Opinião

Afinal, tortura ainda é considerada improbidade administrativa?

Autores

  • Davi Pirajá

    é promotor de Justiça do MP-MG graduado pela UnB pós-graduado pela FESMPDFT mestrando pela Universidade de Girona (ESspanha) e Gênova (Itália) e ex-assessor de ministro do STF.

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  • Daniel de Sá Rodrigues

    é promotor de Justiça do MP-MG graduado pela UFV pós-graduado pela Universidade Gama Filho-RJ coordenador do Centro de Apoio Operacional às Promotorias de Justiça de Defesa do Patrimônio Público do MPMG.

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  • Antônio Sérgio de Paula Rocha

    é procurador de Justiça da Procuradoria de Justiça de Direitos Difusos e Coletivos e membro do Conselho Superior do MP-MG.

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14 de maio de 2024, 18h27

Entre as inúmeras alterações promovidas na Lei de Improbidade Administrativa (Lei nº 8.429/92) pela Lei nº 14.230/21, destaca-se a nova forma de redação do artigo 11, que estabeleceu, como técnica legislativa, o elenco em rol taxativo das condutas caracterizadoras de ofensa aos princípios da administração para fins de sancionamento, em lugar do rol exemplificativo da redação original, técnica mantida para os tipos de improbidade que importam enriquecimento ilícito (artigo 9º) ou causam danos ao erário (artigo 10).

Grupo Tortura Nunca Mais

Sem embargo da discussão sobre a constitucionalidade dessa opção do legislador reformista, a se considerar plenamente válida a norma em tela, estariam admitidas, aparentemente, então, hipóteses em que atos e omissões dolosas de agentes públicos, embora atentem contra os princípios constitucionais da administração pública, estariam a salvo do sancionamento no âmbito da improbidade — esfera não penal — por não estarem nos apenas oito incisos de condutas taxativamente previstas pelo legislador reformistas (ou em leis especiais, diante da ressalva feita no § 1º do artigo 1º) e não importarem condutas tidas como mais graves (artigos 9º e 10).

Compreensão reducionista

Essa interpretação da regra em análise produz resultados irrazoáveis e contraditórios dentro do sistema de Justiça. Elucidativo disso é o julgamento da Apelação Cível 1.0708.18.000148-7/001, em que o Tribunal de Justiça de Minas Gerais reconheceu que a conduta de policiais militares que torturaram crianças abrigadas com o uso de spray de pimenta não configurara ato de improbidade administrativa, em razão da revogação do inciso I do artigo 11 — que tipificava como ato ímprobo o abuso de poder —, associada à previsão em rol taxativo das condutas violadoras dos princípios da administração pública, após as alterações da Lei n. 14.230/21 [1].

Tal compreensão reducionista da Lei de Improbidade Administrativa, todavia, afasta-se dos ditames constitucionais. Isso porque as normas que compõem o ordenamento jurídico devem fazer sentido entre si, não sendo racionalmente justificável que determinada conduta seja reprimida pelo meio mais gravoso disponível ao Estado, ante o reconhecido valor do bem jurídico que tutela (princípio da fragmentariedade) e, de outro lado, não haja qualquer sanção no âmbito administrativo-sancionador se a mesma ação ou omissão for praticada por agente público no exercício de sua função.

Para Dworkin, a coerência como princípio “exige que os diversos padrões que regem o uso estatal da coerção contra os cidadãos sejam coerentes no sentido de expressarem uma visão única e abrangente da justiça” [2]. Sob a óptica do direito como integridade, não se pode admitir essa teratologia sistêmica, ocasionada pela possibilidade de enquadramento de uma conduta, concomitantemente, “como crime (ultima ratio do sistema jurídico) e fato atípico na seara da improbidade, que, em tese, é uma esfera menos gravosa de que a criminal” [3].

Referida contradição se torna ainda mais evidente quando analisada sob a perspectiva da compatibilidade vertical da norma, considerando-se que a Constituição Federal, em seu artigo 37, § 4º, impôs ao legislador a obrigação de punir atos de improbidade administrativa, “sem prejuízo da ação penal cabível”.

Trata-se de legítima opção do constituinte originário de submeter o agente público que pratica conduta improba — e todo aquele que o auxilia — a duplo regime sancionatório, “(…) no intuito de prevenir a corrosão da máquina burocrática do Estado e evitar o perigo de uma administração corrupta caracterizada pelo descrédito e pela ineficiência” [4].

Interpretação conforme

O Conselho Nacional de Procuradores-Gerais de Justiça, nesse sentido, editou recentemente nota técnica sobre o tema (NT CNPG/GNP n º 01/2024), na qual afirma que, ainda que reconhecida a constitucionalidade da redação nova redação do “caput” do artigo 11 da LIA, referida norma deve receber interpretação conforme à Constituição, a fim de que “condutas penalmente típicas praticadas pelos sujeitos ativos sejam compreendidas também como atos de improbidade administrativa que atentam contra os princípios da administração pública, sob pena de, para além da violação dos princípios da vedação ao retrocesso e da proibição de proteção deficiente, validar-se decisão política incoerente com o ordenamento infraconstitucional — por contradição com os princípios da subsidiariedade e fragmentariedade — e constitucional — por violação à norma do artigo 37, § 4º, da CF”.

Mantida a interpretação restritiva do artigo 11, caput, da Lei nº 8.429/92, a força normativa da regra constitucional restaria enfraquecida, porquanto diversas condutas penalmente típicas ficariam absolutamente excluídas do âmbito da tutela da probidade administrativa.

A partir de uma rápida pesquisa a julgados do Tribunal de Justiça do de Minas Gerais é possível identificar alguns exemplos de condutas puníveis criminalmente que não foram reconhecidas como atos de improbidade administrativa, em razão da interpretação restrita e taxativa do rol do artigo 11 da LIA: tortura de adolescentes apreendidos (AC nº 1.0000.22.202858-1/001. DJ 28.04.2023); tortura de presos seguida da exigência de propina para liberação deles e de veículos apreendidos (AC nº 1.0429.06.010950-2/001, DJ 03.08.2023); agressão a detentos pelo diretor do presídio (AC nº 1.0153.15.003751-0/001. DJ 03.05.2023); intimidação e perseguição de cidadão por Delegado de Polícia (AC nº 1.0327.14.001832-3/001, DJ 27.07.2023); exigência propina e falta de prática de ato de ofício por servidor (AC nº 1.0000.22.097331-7/001 DJ 03.03.2023); descumprimento de ordem judicial que colocou em risco a segurança de alunos (AC nº 1.0000.21.253067-9/001. DJ 30.01.2023); conduta ofensiva no atendimento médico de idoso (AC nº 1.0000.21.158277-0/001, DJ 29.11.2023).

Conclusão

Em resposta à pergunta que intitula este artigo, conclui-se que sim, a tortura e qualquer outro crime praticado por agente público no exercício de sua função, deve ser considerado ato de improbidade administrativa. Não há como se conceber como coerente um microssistema cuja razão de ser é a tutela da moralidade pública e que admita como indiferente típico condutas que lesionam bens jurídicos já reconhecidos pelo legislador como de maior valor social.

 


[1] TJ-MG – Apelação Cível 1.0708.18.000148-7/001, Relator: Des. Luís Carlos Gambogi, 5ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em 24/02/2022, publicação da súmula em 25/2/2022.

[2] DWOKIN, Ronald. O Império do Direito (trad. Jefferson Luiz Camargo). São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 163.

[3] PAULINO, Galtiênio da Cruz; GUALTIERI, Lucas de Morais. Art. 11. Comentários à Lei de Improbidade Administrativa – interpretação constitucional em consonância com a eficácia jurídica e social (org. PAULINO, Galtiênio da Cruz, et. al.). Salvador: Juspodivm, 2024, p. 199

[4] STF, RE n. 976.566, rel. min. Alexandre de Moraes, Plenário, j. 26/9/2019

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  • é promotor de Justiça do MP-MG, graduado pela UnB, pós-graduado pela FESMPDFT, mestrando pela Universidade de Girona (ESspanha) e Gênova (Itália) e ex-assessor de ministro do STF.

  • é promotor de Justiça do MP-MG, graduado pela UFV, pós-graduado pela Universidade Gama Filho-RJ, coordenador do Centro de Apoio Operacional às Promotorias de Justiça de Defesa do Patrimônio Público do MPMG.

  • é procurador de Justiça da Procuradoria de Justiça de Direitos Difusos e Coletivos e membro do Conselho Superior do MP-MG.

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