Diário de Classe

Bússola de Colombo: normatividade da Constituição e os modelos de juiz

Autores

  • Luísa Giuliani Bernsts

    é doutoranda e mestre em Direito Público (Unisinos) bolsista Capes/Proex membro do Dasein — Núcleo de Estudos Hermenêuticos (Unisinos) e do grupo de pesquisa Bildung — Direito e Humanidades (Unesa) e professora da Faculdade São Judas Tadeu (SJT-RS).

  • Vinícius Quarelli

    é mestrando em Direito Público pela Unisinos editor-adjunto da Revista Constituição Economia e Desenvolvimento: Revista Eletrônica da Academia Brasileira de Direito Constitucional (Qualis A3 ISSN 2177-8256) e membro do Dasein — Núcleo de Estudos Hermenêuticos.

17 de fevereiro de 2024, 8h00

Este espaço — o Diário de Classe — tem sido palco para a publicação de boas reflexões sobre Direito & Literatura. De forma introdutória, talvez, valha referir algumas das razões pelas quais essa intersecção (ainda) se prova importante.

Para ficar em apenas em três (i) a interseção entre Direito e Literatura proporciona uma compreensão mais enriquecedora e contextualizada do sistema jurídico ao humanizar a aplicação das leis por meio de narrativas envolventes — na medida em que ela existencializa o Direito.

(ii) a análise de obras literárias oferece insights valiosos sobre questões éticas e morais, enriquecendo o debate jurídico e estimulando reflexões críticas sobre sociedade e tome-se como exemplo as inúmeras distopias eternizadas em prosa (1984, Admirável Mundo Novo e Fahrenheit 451).

Por fim, (iii) a incorporação de elementos literários no estudo do Direito contribui para o desenvolvimento das habilidades interpretativas e comunicativas dos profissionais da área, promovendo uma argumentação mais eficaz e sensível às complexidades humanas.

A importância dos estudos
Reforçando a importância dos estudos em Direito e Literatura presente em obras tidas como referência na área (vide Os modelos de juiz: ensaios de Direito e Literatura [1] e Direito & Literatura: reflexões teóricas [2]), o recém lançado Um Tributo a Hermenêutica Jurídica e(m) Crise, de Lenio Streck: 25 anos depois é permeado por este elemento interdisciplinar.

Merece destaque, como ponto de partida para as considerações que serão trazidas neste texto, trecho da entrevista ao professor Vicente de Paulo Barreto, em que eu (Luísa) e o professor Luã Jung o indagamos, tendo em vista ter ele organizado a coleção Dike, na qual foi publicado o paradigmático Contar a Lei, de Fraçois Ost, acerca da contribuição do Direito e Literatura para a compreensão da hermenêutica jurídica. Sua resposta foi:

“Existem diversas maneiras, ao menos quatro, de analisar as relações entre literatura e direito – o direito da literatura: a propriedade literária, a responsabilidade civil do escritor e o direito da imprensa; o direito como literatura: as qualidades literárias do texto jurídico; o direito comparado a literatura: que poderíamos chamar também de estrutura literária do direito; o direito na literatura: a maneira como a literatura representa a lei, a justiça e os grandes problemas do direito. O movimento do direito na literatura propõe-se a superar as limitações do texto jurídico, que, como nos obriga a recordar o poema de Malarme, referindo-se aos textos jurídicos: sua linguagem é triste e eu li todos os livros, tendo lido somente um. Neste sentido, os textos literários aparecem na produção jurídica para apreender as múltiplas dimensões do fenômeno jurídico. Com isto, através da literatura, temos acesso a um rico material que possibilita uma compreensão mais completa, tanto do texto literário quanto do fenômeno jurídico,” [3]

O papel atribuído à Literatura de promover a ampliação dos horizontes hermenêuticos dos juristas, a insere no âmago do processo de compreensão daquele que é/deveria ser o melhor conceito de Direito, ou seja, ponto de partida para a defesa do ideal de respostas corretas em Direito, o que estabeleceria, em certa medida, parâmetros/limites interpretativos às decisões judiciais (aqui).

Com esse propósito se desenvolvem, também, as Teorias da Decisão, como o faz Ost ao apresentar os seus modelos de juiz em Júpiter, Hércules e Hermes: três modelos de juiz [4].

Frequentemente, a teoria elaborada por François Ost tem sido adotada como referência para a caracterização dos modelos de direito e de juízes nos sistemas jurídicos contemporâneos.

No entanto, é pertinente destacar que essa teoria apresenta lacunas quando submetida à análise da atuação jurisdicional, especialmente quando consideramos os ensinamentos da hermenêutica filosófica e os pressupostos do constitucionalismo contemporâneo.

Diante desse contexto, importa delimitar que Ost propõe a elaboração de um modelo que, inicialmente, se baseia na apresentação de duas figuras que representam os extremos da justiça.

A partir desse ponto, sua proposta visa traçar uma terceira figura, capaz de responder eficazmente à atual disseminação de teorias, discursos e valores no cenário jurídico.

O primeiro modelo é o jupiteriano, fundamentado no modelo da pirâmide ou do código. Nessa perspectiva, o direito é proferido de maneira autoritária, adotando a forma da lei e buscando estabelecer-se de maneira imperativa, sendo representado pela legislação.

A concepção de legalidade nesse modelo é central, influenciando a totalidade do direito e servindo de base para as decisões específicas. O contexto do juiz Júpiter é caracterizado pela transcendência e pela sacralidade.

Contrastando com o modelo jupiteriano, o modelo herculano é sustentado pelo ideal revolucionário, transferindo ao juiz a função de única fonte do direito válido, configurando um modelo representado pela imagem do funil. Essa abordagem encontra-se fundamentada na teoria de Ronald Dworkin, que, segundo Ost, promove uma revalorização intensa do papel do juiz. O autor explica que:

“Sin poder — lejos de pretenderlo — reducir la posisción de Dworkin a la de los realistas americanos, mantendremos aqui el nombre de Hércules, particularmente acertado para designar a ese juez semidiós que se somete a los trabajos agotadores de juzgar y acaba por llevar el mundo sobre sus brazos extendidos, reproduciendo así fielmente la imagen del embudo” [5]

Como resultado das posturas adotadas pelo juiz Hércules, não subsiste mais um direito que não seja jurisprudencial, sendo a decisão judicial aquilo que efetivamente estabelece a autoridade. Nesse contexto, destaca-se a supremacia da decisão sobre a ideia de generalidade e abstração que normalmente associamos à lei.

Por fim, Ost introduz seu juiz Hermes, o mensageiro dos deuses, representado pela metáfora da rede. Diferenciando-se dos pólos anteriores, esse modelo se baseia na ideia de uma multiplicidade de pontos inter-relacionados. No contexto do Direito pós-moderno, ao qual o juiz Hermes pertence, surge uma estrutura em rede que se traduz em uma infinidade de informações disponíveis instantaneamente, mas ao mesmo tempo desafiadoras de graduar.

Esse cenário coloca o julgador em uma dinâmica dialética entre os modelos anteriores, estimulando a necessidade imperativa de desenvolver novas abordagens para a concepção do bom Direito.

Constitucionalismo contemporâneo
Diante da análise das propostas dessa teoria, acerta o professor Lenio Streck no sentido em que entende, à luz da hermenêutica filosófica e do constitucionalismo contemporâneo, que a tese de Ost acerca dos modelos de juízes merece uma série de objeções.

Para Streck, “não tanto na parte em propõe o Hermes como solução (que, a toda evidência, apresenta aspectos de grande relevância), mas, fundamentalmente, em relação às críticas ao ‘modelo herculeano'” [6].

Primeiramente, cabe sinalizar para o excessivo esforço de Ost em enquadrar o modelo herculano no modelo de direito do Estado Social, contrapondo, simplesmente, com o modelo de Estado Liberal, ou seja, enquanto um seria o juiz boca da lei, o outro seria o juiz que faz a lei.

O que constitui um erro pelo fato de que Ost não leva em conta que o juiz Hércules é uma metáfora que representa o contrário que sua tese pretende denunciar.

O pressuposto de que a explicação já consolidada de determinado fenômeno serve ao esclarecimento de outro fenômeno é o fundamento do emprego das metáforas, cujo emprego determinaria o grau minimamente necessário de objetivação.

Hércules é a antítese do juiz discricionário, este sim refém da filosofia da consciência [7].

Com efeito, Ost peca ao indicar as missões do juiz Hércules “assistencialista” sem levar em conta que a coerência e a integridade — características do modelo dworkniano — garantem a possibilidade de praticar tais atos sem que o juiz ou tribunal pratique decisionismos e arbitrariedades, o que para Ost representaria a marca do modelo herculano.

Na sequência, deixa de comentar as consequências para o próprio constitucionalismo de um “não invencionismo” do judiciário na concretização dos direitos fundamentais [8].

Ao dizer que na gestão de Hércules, a generalidade e a abstração da lei dão lugar à singularidade e à concretude do juízo, o professor belga parece desconsiderar a superação do modelo de regras, atribuindo aos princípios a função de otimizar a interpretação, fechando e abrindo, autopoiéticamente, o sistema jurídico, o que acaba por atribuir um caráter reducionista aos modelos de Direito e de juiz desenvolvidos por ele [9].

Paradoxalmente, ao propor o modelo de Hermes como um avanço ao convencionalismo e ao invencionismo, afirmando que Hermes respeita o caráter reflexivo do raciocínio jurídico, Ost acaba por tornar seu Hermes o Hércules de Dworkin [10].

Ao fazer uma leitura empobrecida das situações que pretende representar, sem que fossem levadas em consideração as demandas inerentes ao paradigma do Estado Democrático de Direito e o tipo de constitucionalismo instituído em grande parte dos países após o segundo pós-guerra, Ost desconsidera a proeminência do Poder Judiciário, especialmente em países de modernidade tardia, como garantidor de direitos, dessa forma acaba por transformar a Constituição em mera folha de papel [11].

Mesmo diante da incompatibilidade entre os modelos de juízes proposto por Ost e as demandas inerentes ao desenvolvimento de uma Teoria Hermenêutica do Direito que consiga sustentar os pressupostos para a concretização do constitucionalismo contemporâneo — ou o melhor conceito de Direito —, sobre a capacidade da literatura de auxiliar os juristas na compreensão do fenômeno jurídico, estamos todos na mesma página.

Afinal, como bem escreveu Ost, “O jurista que desembarca em terra literária assemelha-se a Colombo pondo os pés no novo mundo — ignorante da natureza exata de sua descoberta: ilha ou continente? Índia ou América?” [12]. Contudo, diferentemente de Ost, acreditamos que a bússola para desbravar esse novo mundo é a normatividade da Constituição.

 

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[1] STRECK, Lenio Luiz; TRINDADE, André Karam. Os modelos de juiz: ensaios de direito e literatura. São Paulo: Atlas, 2015.

[2] TRINDADE, André Karam; GUBERT, Roberta; NETO, Alfredo Copetti (Orgs.). Direito & Literatura: reflexões teóricas. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008.

[3] STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise de Lenio Streck: tributo aos 20 anos. São Paulo : Tirant lo Blanch, 2023. p. 231-232.

[4] OST, François. Júpiter, Hércules, Hérmes: três modelos de juez. In: Doxa, Cuadernos de Filosofia del Derecho, n. 14, Alicante, 1993.

[5] Idem. p. 170.

[6] STRECK, Lenio Luiz. Lições de crítica hermenêutica do direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2014. p. 134.

[7] Idem. p. 135-140.

[8] Idem. p. 135.

[9] STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso: Constituição, hermenêutica e teorias discursivas. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 392.

[10] STRECK, Lenio Luiz. Lições de crítica hermenêutica do direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2014. p. 137.

[11] STRECK, Lenio Luiz. O (pós-)positivismo e os propalados modelos de juiz (Hércules, Júpiter e Hermes) – Dois decálogos necessários. In: Revista de Direitos e Grantias Fundamentais, Virória, n. 7. 2010.

[12] OST, François. Contar a lei: as fontes do imaginário jurídico. São Leopoldo: Unisinos, 2005. p. 58.

Autores

  • é doutoranda e mestre em Direito Público pela Unisinos, bolsista Capes/Proex, membro do Dasein — Núcleo de Estudos Hermenêuticos e professora da Faculdade São Judas Tadeu.

  • é bolsista Capes/Proex, doutorando e mestre em Direito Público pela Unisinos (Universidade do Vale do Rio dos Sinos), pós-graduado em Teoria do Direito, Dogmática Crítica e Hermenêutica pela ABDConst (Academia Brasileira de Direito Constitucional), bem como em Direito Constitucional pela mesma instituição. Membro do Dasein (Núcleo de Estudos Hermenêuticos).

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