Interesse Público

Improbidade administrativa: sem ultratividade da lei antiga, nulla poena sine legem

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8 de fevereiro de 2024, 8h00

Nos dias 10/9/2023 e 2/11/2023, publiquei duas colunas aqui nesta ConJur, que trataram do alcance da retroatividade da Lei 14.230/21, responsável pela reforma da Lei 8.429/92 – Lei de Improbidade Administrativa (LIA).

Em ambos os textos, procurei demonstrar que o julgamento do Tema 1.199 pelo Supremo Tribunal Federal tinha o condão de estender, para além dos atos de improbidade administrativa na modalidade culposa, a tese da retroatividade média ou mitigada [1], fazendo com que sua ratio decidendi servisse também para solucionar adequadamente outras controvérsias sobre a aplicação da nova lei no tempo, ainda que não pela sistemática processual da repercussão geral.

Abolitio criminis
Entre a publicação dos dois textos, a 2ª Turma do STF apreciou, em 24/10/2023, o ARE 1.346.594 (relator: ministro Gilmar Mendes), e decidiu que o artigo 11 da LIA, após o advento da nova lei, não mais admitia tipificação genérica (baseada em princípios), sem que houvesse simultaneamente capitulação da conduta nos incisos arrolados no caput do novo dispositivo, vencido apenas o ministro Edson Facchin [2].

De igual modo, em 7/11/2023, a 1ª Turma do STF julgou, por unanimidade, o RE 1.452.533 (relator: ministro Cristiano Zanin), considerando que o entendimento firmado no Tema 1.199 aplicar-se-ia ao caso de ato de improbidade administrativa fundado no revogado artigo 11, I, da Lei nº 8.429/1992, desde que não houvesse condenação com trânsito em julgado [3].

Spacca

As decisões da Suprema Corte utilizaram como base o Tema 1.199, para reconhecer a inviabilidade da tipificação de condutas, antes potencialmente ilícitas, em disposições revogadas da Lei 8.429/92, assegurando uma espécie de abolitio criminis proveniente das alterações trazidas pela Lei 14.230/21.

Princípios da tipicidade e não-ultratividade
A posição do STF é coerente com os conceitos técnicos de tipicidade [4] e não-ultratividade da lei antiga em matéria de direito punitivo [5]. É que sem determinação expressa do legislador, não há que se falar em tipificação de condutas que deixaram de ser enquadradas como atos de improbidade administrativa pela nova lei.

Multa civil e proibição de contratar
Esse mesmo raciocínio vale ao desiderato de esquadrinhar a categoria de sanções a que se vinculam os juízes no momento de aplicar a pena nas ações de improbidade administrativa, conforme previsão dos atuais incisos I, II e III do artigo 12 da Lei 8.429/92 (nova redação).

Tome-se como exemplo o artigo 12, III da LIA, com a redação dada pela Lei 14.230/21, que prevê:

“Art. 12. Independentemente do ressarcimento integral do dano patrimonial, se efetivo, e das sanções penais comuns e de responsabilidade, civis e administrativas previstas na legislação específica, está o responsável pelo ato de improbidade sujeito às seguintes cominações, que podem ser aplicadas isolada ou cumulativamente, de acordo com a gravidade do fato:

III – na hipótese do art. 11 desta Lei, pagamento de multa civil de até 24 (vinte e quatro) vezes o valor da remuneração percebida pelo agente e proibição de contratar com o poder público ou de receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios, direta ou indiretamente, ainda que por intermédio de pessoa jurídica da qual seja sócio majoritário, pelo prazo não superior a 4 (quatro) anos;”

 

Na comparação com a antiga redação, as condutas enquadráveis no artigo 11 da nova LIA, seja antes ou depois da Lei 14.230/21, tanto faz, passaram a ser punidas exclusivamente com multa civil e proibição de contratar ou receber benefícios fiscais ou creditícios do Poder Público, não, porém, com a perda da função pública e/ou a suspensão dos direitos políticos (anteriormente previstas) [6].

Conclusão
Se tais sanções foram excluídas do tipo, não podem mais servir de base para a punição dos réus, simplesmente porque as penas deixaram de existir como consequência da subsunção da conduta, nos moldes do artigo 11 c/c o artigo 12, III da LIA. É essa uma exigência curial da noção jurídica de tipicidade dos delitos e das penas.

Em outros termos, o que se quer significar é que, sem ultratividade da lei antiga, não é juridicamente viável aplicar sanções inexistentes aos réus. E a razão é simples e histórica, a invocar-se o legado de Cesare Beccaria (Dei delitte e delle pene, 1764): nulla poena sine lege.


[1] Conforme esclarece o ministro Roberto Barroso, com base na doutrina de José Carlos de Matos Peixoto (Curso de Direito Romano, Editorial Peixoto S.A., 1943, tomo I, p. 212-213), “a retroatividade máxima ocorre ‘quando a lei nova abrange a coisa julgada (sentença irrecorrível) ou os fatos jurídicos consumados’; a retroatividade média se dá ‘quando a lei nova atinge os direitos exigíveis, mas não realizados antes de sua vigência’; a retroatividade mínima sucede ‘quando a lei nova atinge apenas os efeitos dos fatos anteriores, verificados após a sua entrada em vigor’” (ADI 1.220, Relator(a): ROBERTO BARROSO, Tribunal Pleno, julgado em 19/12/2019, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-055  DIVULG 12-03-2020  PUBLIC 13-03-2020). Assim, a retroatividade mínima se diferencia das hipóteses em que ocorre a aplicação imediata da lei porque “enquanto nesta [retroatividade mínima] são alteradas, por lei, as consequências jurídicas de fatos ocorridos anteriormente – consequências estas certas e previsíveis ao tempo da ocorrência do fato –, naquela [aplicação imediata da lei] a lei atribui novos efeitos jurídicos, a partir de sua edição, a fatos ocorridos anteriormente.” (ADC 29, Relator(a): LUIZ FUX, Tribunal Pleno, julgado em 16/02/2012, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-127 DIVULG 28-06-2012 PUBLIC 29-06-2012 RTJ VOL-00221-01 PP-00011).

[2] LIMA NETO, Franciso Vieira. Improbidade administrativa e retroatividade: o ato doloso (conjur.com.br). Acesso em 05.02.2024.
Nesse mesmo sentido, já preconizava o Enunciado 4 do IBDA (Instituto Brasileiro de Direito Administrativo): “Somente constitui ato de improbidade administrativa que atenta contra os princípios da Administração Pública a ação ou omissão dolosa que viole os deveres de honestidade, imparcialidade e legalidade e se enquadre, concomitantemente, em um dos incisos do art. 11 da Lei nº 8.429/92.”

[3] LIMA NETO, Franciso Vieira. Improbidade administrativa e retroatividade: o ato doloso (conjur.com.br). Acesso em 05.02.2024.

[4] É precisa a síntese de Cláudio Brandão quanto à importância da conduta para o âmbito do direito penal (e para o direito punitivo), notadamente o conceito de tipicidade. “A conduta humana é a pedra angular da teoria do delito. É com base nela que se formulam todos os juízos que compõem o conceito de crime: tipicidade, antijuridicidade e culpabilidade. A tipicidade é a adequação da conduta com a norma; a antijuridicidade é o juízo de reprovação da conduta e a culpabilidade é o juízo de reprovação sobre o autor da conduta. (BRANDÃO, Cláudio. Teoria das condutas no Direito Penal. Revista de Informação Legislativa, n. 148 out./dez. 2000, Brasília, p. 89-95).

[5] A propósito da não ultratividade, colhe-se a seguinte passagem do voto vencedor do Ministro Alexandre de Moraes, ao decidir o recurso que deu origem ao Tema 1199:: “Ressalte-se, entretanto, que apesar da irretroatividade, em relação a redação anterior da LIA, mais severa por estabelecer a modalidade culposa do ato de improbidade administrativa em seu artigo 10, vige o princípio da não-ultratividade, uma vez que não retroagirá para aplicar-se a fatos pretéritos com a respectiva condenação transitada em julgado, mas tampouco será permitida sua aplicação a fatos praticados durante a sua vigência, mas cuja responsabilização judicial ainda não foi finalizada. […] Em virtude do princípio tempus regit actum, não será possível uma futura sentença condenatória com base na norma legal revogada expressamente”.

 

[6] Nas hipóteses do art. 11 da LIA não há que se falar em imputação de dano aos agentes punidos, embora o caput do art. 12 da LIA traga uma disposição genérica. As hipóteses de danos ao erário devem ser capituladas no art. 10 da LIA, valendo lembrar o afastamento pelo legislador da figura do dano in re ipsa, derivada de uma construção pretoriana do STJ que o legislador da Lei 14.230/21 fez questão de abolir do contexto das improbidades administrativas. Uma crítica ao dano in re ipsa como elemento caracterizador da improbidade administrativa, pode ser encontrada aqui na Conjur em FERRAZ, Luciano. Dano in re ipsa cria sem lei novo tipo de improbidade administrativa. Dano in re ipsa cria, sem lei, novo tipo de improbidade (conjur.com.br). Acesso em 06.02.2024.

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