Opinião

Efetivos benefícios fiscais de ICMS voltados a empresas e a tributação federal

Autor

  • Gustavo Busato

    é bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais pela UFRGS especialista em Direito Tributário Financeiro e Econômico pela Faculdade de Direito da UFRGS e auditor-fiscal da Receita Federal.

23 de abril de 2024, 15h22

As unidades federadas utilizam-se de incentivos e benefícios fiscais relativos ao ICMS para atrair e até mesmo manter investimentos privados. No entanto, a adoção desenfreada dessa política pela grande maioria dos estados, por muitos anos, desencadeou o ambiente de guerra fiscal, obrigando-os, cada vez mais, a renunciar parcela significativa das suas receitas em prol da iniciativa privada.

Nessas circunstâncias, embora o ICMS permaneça incidente nas operações, ele não mais ingressa integralmente nos cofres públicos, por conta da apropriação de parte dele diretamente pelas empresas legalmente beneficiadas.

Assim, a concessão desses benefícios revela-se verdadeira aplicação de recursos público, pois o mesmo imposto que deixa de ser arrecadado ao Estado incide e segue embutido nos preços praticados nas operações comerciais, sendo o seu ônus repassado para as operações subsequentes (princípio da não-cumulatividade), até ser suportado em definitivo pelos consumidores finais.

Ou seja, conquanto possa parecer, não se trata de espécie de desoneração tributária, mas sim de benefício que é apropriado pelas empresas por meio de recursos que advêm de parcela relevante do ICMS que é suportado pelos consumidores.

A forma mais usual de as unidades federadas proporcionarem benefícios fiscais às empresas procede-se pela concessão de crédito presumido de ICMS.

Não obstante isso, as demais formas que também resultam na permissão legal de a empresa beneficiária se apropriar de parte do imposto incidente na operação produzem efeitos patrimoniais semelhantes aos do benefício do crédito presumido de ICMS.

Por outro lado, nem todo crédito presumido ou, por vezes, nem todo o seu montante é benefício fiscal, a depender da finalidade em que é usufruído ou das contrapartidas exigidas.

Acréscimo patrimonial

As empresas destinatárias dos benefícios relativos ao ICMS auferem acréscimos patrimoniais, uma vez que o favor fiscal permite que elas se apropriem de parcela do imposto incidente nas operações que, no papel de contribuintes de direito do ICMS, está embutido nos preços por elas praticados junto aos seus clientes.

Essa parcela, que deveria ser recolhida ao Estado competente, caso não houvesse a concessão do benefício fiscal, converte-se em receita do particular, acrescendo o seu patrimônio.

Contudo, pela complexidade decorrente da sistemática constitucional em que se fundamenta o ICMS, nem sempre essa situação fática é bem percebida pelos aplicadores do Direito, o que acaba distorcendo algumas conclusões alcançadas por meio de raciocínios lógicos que partem de premissas não verdadeiras.

Natureza jurídica de receita do crédito presumido de ICMS

No Tema STF nº 843, em que se analisa, sob a ótica constitucional, a possibilidade de o crédito presumido de ICMS compor a base de cálculo do PIS e da Cofins, o que se debate na Suprema Corte é a natureza jurídica desse tipo de benefício fiscal.

Duas correntes sobressaíram-se no atual estágio do julgamento: uma que defende tratar-se de benefício fiscal que proporciona a recuperação de custos tributários; e a outra que entende tratar-se de efetiva receita.

Spacca

A priori, pelo teor dos votos já pronunciados, o que se depreende é que ambas as correntes reconhecem que esse tipo de benefício fiscal gera acréscimo patrimonial, só que uma atribui tal efeito à recuperação de custo; enquanto a outra, ao próprio auferimento de receita. Ademais, deve ser pontuado que o STF não está adotando o argumento do princípio federativo para afastar a tributação das contribuições.

A primeira corrente, que conclui que o crédito presumido de ICMS tem a natureza jurídica de recuperação de despesa tributária, parte implicitamente da premissa de que o ICMS é suportado pelo seu próprio contribuinte de direito.

Como tal, a vantagem auferida reduziria a despesa no mesmo montante. Todavia, pelo regime constitucional do ICMS, a obrigação do contribuinte de direito é apenas a de recolher o imposto legalmente embutido no seu preço, que é suportado pelo seu cliente (e não por si próprio).

Além disso, no Tema STF nº 69, adotou-se como verdadeira a premissa que o ICMS embutido no preço sequer compõe a receita do contribuinte de direito, sendo ele simples depositário do imposto incidente em suas operações.

Nessa construção, assentou-se que o valor do ICMS não se incorpora ao patrimônio do contribuinte, constituindo mero ingresso de caixa, cujo destino são os cofres públicos.  Ora, com esse caminho já definido, não poderia ser diferente a conclusão de que o ICMS também não é despesa do contribuinte de direito. E nesse encadeamento, percebe-se ainda que o crédito presumido de ICMS não pode ter a natureza jurídica de recuperação de despesa tributária, já que isto, por decorrência lógica, é algo inexistente.

O crédito presumido de ICMS repercute para o contribuinte de direito no acréscimo patrimonial evidenciado pela apropriação de parcela do imposto que incide na operação e que está embutido no preço praticado, mas que tão-só lhe fica dispensado o recolhimento ao sujeito ativo. Ele, portanto, tem o poder de transformar o que seria receita do Estado (já que o ICMS incidiu na operação) em receita do particular (dispensa do recolhimento do ICMS incidente).

A adoção do padrão contábil internacional pelo Brasil, que teve como marco a Lei nº 11.638, de 2007, e sua regulamentação por pronunciamentos técnicos no processo de convergência, alterou o tratamento contábil antes dispensado às subvenções para investimento, pois passou a disciplinar que as subvenções governamentais, em geral, transitassem por conta contábil de resultado.

O Pronunciamento Técnico nº 07 (R1), do Comitê de Pronunciamentos Contábeis, referente a Subvenção e Assistência Governamentais, aprovado pelos órgãos reguladores, confere para a subvenção governamental que atenda as condições nele descritas o tratamento contábil de receita.

Entre os argumentos que apoiam tal entendimento, cita que a subvenção governamental é recebida de uma fonte que não os acionistas e deriva de ato de gestão em benefício da entidade; que ela raramente é gratuita e, assim, a entidade ganha efetivamente essa receita quando cumpre determinadas obrigações; e que tal como os tributos são despesas reconhecidas na demonstração do resultado, é lógico registrar a subvenção governamental que é, em essência, uma extensão da política fiscal, como receita na demonstração do resultado.

Imunidade tributária dos incentivos e benefícios fiscais relativos ao ICMS?

Vencida a demonstração que os efetivos benefícios fiscais relativos ao ICMS, em especial o do crédito presumido do ICMS, geram acréscimos patrimoniais e que têm a natureza jurídica de receita, ingressando assim na esfera de incidência tanto do imposto sobre a renda (artigo 153, III, da CF/1988) como das contribuições sociais das empresas sobre a receita (artigo 195, I, “b”, da CF/1988), ambas de competência da União,  passa-se a perquirir sobre a existência de norma constitucional que limite o poder de a União tributar as correspondentes repercussões econômicas.

Examinando os artigos 150, 151 e 195 da Constituição, não se encontra qualquer vedação expressa nesse sentido. Observa-se que não se trata de tributar a renda dos Estados, como sustentado por alguns, pois o campo de incidência não se concentra na receita dos Estados (origem), nem na sua renúncia (aplicação estatal de recursos), mas sim na receita e no acréscimo patrimonial que a subvenção governamental gera na esfera patrimonial do beneficiário (origem de recursos para o beneficiário).

No voto-vista da ministra Regina Helena Costa, que se sagrou vencedor nos Embargos de Divergência no REsp nº 1.517.492–PR, cujo julgado da 1ª Seção do STJ tornou-se precedente qualificado, apesar de não ter declarado expressamente a imunidade dos benefícios do crédito presumido de ICMS em relação às tributações do imposto sobre a renda e da contribuição social sobre o lucro, esse parece ser o seu veredicto final.

Se, por um lado, a ministra argumentou inicialmente que a pretensão fiscal se baseia tão-somente em atos infralegais, não dando relevância para a existência do acréscimo patrimonial decorrente da aquisição de disponibilidade econômica ou jurídica da renda, fato gerador do imposto sobre a renda, conforme artigo 43, I, do CTN; por outro lado, fez também toda uma construção argumentativa sopesando valores ético-constitucionais que culminou no afastamento da tributação desse mesmo acréscimo patrimonial antes não evidenciado, fundamentando, então, seu voto nos princípios constitucionais do pacto federativo e da subsidiariedade, o que leva mesmo à ideia da tese da imunidade tributária.

Em seu juízo de validade quanto ao exercício da competência tributária, a ministra utiliza a premissa de que a concessão de crédito presumido de ICMS implica desoneração ou diminuição da carga tributária, ou seja, alívio fiscal para os estabelecimentos fabricantes, quando, como já demonstrado, não é esse o real efeito desse tipo de renúncia fiscal, pois o benefício carreado às empresas decorre de imposto embutido nos preços praticados, sendo apenas dispensado o seu recolhimento à unidade federada competente.

Logo, não há desoneração alguma nesse tipo de situação, sendo a carga fiscal suportada integralmente pelos consumidores finais. Pelo contrário, com esse tipo de aplicação dos recursos públicos, exige-se um esforço fiscal ainda maior dos contribuintes de fato, pois a ele se somam tantos outros dispêndios públicos cujos recursos precisam ser providos.

A ministra afirma ainda que a possibilidade de tributação pelo IRPJ e pela CSLL do benefício fiscal auferido sufragaria a possibilidade de a União retirar, por via oblíqua, o incentivo fiscal que o Estado-membro, no exercício de sua competência tributária, outorgou.

Porém, com o devido respeito, no que tange à apuração do lucro, esse argumento não pode ser tomado de forma isolada, examinando apenas a origem de recursos (que geram acréscimos no resultado) sem considerar o lado da sua aplicação (que geram decréscimos no resultado).

É preciso ter presente que as subvenções governamentais, como forma de assistência à atividade econômica, somente se justificam quando visam auxiliar o custeio da atividade operacional das empresas que necessitam desse auxílio, ou como forma de incentivo a investimentos privados que imobilizam o capital empregado por longo prazo.

Ambas as situações, contudo, resultam em aplicação dos recursos auferidos na geração de custos e despesas (elementos redutores do resultado econômico), diferenciando-se uma da outra apenas no aspecto temporal de a despesa ocorrer no curto ou longo prazo.

Por sua vez, a norma contábil, determina que o reconhecimento das receitas de subvenção seja procedido relacionando-as aos custos que lhes justifiquem. Assim, na apuração do resultado econômico, verifica-se que as receitas reconhecidas são neutralizadas pelos próprios custos e despesas que lhe deram causa, nada efetivamente restando como lucro para fins de tributação.

Logo, defender a exclusão da receita de subvenção governamental (origem de recursos) na determinação do resultado fiscal com base em princípio constitucional sem observar que, simultaneamente, há a dedutibilidade do custo ou despesa que decorre da aplicação desse mesmo recurso leva à conclusão imperfeita que distorce a tributação da União sobre o lucro das empresas, fazendo com que a concessão de benefícios pelos entes federados interfira indevidamente na apuração das bases de cálculo dos tributos de competência da União. Tal situação caracteriza verdadeira isenção heterônoma, vedada pela Constituição.

A entrada em vigor da Lei nº 14.789, de 2023, provocou alterações profundas no tratamento fiscal da subvenção governamental, especialmente sobre os benefícios relativos ao ICMS. As novas regras revogaram disposições que permitiam a exclusão da receita referente às subvenções para investimento ou aos benefícios do ICMS na determinação das bases de cálculo do IRPJ e das contribuições sociais, além de instituírem um crédito fiscal compensatório restrito aos incentivos para investimento.

Essa situação levou a propositura de ações diretas de inconstitucionalidade pelo Partido da República (ADI 7.551), pela Confederação Nacional da Indústria (ADI 7.604) e pela Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (ADI 7.622). Assim, o tema em questão, alvo de tanta controvérsia nos últimos anos, será finalmente examinado de forma completa e definitiva pela Suprema Corte brasileira.

Desonerações do ICMS

Cumpre ainda fazer o destaque que as desonerações de ICMS, tais como isenções, reduções de base de cálculo e reduções de alíquota, objeto de disputas judiciais inconclusas referentes ao Tema STJ nº 1.182, não geram repercussões econômicas de natureza fiscal para os contribuintes de direito do ICMS.

Eles não sofrem decréscimos patrimoniais em função da incidência do imposto, nem experimentam acréscimo em razão de normas de desoneração. Isso não quer dizer que sua atividade econômica não possa ser afetada num cenário de menor incidência de ICMS, mas tão-só que o eventual proveito econômico que venha a auferir nessa circunstância não teria natureza fiscal, pois adviria da própria exploração da atividade.

Em operações desoneradas de ICMS entre contribuintes (meio de cadeia), sequer ocorre renúncia fiscal, haja vista o efeito de recuperação possível nas etapas subsequentes. Logo, mais uma razão para também não se cogitar em benefício fiscal.

De acordo com o que foi antes exposto, nas operações tributadas, o ônus do imposto é suportado pelo contribuinte de fato. Dentro desse complexo arcabouço jurídico do ICMS, as normas de desoneração somente podem beneficiar ou repercutir positivamente, sob o prisma jurídico, para quem suportava o imposto (o bônus é de quem carrega o ônus).

Assim, elas atuam fazendo com que o imposto que antes incidia na operação e que repercutia para as etapas seguintes até ser suportado em definitivo pelo contribuinte de fato não mais produza tal efeito, desonerando-o, sendo o consumidor final o verdadeiro destinatário dessas medidas, em plena consonância com o propósito do princípio constitucional da seletividade em função da essencialidade.

Portanto, sob a dimensão do auferimento de receita ou de renda, não se verifica efeito de natureza fiscal para o contribuinte de ICMS decorrente de norma de isenção, redução de base de cálculo ou redução de alíquota relativamente a esse imposto. Consequentemente também não ocorre qualquer incidência de tributos federais, bem como é totalmente sem nexo pleitear o favor fiscal federal antes vigente de exclusão do resultado de valores referentes a operações desoneradas de ICMS que não geraram qualquer repercussão de natureza fiscal.

 

Autores

  • é bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais pela UFRGS, especialista em Direito Tributário, Financeiro e Econômico pela Faculdade de Direito da UFRGS e auditor-fiscal da Receita Federal.

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