Opinião

Crônica de uma morte anunciada: a superação da doutrina Chevron

Autores

  • Bernardo Strobel Guimarães

    é doutor e mestre em Direito do Estado pela USP professor adjunto de Direito Administrativo da PUC-PR professor substituto de Direito Econômico da UFPR e advogado.

  • Lucas Sipioni Furtado de Medeiros

    é mestrando em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e especialista em Direito Constitucional e em Teoria do Direito Dogmática Crítica e Hermenêutica pela Academia Brasileira de Direito Constitucional (ABDConst).

  • Pedro Henrique Braz de Vita

    é advogado professor doutorando mestre e bacharel em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e especialista em parcerias público-privadas certificado pela APMG International (CP3P Foundation).

20 de fevereiro de 2024, 9h20

A Suprema Corte dos Estados Unidos está para tomar uma decisão paradigmática. Nos casos Relentless Inc. vs. Department of Commerce e Loper Bright Enterprises v. Raimondo ela analisará o pedido de superação de um dos seus precedentes mais famosos: Chevron [1].

Estabelecida nos anos 1980 [2], a doutrina Chevron determina que quando a lei não é clara e há uma regulamentação razoável sobre o assunto por parte de uma autoridade administrativa, os juízes devem acatar esse entendimento.

O precedente garante uma espécie de competência regulamentar residual às agências reguladoras, autorizando que elas atuem para complementar ou aclarar as leis naquilo que não foi expressamente pré-determinado pelo legislador.

O seu efeito foi a redução do espaço de criação do Direito conferido ao juiz, que passou a estar vinculado às decisões das agências, desde que razoáveis.

Sob o fundamento de que as agências teriam mais conhecimento técnico e legitimidade política do que os juízes para atuar naquilo que não foi pré-determinado de forma clara pelo legislador, a Suprema Corte fixou as balizas do que, no Brasil, hoje conhecemos como deferência técnico-administrativa. É essa importante decisão que pode estar com seus dias contados.

Nos dois casos sob julgamento, questiona-se a constitucionalidade de uma resolução do National Marine Fisheries Service (Noaa Fisheries) que obriga as empresas de pesca a contratar um inspetor federal e levá-lo em suas expedições, de forma a evitar a pesca predatória.

Divulgação/Greenpeace

Segundo os autores, o preço de contratação do inspetor (US$ 710 por dia) muitas vezes pode vir a superar os lucros de um dia de pescaria, pelo que a resolução não é razoável.

Argumento para a superação
Acontece que os autores não se limitam a requerer a anulação da resolução com base na doutrina Chevron (já que, em tese, ela não seria razoável); há um pedido mais abrangente: a superação do precedente.

E, ao que tudo indica, esse segundo pedido tem grandes chances de ser deferido. Em audiência realizada no início de janeiro, quatro dos Justices mais conservadores da corte já deixaram transparecer que são a favor da revogação da doutrina Chevron. Basta mais um voto para que a maioria seja alcançada.

O argumento oculto por trás da superação parece ser um só: ao conferir um espaço de autonomia às agências para fixar a interpretação a ser adotada nos casos de lacunas ou indeterminações legislativas, a doutrina Chevron retira do Poder Judiciário uma competência que lhe seria inalienável, a de dizer o Direito.

Caindo o precedente, a palavra final para esclarecer a lei em casos de indeterminação e ambiguidade passaria aos juízes.

Com todo o respeito, enxergamos mais problemas do que soluções nessa forma de pensar. Temas que envolvem interesses multidisciplinares, cuja decisão precisa considerar aspectos técnicos, científicos ou políticos de grande complexidade, não têm no juiz o seu decisor mais qualificado, seja por falta de legitimidade política, seja por falta de conhecimento especializado.

Outro ponto importante diz respeito ao fato de que os juízes, ao contrário dos administradores/gestores, não possuem um dever de accountabilty claramente delimitado perante os cidadãos. Então, como responsabilizá-los por decisões equivocadas que afetem de maneira negativas temas como implementação de políticas públicas, regulamentações farmacêuticas e alimentícias ou mesmo a área das novas tecnologias?

Separação de Poderes
O tema é central à separação de Poderes. Definir quem faz o quê num ambiente complexo tem sido desafiador. O Brasil tem diversas discussões que remetem a essa questão central.

Como lembrou a Justice Elena Kagan, em certos casos a questão posta sob julgamento envolve um grau de especificidade e tecnicidade tão complexo que os juízes não possuem nem mesmo condições de compreender a controvérsia, muito menos de solucioná-la da forma mais adequada.

E arrematou: “devemos deixar para as pessoas que realmente entendem sobre tais assuntos a responsabilidade pela tomada de decisões”.

Com efeito, Chevron está fundamentada em uma racionalidade importante: em certos casos, a melhor decisão que o juiz pode tomar é aceitar a solução já encontrada pelo órgão setorial responsável, desde que baseada em uma interpretação razoável das leis. Ir além disso deve ser extraordinário e envolve um pesado ônus argumentativo.

As decisões tomadas por agências reguladoras são revestidas de legitimidade pela capacidade técnica dos profissionais que as formulam, que, assim como os juízes, estão sujeitos ao dever de fundamentar seus atos. Essa, aliás, é a sua função principal.

Afastar a necessária deferência às interpretações das agências é, em certa medida, atacar diretamente a razão de ser da própria atividade regulatória.

No Brasil, esse é o entendimento que parece prevalecer e que se mostra chancelado pela nossa Suprema Corte [3] — sem desconsiderar, claro, o casuísmo que envolve tais análises (o famoso cada caso é um caso, tão ao gosto dos juristas).

Seja como for, esperamos que a mudança que se vislumbra no horizonte norte-americano não venha a impactar a ainda pouco consolidada doutrina da deferência administrativa no Brasil.

O respeito à separação dos Poderes é, acima de tudo, uma exigência republicana; o Judiciário não pode vir a usurpar o espaço de atuação conferido pela Constituição ao Poder Executivo, e vice-versa; se há uma lição a ser retirada da doutrina Chevron é essa: em certos casos, o melhor que o juiz tem a fazer é seguir as decisões tomadas por aqueles que estão em melhor posição para tomá-las.

Atribuir aos juízes o papel de superego da Administração é causa de grandes confusões, e poucas soluções.

 


[1] Trata-se não só de uma das decisões mais importantes e influentes do Direito Administrativo em escala global, como também é a decisão mais citada pelos juízes federais americanos.

[2] Veja o caso aqui: https://www.oyez.org/cases/1983/82-1005.

[3] Por todos, a decisão no AgR no RE n. 1.083.955/DF.

Autores

  • é doutor e mestre em Direito do Estado pela Universidade de São Paulo (USP), professor adjunto de Direito Administrativo da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR), árbitro e advogado.

  • é mestrando em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), especialista em Direito Constitucional pela Academia Brasileira de Direito Constitucional (ABDConst) e em Teoria do Direito, Dogmática Crítica e Hermenêutica pela mesma instituição e advogado.

  • é doutorando, mestre e bacharel em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), especialista em parcerias público-privadas certificado pela APMG International (CP3P Foundation) e advogado.

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