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Excesso de judicialização criou cidadão de segunda classe, diz Lenio Streck

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17 de abril de 2024, 8h27

Quando todas as questões da vida em sociedade acabam no Poder Judiciário, o resultado não pode ser outro que não uma “sociedade de litigiosidade”, em que o cidadão, paradoxalmente, fica em segundo plano. E por vontade própria, já que ele mesmo delega ao Judiciário a resolução de todos os seus problemas.

Lenio Streck critica o excesso de judicialização da vida brasileira

Esse impasse é apontado pelo constitucionalista Lenio Streck, que, em entrevista exclusiva à revista eletrônica Consultor Jurídico, analisou as causas e as consequências do inchaço do Poder Judiciário na vida cívica brasileira nas últimas décadas.

Ele cita o ministro Luis Felipe Salomão, do Superior Tribunal de Justiça, para explicar que as grandes empresas usam o Judiciário como um call center — em vez de resolver os problemas dos seus consumidores, elas esperam ser obrigadas a isso por decisão judicial.

Streck dá um exemplo: “O sujeito só tem um ponto da Net, e quer dois. E a empresa quer cobrar dele. Não sei se deve cobrar ou não. Em vez de tentar resolver diretamente com a Net, ele corre à Defensoria. E a Defensoria já faz uma ação para todos os pontos da Net. A grande questão é que não sei se há um direito fundamental das pessoas a ter o segundo ponto da Net. Não sei se essa é uma discussão que tem de ser feita no plano do Judiciário”.

Segunda classe

É assim, segundo o constitucionalista, que se criam cidadãos de segunda classe: porque os cidadãos parecem insistir em ser tutelados pelo Estado. Mas há o outro lado da moeda, que é o incentivo à judicialização. O próprio crescimento da estrutura do Judiciário incentiva sua utilização mais ampla, e ninguém mais atende às pessoas insatisfeitas se não for por essa via.

“Você liga para uma empresa, tem um robô. Você liga para bancos, ninguém te atende. As pessoas se sentem desamparadas simbolicamente porque as empresas não dão bola. Você vendeu uma mercadoria e eu não consigo falar com você.”

Diante desse abandono, resta o Judiciário, que dá o consolo da existência de uma ação, a ilusão de que alguma coisa está sendo resolvida. É uma forma de “ser gente”, de enfrentar o sistema. “Funciona? Não. Enche. Nós temos 350 milhões de processos”, diz o constitucionalista. “Mas esse é o debate que precisa ser feito pelo Judiciário”, completa.

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