Opinião

Os sete pecados capitais do Imposto Seletivo

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22 de abril de 2024, 7h04

Como amplamente divulgado pelos meios de comunicação, sob a justificativa de simplificar o sistema tributário nacional, dar maior transparência à carga tributária e reduzir o número de obrigações acessórias, foi aprovada, no final do ano passado, a tão esperada reforma tributária do consumo, por meio da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) nº 132, de 20 de dezembro de 2023.

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Dentre as inúmeras alterações promovidas no sistema tributário nacional pela referida PEC, a que trataremos aqui versa sobre o chamado Imposto Seletivo (IS), de competência da União, mas compartilhado com estados e municípios, que deverá incidir sobre a produção, extração, comercialização ou importação de bens e serviços prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente.

Esse tipo de imposto vem se tornando muito popular em todo o mundo, já que possui o nobre objetivo de conter as externalidades negativas, ou seja, desestimular o consumo de produtos que, por um lado, prejudicam a população em geral e, por outro, aumentam os gastos públicos, como cigarros, bebidas alcoolicas e bebidas açucaradas. Por essa razão, ganhou o apelido de Imposto sobre o Pecado (sin tax).

De acordo com o novo texto constitucional, o Imposto Seletivo será monofásico, ou seja, incidirá uma única vez sobre o bem ou serviço, mas não poderá taxar as exportações (com exceção da fase de extração), nem as operações como energia elétrica e telecomunicações (consideradas essenciais). Por outro lado, esse imposto poderá incidir sobre as mesmas operações e bases de cálculo de outros tributos, inclusive, integrando essas mesmas bases de cálculo (imposto sobre imposto).

Mas, como diz o ditado alemão: “O Diabo está nos detalhes” (der Teufel steckt im Detail), o que significa que devemos analisar com muita atenção as consequências de nossos atos para que não venhamos a nos arrepender no futuro. Nesse sentido, vejamos quais são os sete pecados capitais que podem ser cometidos por esse novo imposto.

  • Seletividade: a começar pela ausência de previsão expressa no texto constitucional de aplicação desse princípio geral de tributação ao IS, o que descaracteriza sua própria denominação. De acordo com a seletividade, bens e serviços devem ser tributados conforme sua essencialidade. Assim, quanto mais supérfluo, maior a tributação, e vice-versa. Vale ressaltar que, por falha semelhante na Constituição, o STF demorou 30 anos para decidir se esse mesmo princípio seria aplicável ao ICMS (Tema 745). Não queremos cometer o mesmo erro novamente.
  • Complexidade: a maior justificativa para a aprovação da reforma tributária foi, sem sombra de dúvidas, a redução da complexidade do atual sistema tributário brasileiro. No entanto, esse desafio não será superado pelo IS, dada a dificuldade de se definir o que será considerado prejudicial à saúde ou ao meio ambiente. Para ficarmos em um único exemplo: há quase uma década, o STF discute os malefícios causados à saúde e ao meio ambiente pelos agrotóxicos, a justificar a concessão de incentivos fiscais a esses produtos (ADI 5.553). Ao que tudo indica, voltaremos às velhas contendas sobre classificação fiscal.
  • Neutralidade: no século 16, o médico suíço-alemão Paracelso já advertia que “a diferença entre o remédio e o veneno está na dose”. Apesar de não haver consenso na bibliografia, estudos científicos relacionam o consumo leve de álcool a um menor risco de doenças cardiovasculares. Assim, a tributação pelo IS deve levar em consideração a graduação alcóolica de cada bebida? Se for este o caso, as cervejarias artesanais, por exemplo, reduzirão seu teor alcoólico para se adequarem a uma tributação mais favorável, o que contraria o princípio de que a tributação não deve orientar os agentes de mercado.
  • Regressividade: de acordo com a Revista Brasileira de Cancerologia, no Brasil, o tabagismo é maior entre pretos e pardos, de classe social mais baixa e com menor escolaridade. O mesmo deve ocorrer com alimentos ultraprocessados e ricos em teor açúcar. E não é crível que um aumento do preço pela tributação, por si só, levará a uma mudança de hábitos. Assim, a tendência é a de que o IS tribute de forma mais severa a parcela mais carente da população, o que afronta a ideia geral da reforma de promover a progressividade tributária, ou seja, tributar de forma mais gravosa o “andar de cima” da sociedade brasileira.
  • Extrafiscalidade: os tributos, em geral, possuem uma função fiscal (arrecadatória) e uma função extrafiscal (regulatória). De acordo com a promessa governo federal, a reforma tributária não implicará em um aumento da carga tributária. Todavia, não há um único dispositivo na Emenda Constitucional nº 132 ou estudo econômico que assegure essa promessa. Essa situação fica ainda mais evidente quando confrontada com a manutenção de outros tributos com os mesmos propósitos, como o IPI e a CIDE-Combustíveis.
  • Cumulatividade: como visto acima, o texto constitucional prevê que o IS seja monofásico, incidindo uma única vez sobre os bens e serviços considerados prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente. No entanto, a própria EC nº 132 estabelece exceções a essa regra, ao permitir, na atividade de extração, que sua cobrança independa da destinação do bem ou serviço. Como permitir, então, essa tributação quando os minerais forem utilizados na fabricação de máquinas e equipamentos médicos ou geradores de energia sustentável?
  • Utilidade: por fim, mas não menos importante, ao contrário das contribuições, os impostos não podem ter destinação específica. Assim, sua receita não deve ser vinculada a fundo, órgão ou despesa, segundo o artigo 167, inciso IV da Constituição. Dessa forma, não podemos assegurar que os recursos arrecadados com o IS serão utilizados para compensar o Estado pelos excessivos gastos com as externalidade negativas, ao invés de, por exemplo, servir para custear a Administração.

Como se vê, o Imposto Seletivo não atende aos ideais que justificaram a aprovação da reforma tributária e, dificilmente, conseguirá combater as externalidades negativas a que se propõe, sem uma carga ideológica determinante, sujeita, portanto, a inúmeros lobbies e interpretações. A prevalecer a sua cobrança, nos moldes em que instituído pela EC nº 132, restará a nós, pecadores, pedir à Nossa Senhora que rogai por nós, agora e na hora de nossa morte. Amém!

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