indicadores sócio-econômicos de políticas públicas que contam com a efetiva participação feminina.

A insegurança alimentar é um dos paradoxos brasileiros diante da grande produção agrícola e da existência de desertos alimentares, mapeados desde 2018 e próximos a grandes centros produtores. A emergência global também documentada pela FAO traz um quadro de indignidade e do risco social dessa vil forma de pobreza. Garantir a segurança alimentar em diferentes níveis é a primeira condição para igualdade que tem reflexos geracionais.

Reconhecer a prioridade da pauta legislativa intergeracional é proteger a vida no seu sentido mais amplo, com pouca retórica, mas muita ação. Todos os legislativos estão convidados, afinal, as consequências das omissões atingem a possibilidade de seguir adiante, seja pela descendência ou pela memória histórica dos que não se omitiram.

 


[1] O sistema constitucional de avaliação é assim conformado: art. 37, §3º, I; art. 37, §8º, II; art. 40, § 1º, I; art. 40, § 4º ; art. 201, § 1º, I; art. 41, § 1º, III; art. 41, § 4 º; art. 132, parágrafo único ; art. 52, XV; art. 74, I; art. 74, II; art. 165, § 16; -Artigo 173, § 1º, V; Artigo 193, parágrafo; Artigo 198, § 3º, III ;art. 209, II; art. 212, § 9º; art. 212-A, V, alínea “c”; art. 212-A, X, alínea “e”; art. 239, § 5º; art. 41 do ADCT; a Lei Complementar 95/1998 ao introduzir as dimensões de redação e elaboração,  de lei e atos normativos; a Lei das Estatais (Lei nº 13.303/2016), dispondo sobre avaliação de impacto  no âmbito das empresas públicas e sociedades de economia mista;a Lei de Acesso a informação; o Código do Usuário do Serviço Público ( Lei Lei nº 13.460, de 26 de junho de 2017).o Decreto nº 9.191/2017 (que regulamenta “as normas e as diretrizes para elaboração, redação, alteração, consolidação e encaminhamento de propostas de atos normativos ao Presidente da República pelos Ministros de Estado”, dispondo sobre análise de impacto dessas medidas, sobretudo no que se referem às políticas públicas, conforme art. 32, incisos V, VI e VIII); o Decreto nº 9.203/2017 (que dispõe sobre política de governança da administração pública federal); o Decreto nº 9.834/2019, que instituiu o Conselho de Monitoramento e Avaliação de Políticas Públicas (CMAP), órgão competente para avaliar e monitorar as propostas de alteração das políticas públicas financiadas ou subsidiadas pela União; o Decreto nº 10.411/2020, que regulamenta a análise de impacto regulatório prevista nas Lei Geral das Agências Reguladoras Federais (Lei nº 13.874/2019) na Lei da Liberdade Econômica (Lei nº 13.848/2019).

[2] WEISS, Edith Brown et al. In fairness to future generations: international law, common patrimony, and intergenerational equity. 1988.

[3] https://tratabrasil.org.br/a-vida-sem-saneamento-para-quem-falta-e-onde-mora-essa-populacao/ Estudo elaborado por Fernando Garcia de Freitas e Ana Amélia Magnabosco.

[4] Vide trabalhos da pesquisadora Nobel de Economia, Claudia Goldin < https://scholar.harvard.edu/files/goldin/files/goldin_aeapress_2014_1.pdf>, Esther Duflo (Nobel) e Raghabendra Chattopadhyay ,Women as Policy Makers: Evidence from a India-Wide Randomized Policy Experiment <https://www.nber.org/papers/w8615>

 

Autores

  • é professora do curso de graduação e do programa de pós-graduação (mestrado e doutorado) em Direito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), doutora e mestre em Direito pela UFMG e coordenadora do Observatório para qualidade da Lei e do Legislab.

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