Direitos Fundamentais

Constitucionalismo digital e o surgimento das cartas de direitos na internet

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9 de fevereiro de 2024, 8h00

“As tecnologias mais profundas são aquelas que desaparecem. Eles se entrelaçam na vida cotidiana até serem indistinguíveis dela”. Com essas palavras, Mark Weiser, o cientista da computação norte-americano, que cunhou o termo “computação ubíqua”, publicou um curto artigo na revista Scientific American (1991) [1]. Ele comparou a tecnologia digital com a escrita, definindo esta última como “talvez a primeira tecnologia da informação”.

Hoje, a técnica de expressar a linguagem mediante sinais escritos permeia o mundo moderno. Não se pensa em empregar uma “tecnologia” ao escrever ou ler. A escrita, concebida como tecnologia, “desapareceu” no nosso mundo. É agora uma parte tão integrante da nossa existência que dificilmente se pode conceber a vida humana sem a possibilidade de expressar mensagens por escrito. Em 1991, Weiser anunciou o advento de uma era em que os computadores se tornariam realmente “pessoais” e na qual a tecnologia digital seria onipresente, de modo a permear todos os aspectos da nossa existência. Ele falou sobre uma transição para uma “virtualidade incorporada”: centenas de computadores numa sala, computação ubíqua ao nosso serviço.

Transcorridos mais de 30 anos da publicação do ensaio seminal de Weiser, espanta o nível de precisão de suas declarações e previsões. O metaverso e a Internet das Coisas já são realidades concretas e o ser humano logrou, para o bem e para o mal, ir muito além das expectativas nutridas por Weiser. A digitalização e a virtualidade não só estão em progresso espantosamente rápido e massivo como já se tornaram parte integrante de nossa vida, ademais de permear toda a atividade econômica, social, cultural, jurídica e política do nosso tempo, incorporando-se inclusive ao nosso mundo físico e nos objetos que nos rodeiam.

Realidade híbrida
Tal fenômeno, conhecido também como transformação digital, como já adiantado, tem impactado diuturnamente cada vez mais as mais diversas dimensões da vida humana, o que, dentre inúmeros outros exemplos, pode ser experimentado de modo particularmente duro e trágico durante a recente pandemia do Covid-19, que, por exemplo, provocou profundas modificações em muitos setores, e não apenas na seara da medicina, como se pode ilustrar mediante a demonstração de que a maioria das pessoas consegue trabalhar totalmente online, sem adentrar aqui também os aspectos negativos dessa evolução.

A possibilidade de contornar, pelo menos em determinados casos e de algum modo, as restrições impostas em relação à mobilidade igualmente foi algo marcante, e muito disso, ao que tem indicado a evolução dos acontecimentos desde então, veio para ficar.

A digitalização possibilitou novas formas de interação, ampliou o acesso ao conhecimento (sem desconsiderar aqui o efeito bolha e outros problemas), o empoderamento de todos os usuários da internet no tocante à sua liberdade de expressão (a desinformação e o discurso do ódio estão entre os preocupantes contrapontos), dentre tantos exemplos que aqui poderiam ser inventariados.

Em suma, vivemos num ecossistema digital, não se podendo mais falar apenas de uma realidade “virtual”, mas sim, de uma realidade híbrida. Hoje, a nossa existência física e digital está ligada de uma forma que já não pode ser claramente distinguida. Nosso eu real e virtual acabam, muitas vezes e cada vez mais, compondo uma personalidade única.

As Constituições e a inserção de “novos” direitos
No que diz respeito ao papel do Direito, apresenta-se, mais uma vez, a necessidade de apresentar respostas regulatórias adequadas e eficazes para os novos problemas e desafios, de tal sorte que de há muito já se fala num processo de digitalização do Direito e mesmo de um Direito Digital. Para o Direito Constitucional – objeto precípuo deste ensaio – os desafios têm sido imensos, não só (v.g. o caso do governo e da democracia digitais), mas em especial no concernente aos direitos fundamentais, o que, aliás, se aplica também ao direito internacional dos direitos humanos.

Muito embora as constituições contemporâneas, que se radicam no constitucionalismo moderno do final do século 18, tenham sido moldadas para um mundo “analógico”, o fato é que, a despeito da transformação digital, seguem em vigor e, em maior ou menor medida, a depender do contexto, procuram – ainda que não com a velocidade desejável – ajustar-se para enfrentar os desafios da revolução digital.

Spacca

Esse processo se dá de múltiplas formas, como é o caso da inserção por emendas constitucionais de “novos” direitos aos respectivos catálogos, como bem demonstra o exemplo da proteção de dados pessoais, ou mesmo de direitos não expressamente positivados, mas que, por decisão dos tribunais responsáveis pela guarda das Constituições, são deduzidos, na condição de direitos implicitamente positivados, de outros princípios e direitos fundamentais (v.g. autodeterminação informacional, direito ao esquecimento, direito de acesso à internet, educação digital, etc.).

Direitos fundamentais e a digitalização
Outro fenômeno que merece ser referido, é o da digitalização dos direitos fundamentais, ou, melhor, da dimensão digital dos direitos fundamentais, que, grosso modo, significa que todos os direitos, de todas as dimensões, são impactados pela digitalização, e, portanto, devem ser compreendidos e aplicados de modo a dar conta desses desafios, o que, por sua vez, já tem sido realizado de diversas maneiras, como, v.g., no estabelecimento de limites a algumas formas de expressão, como é o caso da desinformação e dos discursos do ódio, a assim chamada herança digital, proteção do consumidor, proteção de crianças e adolescentes e de grupos vulneráveis em geral, no combate à discriminação algorítmica, home-office e tantos outros.

Paralelamente a esses ajustes/adaptações, muitos princípios e regras destinados a proteger e tornar efetivos os direitos fundamentais são processados pela legislação infraconstitucional e, como já lembrado, pelo labor da jurisprudência. Mas há um outro cenário que tem assumido, gradualmente, uma grande dimensão.

Edoardo Celeste, professor na Dublin City University

Trata-se da emergência de declarações ou cartas de direitos na e para a internet, que não são o resultado de um processo legislativo convencional, mas sim, documentos destituídos de caráter juridicamente vinculante, mas que tem por escopo a proteção dos direitos fundamentais e o estabelecimento de princípios “constitucionais” para a sociedade digital. Como adiantado, tais declarações surgem em regra à revelia dos processos políticos tradicionais, sendo elaborados por uma variedade de atores, incluindo indivíduos e organizações da sociedade civil.

Cartas de direitos na internet
Aqui entra em cena o novo livro do coautor Edoardo Celeste, que me deu a honra de elaborar em parceria esta coluna, que também tem como foco uma breve sínteses dos principais elementos do referido livro, que ostenta o título “Digital Constitutionalism: The Role of Internet Bills of Rights” (Routledge, 2023, totalmente disponível em acesso aberto e gratuito aqui).

A obra visa abordar as questões acima apresentadas, investigando o fenômeno do surgimento de cartas de direitos na internet, e focando em particular sobre o papel dessas iniciativas numa perspectiva constitucional, no contexto do que foi definido como constitucionalismo digital.

A primeira parte do livro, explica que o surgimento de declarações de direitos na internet não representa um fenômeno isolado, mas é um componente integrante de um momento constitucional mais amplo. Com efeito, o advento da revolução digital está a colocar sob pressão as normas constitucionais existentes, originalmente concebidas para um mundo analógico, gerando assim potencialmente situações de desequilíbrio no ecossistema constitucional.

Como reação, está a surgir uma série de normas que tentam adaptar a ordem jurídica às condições mutantes da sociedade digital. Estas “contrarreações constitucionais” são uma consequência da natureza viva do Direito Constitucional, que não foi criado para permanecer imutável, mas que historicamente evoluiu gradualmente acompanhando as necessidades emergentes da sociedade.

Constitucionalização multinível 
O ecossistema constitucional está a reagir para enfrentar os desafios da sociedade digital através de diferentes instrumentos normativos, incluindo, mas não limitado as declarações de direitos da Internet. À luz do caráter global e transnacional das questões geradas pela revolução digital, as contrarreações constitucionais também emergem para além da dimensão estatal, por exemplo, nas regras internas de poderosas empresas tecnológicas multinacionais.

O discurso constitucional não é mais unitário, mas inevitavelmente plural. No entanto, esses fragmentos constitucionais podem ser interpretados como elementos de um processo de constitucionalização multinível, que visa definir uma série de princípios para garantir a proteção dos direitos fundamentais e assegurar um equilíbrio de poderes no ecossistema digital.

Constitucionalismo digital
Argumenta-se que estas respostas normativas complementares partilham o objetivo de fundamentar uma forma de constitucionalismo digital. Celeste propôs a noção de constitucionalismo digital para denotar o movimento de pensamento que defende a tradução dos ideais e princípios do constitucionalismo contemporâneo à luz das exigências do ambiente digital [2].

O constitucionalismo digital não representaria uma forma nova e autônoma de constitucionalismo, mas deve ser visto como uma camada teórica interna do constitucionalismo contemporâneo. O constitucionalismo digital visa preservar o DNA do constitucionalismo contemporâneo. Traduz os seus valores fundamentais, perpetuando-os no contexto da sociedade digital. Um dos exemplos mais originais do constitucionalismo digital é a ideia de elaborar uma “constituição” para a internet, que ao longo das últimas décadas ganhou progressivamente impulso e levou à publicação de numerosas “cartas de direitos da internet”.

Adotando uma perspectiva funcional, o livro de Celeste afirma que as declarações de direitos da internet desempenham um papel significativo do ponto de vista constitucional. Ao utilizar a língua franca das constituições, essas declarações pretendem fazer parte da conversa sobre como moldar os nossos princípios constitucionais para a era digital.

Fundamentalmente, o seu caráter informal e não vinculativo permite a participação de um vasto número de intervenientes e aumenta a sua capacidade de promover ideias inovadoras. Argumenta-se, portanto, que as declarações de direitos da internet compensam e, ao mesmo tempo, estimulam o processo em curso de constitucionalização da sociedade digital. Não pretendem estabelecer constituições cosmopolitas para a internet, mas sim nutrir o atual momento constitucional.

Anemia constitucional
Partindo desse pressuposto, o livro apresenta a análise do seu âmbito de aplicação e conteúdo substantivo como um teste decisivo da saúde dos nossos sistemas constitucionais. Ao analisar a mensagem inovadora que indivíduos e grupos transmitem mediante as cartas de direitos da internet, pode-se destacar áreas do Direito existente afetadas pelo que o livro de Celeste chama de “anemia constitucional”, dito de outro modo, um descompasso significativo entre as normas constitucionais e a realidade social que requer uma atualização urgente.

O alcance universal dessas declarações, bem como os seus métodos inclusivos de deliberação, interpretadas como um forte apelo ao ecossistema constitucional, de modo a ultrapassar a relação binária Estado-cidadão, tem a virtude de gerar, com a participação de todas as partes interessadas, respostas normativas à revolução digital que têm em conta os indivíduos em nível global e a emergência de novos atores dominantes.

Democracia eletrônica como um novo princípio fundamental
O exame do conteúdo substantivo das cartas de direitos da internet oferece uma visão abrangente da mensagem constitucional dessas declarações, investigando tanto os valores fundamentais do constitucionalismo contemporâneo, que são simplesmente reiterados ou traduzidos no contexto da sociedade digital, bem como os novos princípios propostas por estes documentos.

Na visão proposta pelas cartas de direitos da internet, por exemplo, a proteção dos dados pessoais adquire definitivamente a sua independência como um direito autônomo, um valor a proteger per se, e não apenas quando ligado ao respeito pela privacidade individual.

A democracia eletrônica surge como um novo princípio fundamental que permite ao indivíduo contrabalançar o poder do Estado mediante acesso aos dados abertos, aos serviços eletrônicos e à participação eletrônica na vida democrática.

Nessa perspectiva, um direito de acesso à internet torna-se um meio indispensável para o exercício dos direitos fundamentais em geral na sociedade contemporânea, o que significa que o acesso deve ser fornecido a custos acessíveis, se não gratuitamente, e, em qualquer caso, sem discriminação e de forma contínua, sem interrupções injustificáveis. Além disso, o direito ao acesso à internet implica também o direito de poder a utilizar e, assim, de ser educado sobre como utilizá-la para exercer os próprios direitos fundamentais e a cidadania.

As cartas de direitos da internet destacam, em última análise, que, na era digital, a própria internet, concebida como um fórum público digital baseado em determinados valores, funções e princípios essenciais de governança, democracia, assim como afinada com as exigências do Estado de Direito e dos direitos fundamentais, pode, bem compreendida e manejada, tornar-se inclusive num esteio do Estado Constitucional Contemporâneo.


[1] Mark Weiser, “The Computer for the 21st Century”, Scientific American (Setembro de 1991) 94.

[2] Edoardo Celeste e Paulo Rená da Silva Santarém (tradutor), “Constituicionalismo Digital: Mapeando a Resposta Constitucional Aos Desafios Da Tecnologia Digital” (2021) 15 Revista Brasileira de Direitos Fundamentos e Justiça 63.

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