Opinião

Não há justificativa para mais regulação da mídia e das redes sociais

Autor

  • Georges Humbert

    é advogado professor e presidente do Instituto Brasileiro de Direito e Sustentabilidade doutor e mestre em Direito do Estado pela PUC-SP e pós-doutor pela Universidade de Coimbra.

27 de abril de 2024, 7h06

As redes sociais são meio de felicidade e democracia. Amplificou as vozes da imprensa, seja da grande mídia, seja daqueles que não têm esse poderio, mas, sobretudo, potencializou a participação popular nos grandes temas do país, com mais acesso ou, como se diz hoje, “lugar de fala”, junto aos três Poderes e à mídia. Sem dúvidas que, neste sentido, liberdade de expressão, de imprensa e de redes sociais se compõem e complementam.

Neste contexto, a liberdade de expressão, de imprensa e de redes sociais é, na lição de Ruy Barbosa “a vista da Nação”.

“Por ela é que a Nação acompanha o que lhe passa ao perto e ao longe, enxerga  o que lhe malfazem, devassa o que  lhe ocultam e tramam, colhe o que lhe sonegam, ou roubam,  percebe onde  lhe alvejam, ou nodoam, mede o que lhe cerceiam, ou destroem, vela pelo que lhe  interessa, e se acautela do que a ameaça”. Não por outro motivo, o eterno ministro e presidente do STF, Celso de Mello, sempre sustentou que “(…)  nada  mais nocivo,  nada mais perigoso do que a  pretensão do Estado de regular a liberdade de expressão, pois o pensamento há de ser  livre –  permanentemente livre, essencialmente livre, sempre livre”.

Sem dúvida, a regulação da liberdade de expressão, seja na imprensa ou nas redes sociais, só existe em países autoritários, como Coreia do Norte, Cuba, Venezuela, Nicarágua, entre outros e, no Brasil, remontaria ao período sombrio em que tudo que fosse publicado passava por um órgão censor, sendo que os que desagradavam os ditadores de então tinham sua voz calada, seu veículo de imprensa, sua rede social, sua arte, censurada e banida, inclusive com exílio. E isso parece estar retornando ao Brasil e a outras democracias fragilizadas espalhadas pelo mundo, em especial, na América Latina.

A respeito da importância da liberdade de imprensa para a democracia, não se pode olvidar que a Declaração de Direitos do Estado de Virginia, de 1776, reconheceu de modo expresso a liberdade de expressão através da imprensa. Essa liberdade também foi proclamada na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789.

O mesmo se diga da Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1789, da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, de 1966, da Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais e da Convenção Americana de Direitos Humanos.

Censura disfarçada de regulação às redes sociais

Em seu artigo 5º, incisos IV, IX, XIV, a Constituição da República Federativa do Brasil determina “que é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato”, e que “é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independente de censura ou licença”, bem como que “é assegurado a todos o acesso a informação”. E isso protege, igualmente, a imprensa livre e as redes sociais livres. Por isso, assusta ver parte da imprensa, em especial da grande e tradicional mídia, censurada no passado que todos dela condenam, hoje defender, sem pudor, a censura, disfarçada de regulação às redes sociais.

Neste passo, vale registrar memorável voto na ADPF 130-7, de lavra do então decano e eminente ministro Celso de Mello, segundo o qual “…quando se busca promover a repressão à crítica jornalística, que o Estado não dispõe de poder algum sobre a palavra, sobre as ideias e sobre as convicções manifestadas pelos profissionais dos meios de comunicação social. Essa garantia básica da liberdade de expressão do pensamento, como precedentemente assinalado, representa, em seu próprio e essencial significado, um dos fundamentos em que repousa a ordem democrática. Nenhuma autoridade pode prescrever o que será ortodoxo em política, ou em outras questões que envolvam temas de natureza filosófica, ideológica ou confessional, nem estabelecer padrões de conduta cuja observância implique restrição aos meios de divulgação do pensamento”.

Isso é claro e inexorável, no Brasil democrático, e na maior e mais antiga democracia do planeta, pois que “o direito de pensar, falar e escrever livremente, sem censura, sem restrições ou sem interferência governamental” representa, conforme adverte Hugo Lafayette Black, que integrou a Suprema Corte dos Estados Unidos, “o mais precioso privilégio dos cidadãos…” (Crença na Constituição, p. 63, 1970, Forense).

Por outro lado, no seu artigo 220, dispõe a nossa Magna Carta que esses direitos não poderão sofrer nenhuma restrição, observada a própria Constituição, acrescentando que nenhuma lei poderá embaraçar a liberdade de informação jornalística, repelindo toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística, o que inclui a vedação a tal censura, disfarçada de regulação, das redes sociais.

Liberdade segundo Ferreira Gullar e Giannotti

Não só os grandes nomes da ciência jurídica proclamam essa liberdade. Também a proclamam expoentes de todas as atividades humanas e de todas as classes sociais, como por exemplo, o grande poeta Ferreira Gullar (Folha, 23/8/2009, E9):

Imprensa livre e regime autoritário não podem coexistir, e a razão é óbvia: a informação livre e a opinião independente são intoleráveis a quem se julga dono da verdade e inseguro quanto à legitimidade de seu poder. É verdade, porém, que não só os ditadores e os tiranos que odeiam a imprensa livre. As pessoas de um modo geral não aceitam ser criticadas, e os políticos, especialmente, uma vez que o bom êxito de sua carreira depende da opinião pública.”

Como ensina o renomado filósofo José Arthur Giannotti (Estadão, 16/8/2009, A11), “um jornal não pode ser confundido com um boletim científico ou um jornal oficial. Obtida uma informação interessante, cabe ao jornal publicá-la; obviamente, assumindo os riscos se ela for exagerada, se informar além do intervalo aceito pelos costumes e pela jurisprudência”.

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Tanto é assim que, por decisão majoritária e vinculante, o STF concluiu que é incompatível com a Constituição a ideia de um direito ao esquecimento que possibilite impedir, em razão da passagem do tempo, a divulgação de fatos ou dados verídicos em meios de comunicação. Segundo a corte, eventuais excessos ou abusos no exercício da liberdade de expressão e de informação devem ser analisados caso a caso, com base em parâmetros constitucionais e na legislação penal e civil, conforme Recurso Extraordinário (RE) 1.010.606, com repercussão geral reconhecida.

A institucionalização da censura

Com fins de estruturar outras formas de se reparar uma violação aos direitos da personalidade, outro não é o escólio da Constituição Federal, quando no artigo 5º, IV assegura a livre manifestação do pensamento e, logo em seguida, precisamente no artigo 5, V, assegura a todo aquele que foi ofendido, além da indenização pelos danos material, moral ou à imagem (desde que ocorridos), o direito de resposta na medida do agravo.

Inexiste direito absoluto, inclusive o de liberdade de expressão, via imprensa, artes ou redes sociais. Nesta senda, a sustentação do interesse público não pode ser um manto erigido pelos “informadores de plantão” em qualquer hipótese, de forma a legitimar a manutenção e repetição indefinida de fatos de origem criminosa, atrelados àquele que já cumpriu suas obrigações penais perante o Estado. Contudo, a censura prévia, o bloqueio ou o banimento de quem cometeu excesso ou abuso do direito de liberdade, também não é solução permitida pela Constituição ou em qualquer democracia real.

Ninguém pode admitir a liberdade sem responsabilidade. Que o direito de livre manifestação do pensamento seja uma carta branca para cometer crimes ou planejar e executar golpes de estado. Tanto é que, diante disso, em face de uma conduta abusiva e violadora dos direitos no exercício da liberdade de expressão e de informação há uma gama de medidas reparatórias e preventivas disponíveis em nosso ordenamento jurídico, que compreendem a indenização civil, direito de reposta e até mesmo responsabilização penal, além da atual Lei Geral de Proteção de Dados, como já ocorreu na história recente.

Já há norma para coibir excessos, abusos e crimes nesta seara, como se constata de tantas pessoas, perfis e grupos de comunicação já atingidos, com matérias, vídeos e até o próprio canal extinguido das redes, significando, claramente, que mais regulação é banir, de vez, a liberdade para os críticos dos titulares do poder regulatório e de sua aplicação, em detrimento de bem maior do povo e da democracia livre, pena, inclusive, do abuso de regulação da liberdade de expressão, que sempre descamba para o estabelecimento de uma ditadura.

Por estas razões, não há justificativa, de fato ou de direito, nem mesmo paralelo no mundo democrático para mais “regulação da mídia” e das “redes sociais”. Tal pretensão perpassa por uma nova linguagem para traduzir verdadeira e inadmissível institucionalização da censura, que vigorou no Brasil sob as mesmas bases e justificativas de hoje: proteger a nação, o povo e as instituições.

Autores

  • é advogado, professor, pós-doutor em democracia e direitos humanos pela Universidade de Coimbra e presidente do Instituto Brasileiro de Direito e Sustentabilidade (Ibrades).

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