Opinião

A função do Imposto Seletivo

Autor

23 de abril de 2024, 13h22

Uma das novidades trazidas pela reforma tributária é a previsão da instituição de um imposto sobre “produção, extração, comercialização ou importação de bens e serviços prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente” pela União.

freepik
fumo cigarro

O novo imposto, correntemente denominado de Imposto Seletivo (IS), desperta debates sobre como deverá ser instituído e a maneira pela qual afetará os bens e serviços. Há, nessa discussão, uma importante premissa a ser refletida: esse imposto é investido de função fiscal, extrafiscal ou sua instituição pode ser realizada sob ambas as formas? Essa não é uma pergunta trivial e nem se esgota pela simples aposição do apelido “seletivo”.

A distinção entre função fiscal e extrafiscal é complexa e assume matizes distintas. Uma das formas que se mostra apropriada é concebê-la a partir da fundamentação utilizada para a norma jurídica e a consideração dos seus efeitos potenciais.

A diferença não parte de uma tipologia rígida, como se um tributo fosse fiscal ou extrafiscal pela sua própria natureza, mas em razão de sua fundamentação. É por ocasião de sua interpretação que se analisa qual relação o critério material da norma guarda com os princípios da igualdade e da capacidade contributiva, neles se fundamentando, no caso das normas fiscais, ou deles se afastando, na hipótese das normas extrafiscais, para buscar sua fundamentação em outros dispositivos constitucionais que estabelecem finalidades a serem concretizadas.

Um elemento importante na distinção entre função fiscal e extrafiscal é que ela não reside propriamente na capacidade arrecadatória do imposto e nem apenas em razão dos efeitos concretos de sua cobrança.

Uma norma investida de função extrafiscal não tem seu potencial arrecadatório determinado pela sua finalidade, uma vez que o respectivo tributo pode ter sua arrecadação majorada e ser essa a causa da indução pretendida, como pode ocorrer justamente o inverso, quando, pela redução da arrecadação, é que se obtém a finalidade indutora, a exemplo dos benefícios fiscais.

Por outro lado, também não se infere a função extrafiscal apenas em razão de possíveis induções dos contribuintes, pois a arrecadação operará efeitos sobre os comportamentos dos indivíduos sem que isso signifique necessariamente um afastamento frente à capacidade contributiva, mas apenas um reflexo na formação de preços.

Um bem ou serviço pode ter sua carga tributária majorada e, assim, seu consumo reduzido sem que isso signifique uma forma de se concretizar uma finalidade extrafiscal, sendo o contrário também possível.

Na hipótese do IS, é necessário analisar se a norma constitucional trouxe uma finalidade suficiente a investi-lo de função extrafiscal a ser necessariamente observada pelo exercício da competência pela União. Essa é, por exemplo, a hipótese do artigo 183, § 4º, II, da Constituição, ao estabelecer que o IPTU poderá ser progressivo em função do tempo para fins de concretização de política de desenvolvimento urbana.

Deve-se, portanto, indagar se a Constituição, ao outorgar competência para instituir “bens e serviços prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente”, prescreveu uma finalidade concreta, específica e suficiente para o imposto. Concreta por não ser ambígua, contraditória em relação a outro objetivo constitucional ou meramente implícita. Específica por integrar e condicionar a norma de competência constitucional, sendo desnecessária a remissão a uma finalidade instituída por outro dispositivo da Constituição, de maneira a ser, ao final, suficiente à fundamentação da norma tributária.

Spacca

A recorrência a outras normas constitucionais para a identificação e fundamentação da finalidade do IS não torna sua norma sujeita exclusivamente à função extrafiscal, mas o faz apenas de maneira contingente, como ocorre com vários outros impostos, de forma a ele poder ser instituído tanto com finalidade fiscal, quanto indutora. Assim, são possíveis as seguintes posições:

  1. a norma constitucional do IS estabelece uma finalidade concreta, específica e suficiente para condicionar sua instituição à função indutora;
  2. a norma constitucional do IS, ao referir-se a “bens e serviços prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente”, apenas delimitou o critério material do imposto, que poderá incidir sobre ditos bens e serviços sem explicitamente buscar uma finalidade extrafiscal;
  3. em decorrência da posição ‘ii’ é possível a instituição do IS sob ambas as funções da norma tributária, ou seja, de forma fiscal, com fundamento na capacidade contributiva, assim como a partir da função extrafiscal em razão da concretização de uma finalidade constitucional, como a promoção da saúde (artigo 196) e do meio ambiente (artigo 225).

Caracterização do Imposto Seletivo

A análise do texto constitucional permite concluir que a norma de competência estabeleceu uma finalidade concreta, específica e suficiente para o IS, de forma a condicionar sua instituição à função extrafiscal da norma tributária. A essa conclusão é possível chegar por meio dos signos aplicáveis ao critério material do IS.

Ao referir-se a “bens e serviços prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente”, a Constituição não utilizou signos de capacidade econômica como elemento distintivo do novo imposto, mas sim o fez em razão de uma propriedade que deve ser observada nos bens e serviços tributados pelo IS: a prejudicialidade à saúde ou ao meio ambiente.

Essa é uma forma distinta da maneira pela qual a Constituição outorgou competências tributárias em outros impostos, como renda, propriedade, operações com bens materiais ou imateriais, etc., por meio dos quais o texto fez referência, em observância ao artigo 145, § 1º, a elementos representativos da capacidade contributiva dos indivíduos.

Dessa forma, o IS não tributa o bem ou serviço em razão da capacidade econômica, mas em função da prejudicialidade à saúde e ao meio ambiente decorrente. Ao afastar-se da capacidade contributiva, a norma constitucional do IS estabeleceu outro fundamento para a instituição do IS na forma de uma finalidade a ser concretizada através de sua cobrança.

Sendo um tributo sobre o consumo, porquanto incidente sobre bens e serviços, compreende-se que a finalidade do imposto é o desestímulo do consumo de “bens e serviços prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente”, que se distingue de finalidades mais amplas, como a promoção à saúde ou do meio ambiente de uma forma geral, dedutíveis de outras normas constitucionais que podem servir de fundamento para fins extrafiscais em outros impostos.

A fundamentação do IS a partir da função extrafiscal torna sua instituição sujeita a critérios distintos daqueles observados caso possível sua instituição com fundamento apenas na capacidade contributiva. Essa distinção não reside propriamente em sua maior ou menor capacidade arrecadatória, uma vez que esse não é um elemento distintivo para a função exercida pela norma tributária.

O IS, a ser instituído necessariamente com função extrafiscal, deve observar a finalidade constitucional expressa pela sua norma de competência, sujeitando-se a um juízo de proporcionalidade entre o bem coletivo cuja concretização é pretendida e os efeitos potenciais decorrentes de sua cobrança.

Esse juízo de proporcionalidade sujeita o IS ao exame de sua adequação, necessidade e proporcionalidade em relação à finalidade pretendida, critérios aos quais não estaria sujeito caso possível sua fundamentação a partir da capacidade contributiva.

O IS deverá ser adequado por ser uma medida que efetivamente contribua para a concretização da finalidade pretendida; necessário por ser, dentre todas as formas de promoção da finalidade pretendida, a que menos restringir direitos fundamentais; e proporcional por provocar mais efeitos positivos do que negativos.

Caso não cumpra esses critérios, o futuro IS deixará de observar a norma de competência, o que possui consequências distintas daquelas que se verificam em outros impostos, cuja instituição a partir da função extrafiscal é uma mera opção legislativa, sendo possível, em algumas hipóteses, permanecer válido por não infringir o fundamento da capacidade contributiva.

A criação de um novo tributo como o IS torna necessário o amplo debate sobre seus fundamentos. A futura lei complementar que estabelecerá normas gerais sobre o imposto deverá trazer definições a respeito dos seus principais elementos, como fato gerador, base de cálculo e contribuintes. A cobrança do IS fora dos limites constitucionais, ao invés de promover sua finalidade, trará um incentivo à litigância e poderá ser um retrocesso aos objetivos da reforma tributária.

Autores

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!