Opinião

Judicialização, ativismo judicial e concretização das políticas sociais via Judiciário

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30 de abril de 2024, 16h18

Ultrapassados os embates polêmicos entre Hans Kelsen e Carl Schmitt [1], ocorridos durante o período do primeiro pós-guerra mundial acerca da legitimidade da jurisdição constitucional, sobre quem deveria ser o “defensor da Constituição”, verifica-se que a grande questão que atualmente se impõe, e que tem despertado o interesse dos doutrinadores, diz respeito à compatibilização da função jurisdicional criadora e construtiva com o exercício das atividades legislativas e administrativas, sem que tal proceder tenha o condão de violar princípios como a separação de Poderes, a soberania, a repartição de competência e a democracia.

Marcello Casal/Agência Brasil

Visando desenvolver o presente artigo, é fundamental fazermos uma diferenciação entre judicialização e ativismo judicial, pois muito embora possam, num primeiro momento, parecer os mesmos fenômenos, verificaremos que, ainda que possuam pontos convergentes, distinguem-se, senão vejamos [2].

Judicialização

Judicialização significa que questões polêmicas de cunho social e político estão sendo objeto de decisão pelo Poder Judiciário e não pelos Poderes Legislativo e Executivo. Em sendo assim, a judicialização acarreta transferência de poder para os órgãos jurisdicionais, o que, por via de consequência, traduz uma mudança substancial na argumentação, na linguagem e no modo de participação popular, já que os membros do Poder Judiciário são dotados de conhecimento jurídico e não são eleitos pela população.

O fenômeno da judicialização possui algumas causas que merecem ser referidas, consoante escólio do eminente constitucionalista Luís Roberto Barroso:

1) a primeira delas advém da promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, denominada de Constituição Cidadã, porque foi elaborada visando a deixar de lado aquela concepção outrora sufragada de Estatuto do Estado, fruto da redemocratização do país;

2) a segunda diz respeito à constitucionalização abrangente, ou seja, o Poder Constituinte Originário trouxe para a Constituição matérias que anteriormente eram tratadas pela legislação ordinária;

3) e a terceira é o sistema brasileiro de controle de constitucionalidade, que é classificado como híbrido, combinando aspectos de dois sistemas diversos: o americano e o europeu.

Vale lembrar que o sistema americano de controle de constitucionalidade é incidental e difuso, segundo o qual qualquer juiz ou tribunal, na hipótese de considerar inconstitucional, pode deixar de aplicar uma lei, em um caso concreto que lhe tenha sido submetido.

Além do controle de constitucionalidade incidental ou difuso, importamos, do modelo europeu, o controle por ação direta, que permite que determinadas matérias sejam objeto de análise e discussão de forma direta e imediata ao Supremo Tribunal Federal.

Insta frisar que quando questões positivadas na ordem jurídica brasileira são levadas ao conhecimento do STF, o guardião da Constituição, ao ser provocado não pode deixar de se manifestar, decidindo a pretensão autoral, tendo em vista o princípio da inafastabilidade da tutela jurisdicional, e neste diapasão a judicialização decorre não da vontade da Suprema Corte, nem tampouco dos demais órgãos do Poder Judiciário, e sim do modelo constitucional adotado pela Constituição da República Federativa do Brasil.

Ativismo judicial

O ativismo judicial, por seu turno, apresenta outros contornos a serem explicitados. Trata-se de uma conduta proativa dos órgãos jurisdicionais ao interpretar a Constituição de forma a ampliar o seu alcance e sentido, tendo em vista situações de inércia, omissão ou de atuação deficiente dos Poderes Legislativo e Executivo.

Diante de tal quadro, constatamos o Poder Judiciário participando de forma mais abrangente, intensa e ampla na concretização das normas constitucionais, culminando numa maior interferência no campo que seria de competência dos demais Poderes da República.

Analisando o ativismo judicial, chegamos à conclusão de que esse fenômeno revela-se por meio de diferentes condutas emanadas pelo Poder Judiciário: a uma, pela aplicação direta da Constituição, considerando a eficácia imediata das normas constitucionais, a situações não expressamente previstas no seu texto, mesmo na hipótese de inexistência de qualquer manifestação do legislador ordinário; a duas, pela declaração de inconstitucionalidade de atos normativos advindos do Poder Legislativo, com base em critérios menos rígidos que os de violação expressa e frontal à Constituição; a três, pela determinação de condutas ou abstenções ao poder público, máxime quando tratarmos de políticas públicas sociais.

Os direitos sociais, ao serem alçados ao patamar de normas constitucionais, acarretam ao Poder Judiciário a obrigatoriedade de nortear a sua atividade jurisdicional a comportamentos que visem a sua implementação de forma efetiva na sociedade.

Spacca

Não se deve olvidar que o peso atribuído ao Poder Judiciário no Estado Democrático de Direito possui contornos de maior relevância do que no Estado Liberal, o que pode ser constatado pelo fato de que o órgão jurisdicional passou a assumir um papel não de mero aplicador da lei, elevando a atividade jurisdicional como produtiva e evolutiva [3] e não como reprodutora da “letra fria” da lei, próprio de uma visão positivista.

A CF/88 e o papel político do magistrado

Ocorre que nem sempre foi assim. Verificamos uma mudança na atuação do Poder Judiciário a partir da década de 1990. Isso porque com a promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 houve uma preocupação muito grande do legislador constituinte originário em garantir as liberdades democráticas, bem como as garantias da magistratura, sendo certo que se antes a função do magistrado se assemelhava à de um mero burocrata, ela passou a partir daí, a desempenhar um papel político, ao lado dos Poderes Executivo e Legislativo.

Importante ressaltar que não obstante o Poder Judiciário, no exercício da sua função jurisdicional, fundamente as suas decisões juridicamente, e é extreme de dúvidas que assim deve ser, em obediência ao princípio da motivação das decisões judiciais insculpido no inciso X do artigo 93 da Carta Magna brasileira, é inegável que tais decisões possuem reflexo e repercussão de cunho político e público, tais como quando o Supremo decide pela constitucionalidade das cotas raciais nas universidades públicas [4]; pela constitucionalidade do programa implementado pelo Poder Executivo federal intitulado Universidade para Todos (Prouni) [5]; julga improcedente o pedido de declaração de inconstitucionalidade da Lei nº 8.899/94, que concede passe livre no sistema de transporte coletivo interestadual às pessoas portadoras de deficiência, comprovadamente carentes [6].

Não obstante esse reflexo de cunho político das decisões judiciais, é inconteste que o Poder Judiciário possui características que lhe são inerentes, consubstanciadas no fato de que a escolha dos seus membros não advém de critérios eletivos, nem tampouco de processos majoritários, e sim por meio de aprovação em concurso público de provas e títulos, com a aferição dos conhecimentos jurídicos daqueles que se submetem a tal certame.

Nos tribunais superiores ocorre por meio de ascensão na carreira ou pelo quinto constitucional, e no que pertine ao Supremo Tribunal Federal, o acesso dar-se-á mediante nomeação do presidente da República dentre aqueles com notável saber jurídico ex vi do artigo 101 da Constituição da República Federativa do Brasil.

Considerando que vivemos num Estado democrático de Direito, o poder dos juízes e dos tribunais é representativo, ou seja, é exercido em nome do povo, motivo pelo qual devem prestar contas à sociedade como forma de legitimação social do exercício do seu munus público.

Destarte, o Poder Judiciário passou a dialogar com a sociedade, seja através das audiências públicas, da transmissão televisiva direta dos julgamentos do Supremo Tribunal Federal pelo canal de televisão brasileiro TV Justiça, quer seja através da criação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). É inconteste que essa visibilidade pública contribui para a transparência, a publicidade, para o controle da sociedade da função jurisdicional e, acima de tudo, para a democracia [7].

Mudança de paradigma

A partir dos ensinamentos de Hans Kelsen e da evolução da hermenêutica houve uma mudança de paradigma, no sentido de que a aplicação do direito também é considerada como criação do direito, não havendo que se falar em situações estanques e sim em concomitância, eis que a aplicação do direito se cuida, outrossim, de criação do direito [8].

A evolução da Hermenêutica trouxe à atividade jurisdicional uma nova roupagem, sendo responsável pela concretização das normas cujos primeiros balizamentos estão contidos nos textos legislativos, no entanto, não se esgotando neste momento, permitindo ao Estado-juiz, ao prolatar as suas decisões o exercício de uma atividade criativa [9], visando adequar tais normas aos novos anseios da sociedade, e seu ao contexto histórico, político e social. Isso porque ao lado da atividade típica exercida pelo Poder Judiciário, não deve ser negligenciado o escopo social que se encontra subjacente com o objetivo precípuo de atender aos ditames do Estado democrático de Direito.

 

 


[1] Na concepção de Carl Schmitt cabe ao Presidente do Reich ser o guardião supremo da Constituição de Weimar, com arrimo na interpretação dada ao seu artigo 48, pois, segundo alega, o Presidente da nação alemã ao ser eleito diretamente pelo povo, assumiria uma posição de neutralidade quanto ao sistema político-partidário. Sustenta, outrossim, que o controle de constitucionalidade possui um viés político e não jurisdicional, dês que, acarreta uma avaliação discricionária das leis e que o Tribunal Constitucional acaba, desta forma, por criar o direito, gerando uma politização da justiça. Hans Kelsen, por seu turno, rechaçou os argumentos de Carl Schmitt aduzindo que suas assertivas tinham objetivos casuísticos, quais sejam, obstar a criação na República de Weimar de uma Corte Constitucional nos moldes da Constituição austríaca de 1920, visando, desta feita, concentrar o poder de fiscalizar a constitucionalidade das leis nas mãos do Chefe do Reich. Segundo os ensinamentos capitaneados por  Kelsen, a Corte Constitucional seria o órgão que melhor protegeria a normatividade da Constituição, isso porque os Poderes Legislativo e Executivo possuiriam a tendência de interpretá-la com um viés de parcialidade e de acordo com os seus próprios interesses, motivo pelo qual tão-somente um órgão que estivesse isento da disputa política, cujos membros fossem independentes teria a possibilidade de exercer tal função, mantendo o equilíbrio entre os Poderes. BINEMBOJM, Gustavo. A Nova Jurisdição Constitucional Brasileira: legitimidade democrática e instrumentos de realização. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, pp. 66-73.

[2] BARROSO, Luís Roberto. Judicialização, Ativismo Judicial e Legitimidade Democrática.  Disponível em:  <http//www.oab.org.br/editora/revista/users/revista>. Acesso em 06 de maio de 2012.

[3] ALEIXO, Pedro Scherer de Mello. O direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva na ordem jurídica brasileira. A caminho de um “devido processo proporcional”. In: Monteiro, António Pinto, Neuer Jörg, Sarlet, Ingo (organizadores). Direitos Fundamentais e Direito Privado, Uma perspectiva de direito comparado. Editora Almedina. Setembro, 2007, p. 429. Aleixo, Pedro Scherer de Mello cita no seu artigo jurídico que os doutrinadores alemães Friedrich Müller e Ralph Christensen na obra Juristishe Methodik, vol I, 9 ª ed., 2004, p. 234, sustentam que, no atual estágio do Estado Democrático de Direito, no que concerne à atividade jurisdicional, não se deve mais trabalhar com a concepção de interpretação da norma jurídica e sim com a ideia de concretizar a norma jurídica através da sua construção.

[4] O Supremo Tribunal Federal, por unanimidade, em sessão realizada em 25 de abril de 2012, julgou improcedente a Ação de Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 186 ajuizada pelo Partido dos Democratas (DEM), considerando constitucional a política de cotas étnico-raciais para seleção de estudantes da Universidade de Brasília (UnB). O Presidente da Suprema Corte, à época, Ministro Ayres Brito asseverou que a Constituição legitimou todas as políticas públicas para promover os setores sociais histórica e culturalmente desfavorecidos. “São políticas afirmativas do direito de todos os seres humanos a um tratamento igualitário e respeitoso. Assim é que se constrói uma nação”, concluiu.

[5] A Constituição da República Federativa do Brasil prevê no seu artigo 6º que a educação é um direito social, e nos artigos 205 a 208, discorre sobre os seus princípios e as bases em que o aludido direito será implementado. Visando dar efetividade a estes princípios e bases é que surgiu o PROUNI – Programa Universidade para Todos, objetivando dar oportunidade aos alunos carentes e que tenham atingido nota suficiente no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) de ingressar no ensino superior e, consequentemente, possuírem melhor qualificação, o que os possibilitarão, no futuro, melhores oportunidades de trabalho e de fruição da vida.

[6] ADIn 2.649/DF, rel. ministra Carmem Lúcia. Em seu voto, a relatora, asseverou que o Brasil é signatário desde o ano de 2007 da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e que no caso sub examine  deve-se aplicar os princípios da solidariedade, previsto no artigo 3º da Constituição da República, bem como da dignidade da pessoa humana visando a alcançar a redução das desigualdades sociais e que eventual desequilíbrio financeiro do contrato de transporte pode vir a ser compensado quando da negociação da tarifa do serviço público com o poder concedente.

[7] Consoante ensinamento do insigne professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Paulo Otero, a democracia ocidental, atualmente, pode ser considerada como a personificação da sociedade aberta, no sentido de, em se tratando, de organização social, ser a mais adequada a abarcar as reformas e a que se mostra mais suscetível a aceitar as autocríticas, revelando-se, assim, ao longo da história, o modelo de organização que melhor reflete a ideia do mais justo. OTERO, Paulo. Instituições Políticas e Constitucionais. Volume 1. Editora Almedina, 2007, pp. 599- 601 e 616-617.

[8] KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Tradução de Dr. João Baptista Machado. 3ª edição. Armênio Amado- Editor, Sucessor- Coimbra. 1974.

[9] RAMOS, Elival da Silva. Ativismo Judicial: Parâmetros Dogmáticos. Editora Saraiva, 2010. pp. 116-120.

Autores

  • é defensora pública federal no Rio de Janeiro, doutoranda em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa, mestra em Ciências Jurídico-Políticas, Perfil Direitos Fundamentais pela Universidade de Lisboa e autora do blog Direitos Fundamentais em Foco.

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