Opinião

Xadrez regulatório da prorrogação das concessões de distribuição de energia

Autor

  • Myller Kairo Coelho de Mesquita

    é sócio de Direito Regulatório e Concorrencial do escritório Eduardo Antônio Lucho Ferrão Advogados Associados e atua como advogado de associações representativas de termais portuários.

4 de maio de 2024, 7h07

O Ministério de Minas e Energia (MME) estima que existem 20 distribuidoras de energia elétrica com vencimento de contrato previsto entre 2025 e 2031; outras 33 concessionárias terão contratos expirados após esse período [1].

Diante desse cenário, o MME adotou postura institucional favorável ao diálogo e à transparência ao realizar a Consulta Pública 152/2023, que permitiu a contribuição da sociedade civil na elaboração das diretrizes a serem observadas na condução dos processos de renovação das concessões [2].

Nos termos do Decreto 8.461/2015, compete ao Poder Executivo o desafio de compatibilizar as condicionantes para a prorrogação das concessões com as premissas de (1) eficiência com relação à qualidade do serviço prestado, (2) eficiência com relação à gestão econômico-financeira, (3) racionalidade operacional e econômica e (4) modicidade tarifária.

Em fase final de elaboração pelo MME, um novo decreto presidencial sobre a matéria deve ser encaminhado, em breve, à Casa Civil [3].

Por sua vez, visando exercer a sua parcela de responsabilidade com o aprimoramento do setor elétrico, o Poder Legislativo discute, entre outros, o Projeto de Lei 4.831/23 da Câmara dos Deputados [4], que trata da renovação das concessões de distribuidoras de energia privatizadas na década de 1990.

Caixa de ressonância

À luz da governança setorial, a interação entre os Poderes da República e a sociedade é essencial no diagnóstico dos problemas regulatórios e na avaliação de soluções jurídicas em favor do desenho de uma política pública que seja compatível com o trilema da transição energética (segurança energética, sustentabilidade ambiental e equidade energética) e com o novo paradigma do setor elétrico (digitalizado, descarbonizado, descentralizado e democrático) [5].

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Nesse contexto, o debate sobre a renovação dos contratos das distribuidoras se tornou uma caixa de ressonância da necessidade de adaptar a regulação de energia à evolução da tecnologia e às mudanças no padrão de comportamento do consumidor.

As principais atividades das distribuidoras são a comercialização de energia e o fornecimento de rede (serviço de fio). Gradualmente, no entanto, as empresas se dedicam em maior proporção ao oferecimento de infraestrutura física do que à venda da energia. Nessa dinâmica, dois motivos se destacam.

A integração da mini e microgeração solar distribuída à rede das distribuidoras de energia alterou a lógica de funcionamento do setor elétrico. Um número cada vez maior de consumidores produz energia no telhado da própria residência e utiliza a rede da concessionária como uma espécie de bateria virtual, em razão dos mecanismos de compensação previstos na Lei 14.300/2022.

Energia barata, conta cara

Para compreender o outro motivo da inflexão no setor elétrico, vale recorrer a uma frase verbalizada com ênfase por autoridades públicas e agentes de mercado: “O Brasil é o país da energia barata e da conta cara“. A frase é conhecida, mas não tão conhecido assim é o impacto desproporcional da conta de energia no ambiente de contratação regulado quando comparado ao mercado livre.

Em termos simples, a Lei 10.848/2004 dispõe que o mercado livre é formado por uma classe de consumidores – caracterizada por requisitos de faixas de tensão e de carga – que pode comprar a energia de um fornecedor diferente da distribuidora. Apesar disso, esses consumidores com alta demanda de energia, a exemplo de uma grande fábrica, mantêm a ligação física de fio com a concessionária para receber a energia adquirida.

De outro lado, consumidores com menor demanda de energia, entre eles o residencial, estão alocados no mercado cativo da distribuidora, no qual a concessionária vende energia, mediante contratação regulada, e fornece os serviços de fio.

A assimetria entre os preços desses mercados decorre de causas intrincadas e, não por acaso, foi um dos assuntos prioritários da reunião realizada entre o Presidente da República e especialistas do setor no dia 10 de abril, no Palácio do Planalto [6].

Dados da Associação Brasileira dos Comercializadores de Energia (Abraceel) apontam que os consumidores livres economizaram R$ 48 bilhões nos gastos com energia elétrica em 2023. Considerando ganhos acumulados desde 2003, o valor poupado supera R$ 339 bilhões [7.

Migrações

Buscando melhores condições de preço, é crescente o número de migrações de agentes do mercado regulado de energia para o mercado livre – que já representa cerca de 37% do consumo total de energia elétrica do país, segundo dados da CCEE (Câmara de Comercialização de Energia Elétrica) referentes ao ano de 2023 [8].

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Energia elétrica

O número tende a aumentar, já que, desde 1º de janeiro de 2024, os consumidores classificados como Grupo A (média e alta tensão) podem optar pela compra de energia elétrica de qualquer concessionário, permissionário ou autorizado de energia elétrica do SIN (Sistema Interligado Nacional), nos termos da Portaria nº 50 GM/MME/2022 – que regulamenta o  limite de carga para contratação de energia elétrica por parte dos consumidores de que trata o § 3º do art. 15 da Lei 9.074/1995, bem como prevê a representação do agente varejista perante a CCEE para consumidores com carga individual inferior a 500kW.

Até o final da década de 2030 [9], o governo federal pretende expandir o mercado livre ao consumidor de baixa tensão, alcançando o consumo residencial. Além do viés de preço, essa medida pode conferir novas opções de fornecimento de energia, inclusive, acerca da qualidade das fontes, se parcialmente ou exclusivamente renovável, como já acontece em países com o mercado de eletricidade mais desenvolvido [10].

Oportunidade

Esse contexto de mudança enfrentado pelas distribuidoras deve se intensificar a partir da sinergia entre a abertura gradual do mercado livre de energia e a implementação da nova política industrial brasileira, sob a perspectiva da transformação ecológica – que se correlaciona com o cenário internacional advindo do Acordo de Paris e, mais recentemente, dos programas Inflation Reduction Act e EU Green Deal, respectivamente, estadunidense e europeu.

As sucessivas alterações estruturais em curso no setor elétrico, contudo, põem em xeque a modelagem das concessões das distribuidoras e pressionam a sustentabilidade econômico-financeira das empresas. E isso não é um problema apenas das concessionárias; é, na realidade, um desafio coletivo.

Tanto o consumidor do mercado regulado quanto o consumidor do mercado livre dependem da infraestrutura da distribuidora para ter acesso à energia. Para além de questões normativas, isso se deve às características de monopólio natural relacionadas ao serviço de rede fornecido na distribuição de energia (postes, cabeamento, entre outros)[11].

A renovação dos contratos das distribuidoras é, portanto, uma oportunidade para que a regulação do setor elétrico promova uma adaptação harmônica das concessões aos desafios do novo paradigma da indústria de energia, incentivando investimentos necessários na manutenção e na expansão da infraestrutura do setor.

A propósito, ampliar investimentos é essencial para o aprimoramento da resiliência climática das redes frente a eventos naturais extremos, os quais, progressivamente, pressionam os indicadores de Duração Equivalente de Interrupção por Unidade Consumidora (DEC) e Frequência Equivalente de Interrupção por Unidade Consumidora (FEC) das empresas – assunto cuja relevância levou a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) a promover a Tomada de Subsídios 02/2024 [12].

Nesse movimento de evolução regulatória, apresentam-se como elementos relevantes no debate da formulação da política pública: (1) a análise de impacto regulatório de eventual separação das atividades de comercialização de energia e de fornecimento de rede (separação fio-energia) [13], (2) o incremento da utilização das técnicas de avaliação de resultado regulatório de atos normativos que modificaram a estrutura setorial, (3) o estudo dos reflexos concorrenciais da abertura do mercado livre [14], (4) a discussão acerca da matriz de alocação dos riscos e da mutação em relação aos contratos de longo prazo, assim como (5) o aprimoramento dos leilões de contratação de energia elétrica [15].

Ademais, sob a perspectiva do controle externo da política pública setorial, cabe destaque ao papel do TCU (Tribunal de Contas da União) [16].

Em janeiro, considerando que as concessões vincendas de distribuição de energia elétrica podem ser prorrogadas, a critério do Poder Concedente, com fundamento no artigo 4º, § 3º, da Lei 9.074/1995, o Plenário do TCU homologou comunicado proposto pelo Ministro Antonio Anastasia que definiu “o acompanhamento individualizado, por meio de fiscalizações específicas dos processos que resultarão na celebração dos aditivos aos contratos, observando os critérios de materialidade, relevância, oportunidade, risco e tempestividade, sem prejuízo de que o Poder Executivo formalize, por meio de decreto presidencial, as diretrizes, regras e regulamentos a serem aplicados ao caso[17].

No xadrez regulatório da prorrogação das concessões de distribuição de energia, o tabuleiro está montado e as peças estão se movimentando; cabe às autoridades públicas a missão de garantir que o consumidor será o vencedor.

– As opiniões manifestadas no artigo são de exclusiva responsabilidade do autor e não refletem, necessariamente, a posição das instituições com as quais mantém vínculo profissional ou acadêmico.

 


[1] MINISTÉRIO DE MINAS E ENERGIA. MME poderá seguir com processos de renovação das concessões de distribuidoras de energia elétrica no país. Disponível em: [https://www.gov.br/mme/pt-br/assuntos/noticias/mme-podera-seguir-com-processos-de-renovacao-das-concessoes-de-distribuidoras-de-energia-eletrica-no-pais]. Publicado em 24/01/2024.

[2] MINISTÉRIO DE MINAS E ENERGIA. MME inicia consulta pública sobre concessões vincendas de distribuição. Disponível em: [https://www.gov.br/mme/pt-br/assuntos/noticias/mme-inicia-consulta-publica-sobre-concessoes-vincendas-de-distribuicao]. Publicado em 23/06/2023.

[3] MINISTÉRIO DE MINAS E ENERGIA. “Estamos em fase de conclusão do decreto de renovação das concessões de distribuição”, disse Alexandre Silveira em Fórum do setor elétrico. Disponível em: [https://www.gov.br/mme/pt-br/assuntos/noticias/201cestamos-em-fase-de-conclusao-do-decreto-de-renovacao-das-concessoes-de-distribuicao201d-disse-alexandre-silveira-em-forum-do-setor-eletrico]. Publicado em 17/04/2024.

[4] CÂMARA DOS DEPUTADOS. PL 4831/2023 e seus apensados. Disponível em: [https://www.camara.leg.br/propostas-legislativas/2393677].

[5] DAVID, Solange Mendes Geraldo Ragazi. A tríade energia elétrica, desenvolvimento sustentável e tecnologia – bases e desafios para uma regulação evolutiva no Brasil. 2018. Tese (Doutorado em Sistemas de Potência) – Escola Politécnica, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2018. doi:10.11606/T.3.2018.tde-04092018-132826.

[6] CAMPOS JR., Geraldo. Governo criará grupo para estudar reforma do setor elétrico. Disponível em: [https://www.poder360.com.br/energia/governo-criara-grupo-para-estudar-reforma-do-setor-eletrico/]. Publicado em 10/04/2024.

[7] ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DOS COMERCIALIZADORES DE ENERGIA. Mercado livre de energia gera economia recorde de R$ 48 bilhões para consumidores em 2023. Disponível em: [https://abraceel.com.br/press-releases/2024/03/mercado-livre-de-energia-gera-economia-recorde-de-r-48-bilhoes-para-consumidores-em-2023/#]. Publicado em 08/03/2024.

[8] CÂMARA DE COMERCIALIZAÇÃO DE ENERGIA ELÉTRICA. Brasil atinge recorde histórico de migrações de consumidores ao mercado livre de energia. Disponível em: [https://www.ccee.org.br/pt/web/guest/-/brasil-atinge-recorde-historico-de-migracoes-de-consumidores-ao-mercado-livre-de-energia#:~:text=De%20janeiro%20a%20agosto%20de,Comercializa%C3%A7%C3%A3o%20de%20Energia%20El%C3%A9trica%20%E2%80%93%20CCEE]. Publicado em 06/09/2023.

[9] CASTRO, Ana Paula; CARREGOSA, Lais; DOYLE, Luísa. Governo trabalha para expandir mercado livre de energia a consumidores residenciais até 2030. Disponível em: [https://g1-globo-com.cdn.ampproject.org/c/s/g1.globo.com/google/amp/economia/noticia/2024/02/18/governo-trabalha-para-expandir-mercado-livre-de-energia-a-consumidores-residenciais-ate-2030.ghtml]. Publicado em 18/02/2024.

[10] AMORIM, Lívia; BÜLL, Alberto, ROMANIELO, Enrico. Admirável mundo novo: algumas considerações sobre o mercado de energia elétrica e o ‘Open Energy’ no Brasil. Disponível em: [https://epbr.com.br/admiravel-mundo-novo-algumas-consideracoes-sobre-o-mercado-de-energia-eletrica-e-o-open-energy-no-brasil/]. Publicado em 09/02/2024.

[11]Quando uma única empresa consegue ofertar o produto a um custo menor que várias empresas ofertando, então dizemos que a formação do monopólio natural é necessária. Nesse caso, o governo não deverá estimular a concorrência, porque isso acarretaria elevação de custos por unidade vendida e, consequentemente, a elevação de preços”. SAMPAIO, Luiza. Microeconomia. Editora Saraiva, 2023. E-book. ISBN 9786553624849, p. 119.

[12] AGÊNCIA NACIONAL DE ENERGIA ELÉTRICA. Tomada de Subsídios avaliará a necessidade de intervenção regulatória para resiliência das redes devido aos eventos climáticos extremos. Disponível em: [https://www.gov.br/aneel/pt-br/assuntos/noticias/2024/tomada-de-subsidios-avaliara-a-necessidade-de-intervencao-regulatoria-para-resiliencia-das-redes-devido-aos-eventos-climaticos-extremos]. Publicado em 16/02/2024.

[13] MATSUMURA, Emílio; ORTIZ, Pablo Silva. A importância do desenho de mercado para a transição energética brasileira. Disponível em: [https://epbr.com.br/a-importancia-do-desenho-de-mercado-para-a-transicao-energetica-brasileira/]. Publicado em 05/05/2022.

[14] GOMES, Victor. VILLAS BOAS, Juliana; MUNHOZ, Fernando. Aspectos concorrenciais do novo mercado varejista de energia elétrica no Brasil: recomendações para garantir justa e efetiva competição. Grupo de Estudos em Direito da Energia – GEEL, Núcleo de Direito Setorial e Regulatório da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UnB). Brasília/DF, 2022. Disponível em: [https://sites.google.com/ccom.unb.br/ndsr-geel/publications?authuser=0].

[15] HOCHSTETLER, Richard; SALES, Claudio. Hora de aprimorar os leilões de energia. Disponível em: [https://acendebrasil.com.br/artigo/hora-de-aprimorar-os-leiloes-de-energia/]. Publicado em 16/02/2024.

[16] De acordo com o art. 10 da Instrução Normativa TCU 81/2018, “O Poder Concedente deverá encaminhar ao Tribunal de Contas da União, com no mínimo cento e cinquenta dias da assinatura de contratos ou termos aditivos para a prorrogação ou a renovação de concessões ou permissões, inclusive as de caráter antecipado, descrição sucinta do objeto, condicionantes econômicas, localização, cronograma da prorrogação e normativos autorizativos”. Sobre o assunto, ver: DUTRA, Joísa; MESQUITA, Myller; SAMPAIO, Patrícia. A Jurisprudência do TCU sobre o setor elétrico – uma análise da Jurisprudência do Tribunal sobre as políticas públicas setoriais nos últimos cinco anos (2012-2016). In: Temas relevantes do Direito de Energia Elétrica. Tomo V. Coordenador: Fábio Amorim da Rocha. Editora Synergia, 2016, p. 405-440.

[17] TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO. TCU decide acompanhar individualmente prorrogações de concessões de distribuição de energia elétrica. Disponível em: [https://portal.tcu.gov.br/imprensa/noticias/tcu-decide-acompanhar-individualmente-prorrogacoes-de-concessoes-de-distribuicao-de-energia-eletrica.htm]. Publicado em 24/01/2024. A deliberação do TCU, expressamente, afasta as situações reguladas pelo art. 7º da Lei 12.783/2013. Nesse sentido, ver o Anexo I da Ata nº 2/2024-Plenário e o TC 006.591/2023-0.

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