Justiça Tributária

Natureza e materialidade constitucional do 'Imposto Seletivo'

Autor

  • Sergio André Rocha

    é professor de Direito Financeiro e Tributário da Uerj livre-docente em Direito Tributário pela USP diretor vice-presidente da ABDF (Associação Brasileira de Direito Financeiro) advogado e parecerista.

22 de abril de 2024, 10h21

Sobre a natureza do ‘Imposto Seletivo’

Um dos temas da Emenda Constitucional nº 132 (EC 132) que tem gerado grandes discussões é a instituição do dito “Imposto Seletivo”, previsto neste inciso VIII do artigo 153 da Constituição.

Por mais que tenha se tornado comum a referência a este novo tributo como “Imposto Seletivo”, parece-nos que a nomenclatura talvez não seja a melhor.

Na experiência brasileira, a seletividade tem sido utilizada como uma técnica legislativa dos tributos sobre o consumo que procura diferenciar a incidência sobre contribuintes com base no tipo de consumo, mais ou menos essencial.

Diante da dificuldade que esses tributos apresentam para a utilização da capacidade contributiva como critério de diferenciação e alocação da carga tributária, a essencialidade é usada como método de diferenciação. [1]

O imposto incluído no inciso VIII do artigo 153 não é seletivo nesse sentido, até porque a seletividade é um critério comparativo entre consumos em função de sua essencialidade, e o novo imposto tem como referência não a essencialidade, mas o caráter prejudicial à saúde ou ao meio ambiente.

É possível, inclusive, que se tenha um consumo essencial que seja, ao mesmo tempo, prejudicial ao meio ambiente, por exemplo.

Spacca

Em tese, seria possível cogitar de uma seletividade baseada não na essencialidade do consumo, mas nas externalidades negativas dos bens ou serviços. Contudo, ainda assim, parece-nos estranho pensar em um imposto em si seletivo, já que, como apontamos, vemos a seletividade como um critério de diferenciação dentro do tributo.

Em manifestação anterior, [2] sustentamos que estaríamos, em verdade, diante de um Imposto Extrafiscal, de finalidade indutora, cujo objetivo seria utilizar a tributação de forma regulatória, com foco em bens e serviços prejudiciais à saúde e ao meio ambiente.

Durante a tramitação da Proposta de Emenda Constitucional nº 45 (PEC 45) no Senado chegou-se a incluir, explicitamente, no texto do § 6º do artigo 153, que este imposto seria extrafiscal. Contudo, esta parte acabou sendo excluída e não consta na EC 132.

Surge, então, a questão: este imposto pode ser utilizado com finalidades arrecadatórias, ou sua cobrança estaria restrita a fins extrafiscais relacionados às situações previstas no inciso VIII do artigo 153?

Ora, como temos sustentado, arrecadar recursos para os cofres públicos é função inerente a qualquer imposto, mesmo aqueles que têm objetivos extrafiscais. Um imposto que não arrecada é uma contradição de termos.

Consequentemente, não vemos qualquer problema em que o “Imposto Seletivo” venha a ser utilizado “para fins arrecadatórios”, como se diz no discurso público. Como já defendemos, analisando o IPI:

“Com isso, queremos dizer que o IPI e o Imposto de Renda não são diferentes entre si no que se refere ao seu papel fiscal. Não há nada na Constituição Federal que estabeleça que o IPI deva ser utilizado, principalmente, para fins extrafiscais, ou que ele tenha um papel arrecadatório secundário. A Lei Maior apenas estabeleceu um regime específico — para o IPI, o II, o IE e o IOF — que permite que sejam utilizados também para outros fins. Contudo, esse fato não lhes retira a função fiscal — nem mesmo significa que haja — de uma perspectiva constitucional — uma primazia de sua função extrafiscal.” [3]

Após maior reflexão sobre o imposto previsto no inciso VIII do artigo 153, parece-nos que ele não pode ser caracterizado como um tributo predominantemente extrafiscal, sendo prioritariamente arrecadatório tanto quanto o Imposto de Renda ou o próprio Imposto sobre Bens e Serviços (IBS).

Uma das grandes novidades da EC 132 foi a previsão expressa do princípio da justiça tributária no § 3º do artigo 145 da Constituição.

Como já apontamos, a questão central da justiça tributária é estabelecer critérios para a distribuição da carga dos tributos, [4] sendo que o seu subprincípio mais relevante é o princípio da capacidade contributiva.

A EC 132 também elevou a defesa do meio ambiente à categoria de princípio do Sistema Tributário Nacional.

O “Imposto Seletivo”, em sua feição final, parece-nos, portanto, ser um imposto de finalidade prioritariamente fiscal — arrecadatória — cuja instituição e incidência estão limitadas à produção, extração, comercialização ou importação de bens e serviços prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente, devendo, segundo o princípio da justiça tributária, sempre que possível, ser pessoal e considerar a capacidade econômica dos contribuintes.

Consequentemente, o controle da constitucionalidade e legitimidade da lei complementar que o instituir dependerá não de uma justificativa indutora/regulatória, mas sim da sua congruência com a materialidade prevista no inciso VIII do artigo 153.

Em linha com essa evolução da natureza do “Imposto Seletivo”, inicialmente ele teria o mesmo regime constitucional dos demais impostos que têm viés extrafiscal — II, IE, IPI e IOF. Contudo, durante a tramitação da PEC 45 os dispositivos que previam que o novo imposto teria uma legalidade mitigada e seria uma exceção à regra da anterioridade foram excluídos.

Assim sendo, da maneira como o debate sobre o “Imposto Seletivo” evoluiu, está claro que ele tem propósito arrecadatório. Naturalmente, como ocorre com qualquer imposto, ele pode ser utilizado para fins extrafiscais. Entretanto, parece-nos um equívoco caracterizá-lo como um imposto extrafiscal ou predominantemente extrafiscal.

A própria previsão da incidência do “Imposto Seletivo” sobre atividades extrativas nos parece confirmar nossa posição.

Afinal, não cremos ser possível defender que a incidência deste imposto sobre atividades econômicas absolutamente essenciais para a economia brasileira tenha por objetivo desincentivá-las, ainda mais se levarmos em conta que não raro tais setores são predominantemente exportadores.

Não há outra explicação para esta incidência, segundo vemos, que não a finalidade de arrecadar recursos para os cofres públicos.

Este debate não é meramente teórico, tendo relevantes consequências concretas, especialmente quando se considera a legitimidade da instituição do imposto.

Com efeito, para aqueles que pretendem que o “Imposto Seletivo” seja um tributo regulatório, a sua instituição se legitima na medida em que se verifica uma indução, necessária e adequada, para a redução de externalidades negativas à saúde e ao meio ambiente.

Não se identificando uma relação de causa e efeito entre a tributação e a proteção do meio ambiente ou da saúde o imposto provavelmente seria considerado inconstitucional.

Não é esta a posição que defendemos. Não nos parece que a legitimidade do “Imposto Seletivo” dependa da existência de uma pretensão regulatória/indutora.

Para a sua incidência basta que se esteja diante de um bem prejudicial à saúde ou ao meio ambiente, mesmo que a cobrança do novo imposto federal — ou a aplicação dos recursos arrecadados por meio dele — não tenham por consequência atenuar os efeitos nocivos do bem ou serviço sobre a saúde ou o meio ambiente.

Pode-se dizer que a competência para a instituição do “Imposto Seletivo” é muito ampla e, de fato, ela o é. Contudo, esta foi a decisão do legislador constitucional derivado brasileiro.

Temos insistido que, com a entrada em vigor da Emenda Constitucional nº 132 devemos interpretar o novo Sistema Tributário Nacional a partir do texto aprovado pelo Congresso, e não segundo experiências estrangeiras e as intenções daqueles que participaram do processo de elaboração das proposições que resultaram na emenda constitucional.

A materialidade constitucional do ‘Imposto Seletivo’

Uma das características da EC 132 é que ao mesmo tempo em que ela aumentou, de forma bastante significativa, o número de dispositivos tributários na Constituição, ela delegou à lei complementar muito da competência para delimitar o alcance de tais dispositivos.

No caso do “Imposto Seletivo”, como vimos, ela estabeleceu a competência da União Federal para instituir um imposto sobre a “produção, extração, comercialização ou importação de bens e serviços prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente, nos termos de lei complementar”. (destaque nosso)

As questões, cujo desenvolvimento teremos que acompanhar, conforme o inciso VIII do artigo 153 for interpretado pelos diversos atores, são as seguintes: o legislador complementar terá ampla liberdade de conformação para definir o que é produção, extração, comercialização e importação? Poderá a lei complementar definir, da maneira como entender mais adequado, o que são bens e serviços? Da mesma maneira, como será delimitado o que é prejudicial à saúde e ao meio ambiente?

A tradição conceitualista do Direito Tributário brasileiro tende a sustentar que todos esses termos veiculariam conceitos constitucionais, aos quais o legislador complementar estaria vinculado. Sendo este o caso, a depender do texto da lei complementar, poderemos ter os primeiros litígios pós-reforma tributária.

Veja-se que a própria redação do inciso VIII não é a ideal, já que fala da produção, extração, comercialização e importação de serviços, por exemplo.

Se, de um lado, certamente podemos ter importação de serviços — embora esta não seja uma expressão com definição unívoca — é muito difícil pensar que serviços sejam produzidos, extraídos ou comercializados. Pelo menos esses não são verbos usualmente relacionados às atividades de serviços.

De outra parte, enquanto em relação ao do IBS, a EC 132 deixou claro que a competência prevista na Constituição incluía “bens materiais ou imateriais, inclusive direitos” (artigo 156-A, § 1º, I), no caso do “Imposto Seletivo” a menção foi feita apenas a bens e serviços.

Consequentemente, devemos ter as velhas discussões a respeito da existência de conceitos constitucionais de bens e serviços, os quais pautariam e limitariam a competência do legislador complementar na instituição do imposto. Custa acreditar, mas a EC 132 conseguiu dar sobrevida às incansáveis discussões sobre o conceito constitucional de serviços.

Em todo o caso, os bens e serviços cuja produção, extração, comercialização e importação podem ser tributadas pelo “Imposto Seletivo” são apenas aqueles prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente.

A questão aqui é que é difícil imaginar bens e serviços que não tenham alguma externalidade negativa à saúde e ao meio ambiente. Trata-se mais de uma questão de grau do que propriamente de uma questão binária, “prejudicial” versus “não prejudicial”.

Por outro lado, e esta é uma questão importante: o Imposto Seletivo pode incidir sobre bens e serviços prejudiciais à saúde e ao meio ambiente, em outras palavras, o que deve ser prejudicial é o próprio bem ou serviço, e não o seu processo de produção, extração, comercialização ou importação.

A EC 132 não previu a possibilidade de instituição de um imposto sobre “processos de produção, extração, comercialização e importação” prejudiciais à saúde e ao meio ambiente.

Esta afirmação está alinhada com a própria origem do imposto. Com efeito, a PEC 45, em sua versão original, tinha como premissa uma neutralidade plena da tributação de bens — inclusive intangíveis — e serviços, os quais seriam, todos, sujeitos à mesma incidência, sem exceções ou benefícios fiscais.

No contexto desse modelo de neutralidade absoluta, o Imposto Seletivo tinha um papel. Pode ser, inclusive, que venha daí sua denominação de Imposto Seletivo.

Afinal, ele serviria para estabelecer alguma diferenciação no âmbito do próprio IBS que, em sua proposta inicial, seria completamente neutro.

Em outras palavras, o papel deste imposto era funcionar como um adicional tributário incidente sobre certos consumos.

Sobreveio a Proposta de Emenda Constitucional nº 110 (PEC 110) e a neutralidade do IBS sofreu a sua primeira mitigação, com a previsão de tratamento diferenciado para alguns setores como, por exemplo, alimentos, saúde e educação.

A PEC 45, na forma aprovada pelo Congresso, implodiu a neutralidade pretendida para o IBS, com a criação de diversas exceções e possibilidades de regimes diferenciados favorecidos.

De toda maneira, nota-se que a lógica do “Imposto Seletivo” não é ser um imposto que grave certos processos de produção, extração, comercialização e importação.

Conclusão

Neste momento, aguardamos a apresentação dos projetos de lei complementar de regulamentação da reforma tributária pelo governo. Em breve, teremos uma percepção mais clara da extensão que a União  pretende dar à competência prevista no inciso VIII do artigo 153 da Constituição.

É verdade que mesmo que se estabeleça, em em sua lei complementar inaugural, que o “Imposto Seletivo” teria uma função predominantemente extrafiscal — como parecer ter sido o caso do Projeto de Lei Complementar nº 29/2024, do deputado Federal Luiz Philippe de Orleans e Bragança —, isso certamente não significará que tal competência não poderia ser exercida de forma mais ampla adiante. Dessa maneira, ainda travaremos debates sobre a natureza e a materialidade do “Imposto Seletivo” por muitos anos.

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[1] Como apontava Ricardo Lobo Torres, “a seletividade se subordina ao princípio maior da capacidade contributiva e significa que o tributo deve incidir progressivamente na razão inversa da essencialidade dos produtos: quanto menor a essencialidade do produto maior deverá ser a alíquota, e vice-versa” (TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário: Os Tributos na Constituição. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. 2007. v. IV. p. 178).

[2] ROCHA, Sergio André. Tributação, finanças públicas e desenvolvimento (Ensaios). Belo Horizonte: Casa do Direito, 2023. p. 178-185.

[3] ROCHA, Sergio André. Fundamentos do Direito Tributário Brasileiro. 2 ed. Belo Horizonte: Casa do Direito, 2022. p. 114-115.

[4] ROCHA, Sergio André. Tributação, finanças públicas e desenvolvimento (Ensaios). Belo Horizonte: Casa do Direito, 2023. p. 39-40.

Autores

  • é professor de Direito Financeiro e Tributário da Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), livre-docente em Direito Tributário pela USP (Universidade de São Paulo), diretor vice-presidente da ABDF (Associação Brasileira de Direito Financeiro), advogado e parecerista.

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