Contas à Vista

A EC 132 e a reforma das Constituições Estaduais em matéria tributária

Autores

  • Fernando Facury Scaff

    é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP) advogado e sócio do escritório Silveira Athias Soriano de Mello Bentes Lobato & Scaff – Advogados.

  • Marcelo Labanca

    é advogado professor de Direito Constitucional da Universidade Católica de Pernambuco membro do Instituto Publius e pesquisador do Grupo Recife Estudos Constitucionais (REC).

27 de fevereiro de 2024, 8h00

Foi aprovada a EC 132 sobre a reforma tributária do consumo, sendo necessário aprovar leis complementares para sua implementação.

Para elaborar os anteprojetos de leis complementares a Portaria 104 do Secretário Extraordinário da Reforma Tributária do Ministério da Fazenda designou componentes para distintos colegiados de trabalho: 1 Comissão de Sistematização; 1 Grupo de Análise Jurídica; 19 Grupos Técnicos e 1 Equipe de Quantificação, o que será objeto de outra coluna.

A dúvida que aflora, com fortes reflexos práticos, é saber qual o papel das Constituições Estaduais nesse federalismo fiscal amordaçado imposto pela EC 132.

Os livros não respondem com exatidão, à míngua de textos acerca da matéria com a conotação específica do desenho adotado pela EC 132. Existem referências acerca de outro federalismo fiscal, que não é exatamente o que passou a vigorar no Brasil.

Dessa forma, alinhavamos algumas ideias preliminares a respeito.

A EC 132 elenca a necessidade de serem aprovadas várias leis complementares para implementar a reforma tributária do consumo, destacando-se as seguintes, dentre outras:

  • 156-A, que instituirá imposto sobre bens e serviços de competência compartilhada entre Estados, Distrito Federal e Municípios;
  • 156, §6º, que disporá sobre os regimes específicos de tributação;
  • 156-B, que regulará o Comitê Gestor, abrangendo de forma integrada Estados, Distrito Federal e Municípios;
  • 195, V, que institui a CBS, considerando que deverá ser a mesma lei complementar que instituirá o IBS (art. 124, EC 132);
  • 130 (EC 132) para instituir as alíquotas de referência do IBS e da CBS;
  • 37 (EC 132), que atribui à lei complementar competência para estabelecer normas gerais aplicáveis às administrações tributárias da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, dispondo sobre deveres, direitos e garantias dos servidores das carreiras.

Afinal, qual matéria ainda cabe às Constituições Estaduais e às Leis Orgânicas dos Municípios (LOMs), expressão máxima da autonomia de cada unidade federada?
Para responder é necessário verificar qual conteúdo normativo deve ser disciplinado obrigatoriamente por uma Constituição Estadual, e quais mediante lei ordinária ou normas infralegais estaduais.

A Constituição Federal afirma que “os Estados organizam-se e regem-se pelas Constituições e leis que adotarem, observados os princípios desta Constituição” (artigo 25), não delimitando quais assuntos devem necessariamente ser tratados no plano constitucional estadual ou pela legislação infraconstitucional.

Spacca

Apenas em algumas passagens foi estabelecida expressamente a competência da Constituição Estadual, dentre elas: proibições e incompatibilidades de parlamentares estaduais utilizadas como parâmetro para vereadores (artigo 29, IX); estabelecimento de princípios (artigo 35, IV); dispor sobre Tribunais de Contas estaduais (artigo 75, parágrafo único); competência dos Tribunais de Justiça (artigo 125, §1º); regras para nomeações dos titulares da Procuradoria-Geral de Justiça, Advocacia-Geral do Estado e Defensoria-Geral do Estado (artigo 235, X) e alguns outros aspectos.

Além desses artigos cada Estado poderá, no âmbito de sua própria autonomia, disciplinar outros assuntos inserindo-os no texto constitucional estadual, como é feito usualmente.

Basta ver o que existe em matéria de regulamentação do uso pelos municípios de parcela do ICMS ambiental e educacional, ou determinadas vinculações que são criadas no âmbito estadual para ensino e pesquisa científica e tecnológica, amparado no §5º, artigo 218, CF.

É fato que uma Constituição Estadual deve, à exemplo da Constituição Federal, disciplinar as regras básicas de sua organização. Dentre essas normas básicas encontra-se a organização do sistema tributário e orçamentário que se pretende adotar e implementar no âmbito estadual.

Não por outro motivo que as Constituições Estaduais possuem títulos ou capítulos inteiros dedicados apenas ao poder de tributar do Estado. Consulte o texto da Constituição de seu Estado e busque a expressão “tributo” ou “imposto”, e diversos artigos serão identificados.

Boa parte das normas referentes a tributos no plano estadual são consideradas “normas de reprodução obrigatória”, expressão utilizada por Raul Machado Horta para designar as normas constitucionais estaduais que são reproduções de normas constitucionais federais.

Nesse ponto, quando muda a Constituição Federal, também deve mudar a Estadual. E como a Constituição Federal mudou com a PEC 132, isso acarreta a necessidade de adaptação das Constituições Estaduais e das Leis Orgânicas municipais, acrescendo os ajustes que se fizerem necessários.

Enfim, será necessária essa alteração constitucional estadual para que a reforma tributária seja executada?
Penso que resta muito pouco (ou quase nada) no âmbito da incidência (relação entre Fisco e contribuintes), pois a matéria será regulada por meio de leis complementares (nacionais) não sendo necessário aguardar modificação das Constituições Estaduais, exceto se surgir nova modificação do que foi até aqui aprovado.

O espaço regulatório que sobrou aos estados e municípios ficará a cargo da legislação ordinária e infralegal de cada ente federado.

A situação é semelhante no âmbito das vinculações (liame financeiro que une a arrecadação a uma despesa ou órgão), pois o artigo 6º da EC 132 estabeleceu em seus §§ 1º e 2º, que as vinculações estaduais e municipais atualmente existentes no âmbito do ICMS e do ISS, serão aplicadas sobre a receita do IBS em mesmo percentual, enquanto não houver alteração na legislação correspondente.

Idêntica situação parece ocorrer no âmbito da despesa (relação entre o Estado e os gastos), pois as leis ordinárias e normas infralegais, em especial as leis orçamentárias anuais, darão conta das despesas que vierem a ser estabelecidas, respeitado o montante arrecadado e as vinculações estabelecidas.

Todavia, e isso é muito importante, podem existir em cada Constituição Estadual e em cada LOM dispositivos que serão afetados pela EC 132 que não dizem respeito diretamente à incidência, e que devem ser revisitados desde já, a fim de reduzir as chances de judicialização da matéria. A análise deve ser individualizada por cada ente federado a fim de identificar onde isso deve ocorrer.

Portanto, em face desse novo desenho federativo tributário e financeiro, para as Constituições Estaduais e as LOMs, será necessário realizar o trabalho de adaptação de seu texto, além de adequar eventuais modificações que se fizerem necessárias dentro do espaço regulatório remanescente.

É importante que os estados (e municípios) desde logo iniciem os estudos para estabelecer os contornos das necessárias PECs (Propostas de Emenda Constitucional Estadual) para posterior envio às Assembleias Legislativas correspondentes. Embora seja um trabalho de adaptação, há espaço regulatório a ser exercido e adequações a serem realizadas.

Autores

  • é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP), advogado e sócio do escritório Silveira, Athias, Soriano de Mello, Bentes, Lobato & Scaff – Advogados.

  • é advogado, professor de Direito Constitucional da Universidade Católica de Pernambuco e pesquisador do Grupo Recife Estudos Constitucionais (REC).

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!