Opinião

Ser ou não agente público, eis a questão

Autor

  • Edilson Silva

    é presidente da Associação dos Membros dos Tribunais de Contas do Brasil (Atricon) e conselheiro corregedor do Tribunal de Contas do Estado de Rondônia (TCE-RO).

1 de maio de 2024, 21h16

A frase “ser ou não ser, eis a questão” é, de fato, uma das citações mais emblemáticas da literatura mundial, originária da tragédia Hamlet, escrita por William Shakespeare. Essa citação é proferida pelo príncipe Hamlet durante um monólogo no ato 3, cena 1, no qual ele reflete profundamente sobre a natureza da existência humana e as adversidades que enfrenta. De fato, a reflexão exposta nesse monólogo desdobra-se em um dos alicerces essenciais que sustentam a complexa trama do nosso cotidiano: a necessidade de fazer escolhas.

Sim, a existência impõe a cada um de nós a permanente e inevitável tarefa de fazer escolhas: ser ou não ser; fazer ou não fazer; isso ou aquilo; este ou aquele; ir ou ficar; falar ou silenciar, abraçar ou afastar-se de abraçar; casar ou comprar uma bicicleta. Enfim, diante de um ponto de divergência ou de uma bifurcação situacional, somos chamados a exercer nossa capacidade de discernir entre diferentes opções e caminhos. Eis a questão que incessante e permanentemente nos desafia.

Schopenhauer e Sartre

Schopenhauer, em uma de suas obras, destaca o fato de que, ao fazermos uma escolha, devemos assumir plenamente a responsabilidade por essa decisão. Ele nos alerta que, uma vez feita a escolha, não há como escapar de suas consequências.

O tema “fazer escolha” poderia ser abordado sob várias perspectivas, e cada campo do conhecimento oferece uma abordagem única e valiosa para entender a natureza humana que nos impulsiona a decidir entre uma coisa e outra, bem como as implicações dessas escolhas tanto para nossa vida individual – eu comigo mesmo – quanto para a vida em sociedade – eu com o outro.

No entanto, para a breve análise que aqui se propõe, revela-se de grande pertinência a reflexão de Jean-Paul Sartre, segundo a qual “estamos condenados a ser livres”, em combinação com os insights e o alerta de Schopenhauer [1] sobre o fato de que, ao fazermos escolhas, devemos assumir a responsabilidade por essa decisão.

O agente público

Certamente, o leitor pode estar se questionando sobre o significado dessas citações filosóficas e qual a sua relação com o título do presente ensaio: ser ou não ser agente público.

A capacidade de discernir entre diferentes opções e escolher um caminho a seguir não apenas define nossa autonomia e molda o nosso destino individual, revelando os contornos da nossa moral, ética e responsabilidade, mas também ecoa no tecido social ou institucional no qual estamos inseridos. Face a esse contexto, o intuito deste escrito é estabelecer uma reflexão concisa acerca da decisão de ser agente público – na perspectiva da liberdade intrínseca à escolha de “ser ou não ser” – e por extensão, suas respectivas e infestáveis consequências ou repercussões.

Spacca

No coração de uma sociedade funcional e justa repousa o trabalho dedicado e comprometido dos agentes públicos lato sensu. Esses indivíduos, frequentemente movidos por um profundo senso de propósito e responsabilidade cívica, optam por dedicar suas vidas ao serviço da coletividade. As motivações que o impulsionam a seguir esse caminho são multifacetadas e refletem a compreensão da importância do bem comum.

A busca por estabilidade e segurança no emprego; a possibilidade de contribuir diretamente para o progresso e aprimoramento da sociedade; o sentimento de pertencimento e responsabilidade para com a comunidade; a busca pelo cumprimento de um senso de missão e a convicção de que se é vocacionado a servir e a fazer a diferença no mundo, são algumas das perspectivas – consciente ou inconsciente – que levam o indivíduo a optar pela carreira pública e nela ingressar.

Ao lado da motivação – força motriz interna que impulsiona o processo decisório – a previsibilidade de suas consequências; a possibilidade de antecipação de seus desdobramentos e a avalição dos riscos e benefícios da carreira, conforme dispostos em normas especiais, compõem um conjunto único que minimiza sobremaneira o “drama permanente” que normalmente circunda uma tomada de decisão.

Tal afirmação se justifica porque o benefício de experiências passadas e a capacidade de avaliar as informações que gravitam em torno do exercício da função possibilitam uma avaliação a priori equilibrada, informada, segura e consciente. Essa avaliação pondera entre as expectativas e limitações pessoais que impactam ou serão impactadas pelo objeto de escolha e aquilo que sua assunção exige no mundo do ser e do dever ser.

Assim é que desde a antiguidade, passando pela Roma Antiga, Idade Média, até chegarmos à era em que o serviço público tem passado por uma revolução com a implementação de tecnologias da informação e comunicação, uma série de consequências e desdobramentos inerentes ao exercício recaíram e recaem tanto entre os “servidores do Estado” da antiguidade quanto sobre os servidores públicos – espécie do gênero agente público – da atualidade.

Responsabilidades e consequências

Em outras palavras, aquele que, motivado em servir ao público, já possui, desde o início, uma visão clara da trajetória que precisa percorrer para alcançar seu objetivo, bem como das consequências e dos desdobramentos funcionais e pessoais vinculados à escolha pretendida. Isso inclui responsabilidades, condutas comportamentais e éticas, limitações e vedações, tais como o dever de imparcialidade, o compromisso com o bem comum, a integridade e a ética, o respeito às leis e regulamentos, a busca pelo interesse público, a neutralidade política, a proibição de conflitos de interesse, dentre outros, fornecendo-lhe, assim, critérios que lhe permitam decidir se deseja ou não se tornar um agente público.

Sob estas circunstâncias, podemos retomar o pensamento de Jean-Paul Sartre para questionar e, ao mesmo tempo, responder:

–    Não estamos, porventura, condenados a ser livres para fazer nossas escolhas?

– Sim, somos livres, mas, ao fazermos uma escolha, devemos assumir as responsabilidades e consequências dessa decisão. Quais são, então, as responsabilidades e consequências assumidas por quem opta por ser agente público?

A decisão de tornar-se um agente público, servidor público por exemplo, implica uma série de responsabilidades e consequências. Entre elas, destacam-se o compromisso com a ética e a integridade, a adesão a condutas comportamentais alinhadas aos princípios da administração pública como legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência.

Este profissional deve também respeitar as leis e os regulamentos, agir com imparcialidade, manter um compromisso inabalável com o bem comum e com o interesse público, além de observar a neutralidade política e evitar conflitos de interesse. Essas responsabilidades refletem não apenas no âmbito profissional, mas também repercutem na esfera pessoal dos servidores, exigindo uma postura coerente com os valores e princípios que regem o serviço público.

Seguindo essa linha de raciocínio, poder-se-ia ainda buscar compreender a compatibilidade entre a liberdade do indivíduo – encapsulada na noção sartreana de que “somos condenados a ser livres”– e a aparente submissão às regras de conduta traçadas pela administração pública por aqueles que a escolhem para o exercício profissional, ou mesmo a possível restrição do direito à liberdade de expressão como consequência lógica dessa escolha.

Nesse contexto, a adesão às regras de conduta, a obrigatoriedade de cumprir normas e a limitação da liberdade de expressão, entre outras, são consequências intrínsecas à decisão de tornar-se ou não agente público. Qualquer tentativa de negociação é incontestável e infrutífera, pois não existe margem para flexibilizar o grau ou a extensão dessa adesão.

Assim é que uma vez escolhida a carreira pública, suas consequências são inevitáveis. Isso ocorre porque existe uma intersecção profunda entre as ações do agente público e a instituição à qual pertence, configurando-se, por assim dizer, uma verdadeira simbiose entre ambos.

O agente público torna-se um componente vital que insufla vida à instituição, enquanto esta, por sua vez, provê o suporte, os recursos e o contexto normativo necessário para o desempenho de suas funções. Assim, a conduta do servidor, enquanto agente público, tanto dentro quanto fora da instituição, impacta diretamente em sua credibilidade e no cumprimento de sua função social.

Decerto que o exercício pleno da liberdade não se esgota ou encontra limite em si mesmo – é um bem ou um atributo perene e inesgotável – e, a qualquer momento, um indivíduo pode optar por não mais aderir aos preceitos associados ao cargo público que outrora escolheu, contudo, ao tomar tal decisão, não poderá apartar-se, de igual modo, de suas consequências.

E assim é… e sempre será. Diante disso, cabe-nos reconhecer que, de fato, “… cada ser carrega em si o dom de ser capaz e ser feliz”, como expressa o poeta. Realmente, cada indivíduo está destinado a ser livre, a fazer suas escolhas e arcar com as consequências que delas advêm, conforme pontua o filósofo. E de fato, ser ou não ser servidor agente público, eis a questão… eis a escolha a se fazer. E, em o sendo, o caminho estará previsivelmente traçado mediante o desenho normativo, com suas respectivas responsabilidades e consequências, das quais não há como se apartar até que lhes sobrevenha uma nova escolha. Afinal, “estamos condenados a sermos livres”, digo eu. 

Autores

  • é presidente da Associação dos Membros dos Tribunais de Contas do Brasil (Atricon) e conselheiro corregedor do Tribunal de Contas do Estado de Rondônia (TCE-RO).

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