Opinião

Defesa das terras agrícolas como exercício de soberania do Estado: Brasil e União Europeia

Autor

  • Andrea Marighetto

    é advogado doutor em Direito Comercial Comparado e Uniforme pela Universidade de Roma La Sapienza (Itália) e doutor em Direito summa cum laude pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

29 de abril de 2024, 13h18

O Estado pratica de forma exclusiva a soberania sobre o seu território, sendo que o território constitui elemento essencial do próprio Estado.

Spacca

Há-se Estado — ensinam os internacionalistas — quando uma organização de governo exercita de forma efetiva e independente a própria soberania sobre um povo que está localizado em um determinado território [1].

E, por território, indica-se não unicamente as terras (compreensivas de lagos e rios), mas também o mar territorial e o espaço acima ao território, seja terrestre e (ou) marítimo.

Em geral, é tudo o território que for incluído entre as fronteiras do Estado ou que constitui unidade jurisdicional ou administrativa.

Em tema de exercício de poder de governo, o Direito Internacional Consuetudinário — acrescenta-se — atribui ao Estado o Direito de exercer — em modalidade exclusiva — o poder de governo sobre a comunidade territorial própria, ou seja, sobre os indivíduos e os sues bens [2].

O território é assim relevante dentro do próprio conceito de Estado que é utilizado por varias áreas do Direito para definir conceitos jurídicos inerentes à administração e organização da Justiça em geral, como — por exemplo — no caso do Direito Penal, o Principio da Territorialidade é utilizado qual critério identificativo e funcional para definir e delimitar o âmbito “territorial” de aplicação da norma penal e, consequentemente, definir o que é considerado crime e (ou) pena dentro do território de um  determinado Estado.

A Constituição brasileira de 1988 indica a soberania do pais qual fundamento do Estado democrático do Direito e da sua independência e autonomia nacional [3]. A soberania do Estado é a “qualidade jurídica” que exprime o poder do imperium do Estado moderno [4].

O conceito de soberania possui principalmente dois significados: (i) indica o Ordenamento Jurídico Estatual no seu complexo, no sentido de indicar a originalidade do Ordenamento Estatual, qual fonte de tudo o sistema jurídico interno; (ii) indica a pessoa jurídica do Estado, e a absoluta supremacia do Estado — no seu poder de imperium — verso todas as outras pessoas, físicas e jurídicas, que agem dentro do seu território.

Assim, a defesa dos elementos do Estado, como — por exemplo — a defesa do seu território concretiza de jure a defesa da própria Soberania do Estado. Defesa que não inclui exclusivamente contra invasões físicas por parte de outros Estados etc., mas também formas de invasões estratégicas no território nacional por parte de pessoas físicas e (ou) jurídicas estrangeiras aptas a modificar  e (ou) a influir e condicionar a ordem econômica do pais [5].

Cabe ao Estado fiscalizar o respeito — por parte da iniciativa privada — do correto funcionamento da ordem econômica do pais. O Estado deve, portanto, editar normas e disciplinas para que os princípios conteúdos — por exemplo — no artigo 170 da Constituição sejam respeitados e implementados de acordo com os interesses do Estado.

Entre as demais discussões inerentes à esta importante temática, se destaca a necessidade de “melhor disciplinar” o aval pelo Congresso da venda de terras agrícolas a estrangeiros, tendo em vista a possibilidade de perda de controle sobre recursos estratégicos e de segurança nacional pelo Estado.

Vejam-se, neste sentido, entre os demais dispositivos normativos, as Leis nº 5.709 de 1971, nº 8.629 de 1993, o decreto nº 74.965 de 1974 e a instrução normativa do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) nº 88 de 2017 [6].

Jurisprudência

Sobre o ponto, vale destacar a recentíssima sentença da 3ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4) que confirmou que a aquisição de áreas rurais brasileiras por pessoas jurídicas estrangeiras ou brasileiras constituída de capital estrangeiro deve ser previamente submetida à apreciação do Incra e (ou) do Congresso nos termos da Lei nº 5.709 de 1971 [7]. O tribunal afirmou assim a plena soberania do Brasil sobre os seus bens considerados “estratégicos” como as terras rurais ou agrícolas, e remarcou o seu poder de imperium sobre essas.

As terras e as empresas agrícolas ou do assim chamado “agronegócio” são consideradas — desde sempre — “bens estratégicos”! Não por nada, quando se discute sobre a disciplina a ser aplicada às terras rurais ou agrícolas, há a se discutir necessariamente sobre temas considerados fundamentais como alimentação, meio ambiente, trabalho, desenvolvimento.

Em particular, a tutela do meio ambiente é — hoje — entendida como “necessária” e “funcional” ao fim de presidiar a durabilidade das condições indispensáveis para a sobrevivência dos sistemas socioecológicos de cada país, garantindo a tutela da vida dos indivíduos, das sociedades e dos ecossistemas em geral.

União Europeia

Em uma perspectiva comparatista, é certamente importante evidenciar o caso tudo sui generis da União Europeia, em relação à qual é preciso diferenciar a legislação interna a ser aplicada entre países membros, e as legislações nacionais de cada estado-membro [8].

Na UE em geral — como destacado pela Comunicação 2017/C 350/05 — não há uma legislação de “Direito Derivado Europeu [9]” que discipline a aquisição de terras agrícolas, sendo que a competência é de cada estado-membro, que pode — a sua discrição — disciplinar os respectivos mercados fundiários, mas sempre no respeito dos princípios fundamentais do Tratado da União Europeia (TFUE [10]) [11].

Reprodução

Em particular, a União Europeia, para garantir o respeito da livre circulação dos capitais (a qual juntamente à livre circulação de pessoas, à livre circulação de bens e à livre circulação de serviços constituem as quatro liberdades fundamentais que fundamentam a própria estrutura da UE [12]), “convidou” os países aderentes (como, por exemplo, da ultimo, Hungria, Eslováquia, Letônia, Lituânia, Bulgária e Romênia) para alterar a legislação nacional de forma a limitar as restrições sobre a aquisição das terras agrícolas entre países da União Europeia, após do período transitório do processo de adesão.

Em outras palavras, isso significa que dentro da UE e entre países-membros em principio o Direito de adquirir, gerir e alienar terras agrícolas é regulamentado pelo principio da livre circulação dos capitais, como previsto e regulado pelos artigos 63 e sucessivos do TF-UE [13].

Mas a experiência ensina nula regula sine exceptione: toda regulação há exceção

É, de fato, importante evidenciar que a jurisprudência da Corte de Justiça Europeia (TJ-UE), de um lado, reafirmou (e reafirma) a importância de defender a Politica Agrícola Comunitária (PAC) mas, doutro, reconheceu (e reconhece) que determinados objetivos de politica pública nacional (de cada estado-membro) podem justificar restrições ao “principio de livre circulação de capitais” e impor limitações aos investimentos e às aquisições de terras agrícolas dos países da UE.

As linhas interpretativas consolidadas da Corte [14], em relação às exceções admitidas ao principio da livre circulação de capitais, e no especifico à aquisição das terras rurais — pelas legislações nacionais — podem se resumir em permitir a restrição nacional quando a politica e o interesse nacional deste estado-membro pretende:

(i) aumentar as dimensões das empresas agrícolas, de forma a se tornarem rentáveis, para impedir a especulação;
(ii) manter a população agrícola e consentir o desenvolvimento das empresas economicamente saudáveis etc.;
(iii) preservar uma forma tradicional de utilização das terras agrícolas em condução direta;
(iv) manter, aos fins de território e no interesse geral, uma população permanente e uma atividade econômica autônoma;
(v) defender o território nacional nas áreas declaradas de importância militar e tutelar os interesses militares contra riscos reais, concretos e graves. É importante lembrar que — sendo a aquisição das terras não disciplinada por um especifico Direito Derivado Europeu — a jurisprudência consolidada da Corte opera definindo, caso por caso, as medidas restritivas no contesto concreto e especifico.

Em síntese, a aquisição de terras em países-membros da UE é regulada pelo “princípio da livre circulação dos capitais” ex artigo 63 do TF-UE. Todavia, são admitidas pela jurisprudência da Corte Europeia exceções e restrições à aplicação do citado principio, quando a Corte reconhece a existência de um interesse e (ou) de uma politica nacional que precisam ser tutelados [15].

Em geral, as restrições adotadas pelos diferentes estados-membros podem ser de vários tipos. Entre as demais significativas, é importante destacar:

(i) a exigência de autorização administrativa preliminar à aquisição das terras agrícolas [16] (igualmente previsto pelo Brasil — veja-se o sobre citado caso);
(ii) o respeito do direito de prelação a favor de terceiros ou dos agricultores;
(iii) a intervenção por parte das autoridades estatais sobre o controle dos preços [17];
(iv) a imposição da obrigação de cultivar as terras agrícolas direta e pessoalmente;
(v) a necessidade de possuir determinadas qualificações técnicas em matéria agraria;
(vi) a existência de específicas obrigações de residência [18];
(vii) a proibição a vender a pessoas jurídicas;
(viii) a imposição de aplicar maximais aplicados às aquisições;
(ix) imposição de privilégios fiscais a adquirentes locais; e
(x) a imposição da condição de reciprocidade.

 

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[1] DALLARI, Dalmo. Elementos de teoria geral do Estado. São Paulo: Saraiva, 2015; LEWANDOWSKI, Enrique Ricardo. Globalização, Regionalização e Soberania. São Paulo: Ed. Juarez de Oliveira, 2004; BOBBIO, Norberto –  Estado Governo e Sociedade. São Paulo: Paz e Terra, 1992; KELSEN, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado.  São Paulo: Martins Fontes, 1995.

[2] TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. Princípios do Direito Internacional Contemporâneo. Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, 2017; REZEK, Francisco. Direito Internacional Publico. Curso Elementar. São Paulo: Saraiva, 2022; MAZZUOLI. Valério de Oliveira. Curso de Direito Internacional Publico. São Paulo: RT, 2019;

[3] Cf. sobre o conceito e historia da Soberania, https://www.conjur.com.br/2009-mai-12/conceito-soberania-principais-fundamentos-estado-moderno/

[4] DUGUIT, Léon. Leçons de Droit Public Général. Paris : Boccard, 1926.

[5] Sobre a definição de Ordem Econômica, veja-se GRAU, Eros Roberto. A Ordem Econômica na Constituição de 1988 (Interpretação e Critica), Editora Jus Podivm, 2023.  MELLO, Celso Antônio Bandeira de. O Estado e a Ordem Econômica. Em Revista de Direito Administrativo, 143.

[6] O artigo 5º da Instrução Normativa do Incra nº 88 do ano de 2017 é clara ao dizer que: “A aquisição ou arrendamento de imóvel rural por pessoa jurídica estrangeira ou pessoa jurídica brasileira a ela equiparada, só poderá exceder a 100 (cem) módulos de exploração indefinida, em área contínua ou descontínua, mediante autorização do Congresso Nacional, nos termos do art. 23 da Lei nº 8.629, de 25 de fevereiro de 1993”.

[7] https://www.conjur.com.br/2024-abr-09/trf-4-mantem-decisao-que-suspendeu-transferencia-de-acoes-da-eldorado/

[8] Cf. https://e-justice.europa.eu/6/PT/national_legislation

[9] Sobre a definição de Direito Derivado ou Secundário se veja:  https://e-justice.europa.eu/3/PT/eu_law

[10] Cf. https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/?uri=celex%3A12012E%2FTXT

[11] Cf. Comunicação interpretativa da Comissão sobre a aquisição de terras agrícolas e o direito da União Europeia (2017/350/05). Vale, todavia, a pena de frisar a adoção do Parlamento Europeu da Relação sobre a situação relativa à concentração das terras na EU 2016/2141 (INI).

[12] Cf. https://european-union.europa.eu/principles-countries-history/history-eu/1990-99_pt

[13] Veja-se, também a jurisprudência da Corte Europeia sobre o ponto, casos C-370/05, C-452/01 e etc.

[14] Vejam-se os casos C-182; C-452/01; C-370/05; C-302/97; C-519/99 – C-524/99; C-526 – 540/99; C-423/98 e etc.

[15] Veja-se o paragrafo acima.

[16] Veja-se o caso C-452/01.

[17] Veja-se o caso C-577/11.

[18] Veja-se o caso C-11/07.

Autores

  • é advogado, doutor em Direito Comercial Comparado e Uniforme pela Universidade de Roma La Sapienza (Itália) e doutor em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). 

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