Distorção de significado

Conceito de soberania sofre divergências constantes

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12 de maio de 2009, 6h30

O conceito de soberania encontra-se explicitamente consolidado desde os idos do século XVI, constando ao longo dos anos na lista de temas que mais atraiu o interesse de teóricos de diferentes ramos da ciência.

Tal diversidade de teóricos de diferentes escolas interessados no estudo do tema acabou por prejudicar uma conceituação precisa do assunto, gerando distorções ditadas pelos interesses pertinentes à época do estudo.

Nos dias atuais, observa-se que a expressão “soberaniatem sido utilizada, em muitas ocasiões, como sendo uma justificativa do posicionamento de partes antagônicas em determinada lide, onde cada uma clama ser soberana em suas atitudes, não devendo, portanto, prestar satisfações daquilo que faz ou deixa de fazer.

Neste sentido é a observação de Kaplan e Katzenbach, de que no Direito Internacional não há pior expressão do que soberania, parecendo-lhes que o uso do termo de maneira imprecisa e indisciplinada se deva ao fato de o mesmo “haver se tornado um ‘símbolo altamente emocional’, amplamente utilizado para conquistar simpatias em face das tendências nacionalistas que vêm marcando nossa época”.¹

Entretanto, apesar das divergências constantes nas interpretações dadas ao longo do tempo, o conceito de Soberania é um dos principais fundamentos do Estado Moderno.

A ideia de soberania continuava obscura até o século XIII, quando a concentração dos Poderes na figura dos Monarcas resultou no surgimento do conceito de Soberano. Contudo, tal ideal de soberano ainda era relativo, uma vez que as relações de suserania e vassalagem, decorrentes da concessão de terras do Rei aos Senhores Feudais, ocasionavam a descentralização do poder, uma vez que estes últimos comandavam o total funcionamento do feudo segundo as tradições e costumes que julgava pertinente.

A Unificação plena dos poderes na figura do rei só ocorreu no final da idade média, com a profissionalização dos exércitos reais, tornando desnecessários os préstimos militares devidos pelos senhores feudais ao monarca e possibilitando um controle maior de todos os aspectos decorrentes da administração do território.

Assim, com o advento da efetiva concentração dos poderes Legislativo, Executivo e Judiciário nas mãos do monarca, foi possível aos teóricos amadurecer a idéia de soberania. Anos mais tarde, mas ainda neste contexto de concentração dos poderes, Jean Bodin publicou a primeira obra que desenvolveu o conceito de soberania de maneira sistemática. Lex Six Livres de la République, datado de 1576, traz a concepção de Bodin para o que haveria de ser a autoridade real, conceituando a soberania da seguinte forma:

Soberania é o poder absoluto e perpétuo de uma República, palavra que se usa tanto em relação aos particulares quanto em relação aos que manipulam todos os negócios de estado de uma República.”2

Ressalte-se que a expressão República é incorporada ao texto com o significado moderno de estado.

Com o passar dos anos diversos outros pensadores também trouxeram suas interpretações, divergindo dos conceitos trabalhados por Bodin, dentre eles Thomas Hobbes, integrante da chamada “escola do contrato social”, que acreditava que a soberania decorria da renúncia do poder por parte do povo, que o transferia a uma única pessoa, devendo obedecer às determinações desta pessoa, desde que os demais também o fizessem.

Aproximadamente dois séculos após a publicação de Bodin, Jean-Jacques Rousseau trazia à lume sua obra mais celebrada: O Contrato Social. Na qual dava atenção considerável ao tema da soberania. Entretanto, diferentemente de Bodin e Hobbes, que atribuíam a soberania à figura de um único governante, Rousseau acreditava que a titularidade da mesma era do povo, dizendo, ainda, que suas características fundamentais são a inalienabilidade (por se tratar de um exercício da vontade de todos) e a indivisibilidade (uma que vez que a vontade só é considerada geral se, e tão somente se, houver a participação de todos).

Jellinek via a Soberania como sendo a propriedade do poder do Estado de se auto-obrigar e se autodeterminar. Para esta corrente doutrinária, chamada de Teoria da Autolimitação, a soberania:


“É uma vontade que encontra em si própria um caráter exclusivo de não ser acionada senão por si mesma, uma vontade, portanto, que se autodetermina, estabelecendo, ela própria, a amplitude de sua ação. Tal vontade soberana não pode ser, jamais, comprometida por quaisquer deveres diante de outras vontades. Se tem direito, não tem obrigações. Se as tivesse, estaria subordinada a outra vontade e deixaria de ser soberana.(…) A soberania significa, assim, um poder ilimitado e ilimitável, que tenderia ao absolutismo, já que ninguém o poderia limitar, nem mesmo ele próprio.”3

Anos mais tarde, e em sentido diverso ao de Jellinek, o jurista francês Pierre Marie Nicolas León Duguit ousou negar a existência da soberania, afirmando que seus limites esbarram em um dilema: ou o Estado é soberano, determinando-se tão somente por sua vontade, não existindo regra que limite o seu poder, ou nele recaia alguma imposição legal que o limite.

Na primeira hipótese, de acordo com as ideias de Duguit, a ausência de limites acarretaria na supressão da vontade dos indivíduos da sociedade, já na segunda a submissão imposta ao Estado faria com que o mesmo deixasse de ser soberano. Ademais, e ainda em rota de colisão com as teorias publicadas anteriormente, Duguit aprofundou-se na esfera do surgimento do poder soberano, argumentando que se tal poder é uma forma impassível de contestação, o mesmo só pode ser oriundo de uma força divina, o que pode caracterizar a onipotência do Estado e facilitar o abuso de poder.

Por outro lado, se o poder soberano emana do povo, conforme o entendimento de Hobbes, não há elemento probatório suficiente para comprovar que a vontade coletiva deve ser imposta à individual, uma vez que mesmo sendo considerada coletiva não deixa de ser humana, e uma vontade humana não pode se sobrepor à outra.4

Desta forma, pode-se perceber que as variações do conceito de soberania estão intimamente ligadas à evolução política da sociedade. Porém, mesmo com o passar dos anos, tais variações permanecem ligadas a duas ideias distintas, pormenorizadas pelo celebrado professor Dalmo de Abreu Dallari:

“(…) apesar do progresso verificado, a soberania continua a ser concebida de duas maneiras distintas: como sinônimo de independência, e assim tem sido invocada pelos dirigentes dos Estados que desejam afirmar, sobretudo ao seu próprio povo, não serem mais submissos a qualquer potência estrangeira; ou como expressão de poder jurídico mais alto, significando que, dentro dos limites da jurisdição do Estado, este é que tem o poder de decisão em última instância, sobre a eficácia de qualquer norma jurídica”.5

Ademais, em se tratando das características da Soberania a grande maioria dos Autores baseia-se nas ideias de Rousseau, afirmando tratar-se de um poder de natureza “una, indivisível, inalienável e imprescritível”. Una porque não se pode admitir dentro do mesmo Estado a existência de duas soberanias distintas. Indivisível porque deve ser aplicado à totalidade dos fatos havidos dentro do Estado, não sendo cabível a existência de diversas partes separadas da mesma soberania. Inalienável, pois aquele que a detêm deixa de existir quando fica sem ela. E é imprescritível porque sua superioridade seria contestada caso houvesse algum prazo de duração previamente determinado.

Conceito moderno de soberania estatal e seus aspectos no Direito Internacional

A Constituição brasileira de 1988 contempla a questão da soberania por meio de afirmações e considerações, afirmando-a como fundamento do Estado Democrático de Direito e forma de independência nacional, além de mencioná-la como sendo um princípio da ordem econômica.

Ao longo da história, o conceito de soberania sempre foi alvo de discussões, palco de divergências dentre os mais renomados pensadores do assunto. Entretanto, tem-se que os estudos destinados à conceituação da soberania, seja esta referente a um Estado Democrático ou a um determinado Reino, quase em sua totalidade eram investidas do termo “ilimitado”, ou seja, a história nos ensina que o poder, para ser soberano, necessitava ser desprovido de qualquer tipo de fator limítrofe ao seu exercício, caso contrário o mesmo deixava de ser soberano.


O conceito de soberania trazido à lume por Blackstone entra em concordância com o raciocínio acima, quando diz que “soberania é a autoridade suprema, irresistível, absoluta e ilimitada”.6 Com passar dos anos houveram algumas mudanças significativas nas interpretações acerca do termo, convertendo-se a idéia de poder ilimitado em poder exclusivo e independente, tornando o conceito de Bodin incompatível com o Estado moderno.

O Dicionário Houiass enumera diversas acepções do termo “soberania”, interessando para o presente estudo a que segue:

“Soberania. Substantivo Feminino. Acepções (…) 2.propriedade ou qualidade que caracteriza o poder político supremo do Estado como afirmação de sua personalidade independente, de sua autoridade plena e governo próprio, dentro do território nacional e em suas relações com outros Estados.”7

Desta forma observa-se a concepção da soberania como sendo a “afirmação de sua personalidade independente”, ressaltando-se a autoridade plena dentro do território nacional. Tendo em vista a afirmação da plenitude da autoridade estatal limitada ao âmbito territorial, é importante realizar algumas considerações acerca do território estatal.

A existência de um fator limítrofe ao poder soberano parece conflitar com o conceito de soberania, sobretudo àquele trabalhado pelos pensadores clássicos, tais como Duguit. Entretanto, esta delimitação do poder soberano tornou possível assegurar a sua eficácia e estabilidade, sendo o território reconhecido por diversos autores como um componente indispensável para a existência do Estado.

A concepção trazida à lume por Hans Kelsen também reconhece a necessidade delimitação territorial, porém não a vislumbra como sendo um componente do Estado:

“O território não chega a ser, portanto, um componente do Estado, mas é o espaço ao qual se circunscreve a validade da ordem jurídica estatal, pois, embora a eficácia de suas normas possa ir além dos limites territoriais, sua validade como ordem jurídica estatal depende de um espaço certo, ocupado com exclusividade.” 8

Sendo assim, podemos dizer, de maneira sintética, que existem quatro posições fundamentais no tocante a discussão do relacionamento do Estado com o seu território. A primeira delas atenta para a existência de uma relação de domínio, reconhecendo que o Estado é o proprietário do território, podendo dele fruir, de maneira absoluta e exclusiva.

Já a segunda afirma a impossibilidade do reconhecimento do direito de propriedade do Estado, por este ser conflitante com as propriedades particulares. Considerando o poder exercido pelo Estado no território em geral como sendo, nas palavras de Dallari, um “domínio eminente”, e o poder exercido pelos particulares como sendo um “domínio útil”.

Por outro lado, Jellinek, ao se opor a estas teorias, afirmou a inexistência de uma relação de domínio, uma vez que o domínio exercido pelo Estado expressa o poder do império que, por sua vez, recai diretamente sobre os indivíduos. Desta forma, o direito do Estado ao território é mero reflexo do poder exercido sobre as pessoas.

Uma quarta posição, defendida por Ranelletti, ensina que o território é o espaço no qual se encontra o Estado e onde este exerce seu poder de império. Poder este que recai sobre todas as pessoas e coisas que se encontram no interior deste território9, afastando a ideia de Jellinek de que o poder de império recai somente sobre os indivíduos. Por fim, embasando-se nas posições doutrinárias acima mencionadas, podemos tecer algumas conclusões gerais acerca do tema, afirmando que inexiste Estado sem território, pelo fato deste ser elemento constitutivo necessário daquele; que a ação soberana do Estado limita-se a delimitação geográfica onde este se encontra; e que o território é objeto de direitos do Estado.

Superada a discussão acerca do território estatal, voltemos a conceituação atual da soberania estatal e sua verificação no Direito Internacional. Pode-se dizer que o Direito Internacional vislumbra a análise das relações jurídicas pertinentes à comunidade internacional, não se limitando ao ordenamento jurídico de cada Estado, mas sim vislumbrando uma correlação entre eles.


Acerca da interpretação doutrinária do Direito Internacional, nos ensina o professor Miguel Reale:

“Fazendo abstração de outras doutrinas, podemos dizer que duas delas predominam quanto à compreensão do Direito Internacional, a saber, a monista, que subordina toda experiência jurídica ao ordenamento internacional; e a dualista, que afirma a existência de dois ordenamentos complementares, o dos Estados e o ordenamento internacional.”10

Para Kelsen, defensor da teoria monista, o direito interno deriva do direito internacional, formando com este uma ordem jurídica única onde as normas internas são hierarquicamente inferiores às normas externas comuns aos Estados.

Tratando a questão da soberania de forma obviamente mais aprofundada que aquela apresentada pelo pai-dos-burros, o renomado jurista Celso Ribeiro Bastos, discorre sobre o tema da seguinte forma:

“A soberania se constitui na supremacia do poder dentro da ordem interna e no fato de, perante a ordem externa, só encontrar Estados de igual poder. Esta situação é a consagração, na ordem interna, do princípio da subordinação, com o Estado no ápice da pirâmide, e, na ordem internacional, do princípio da coordenação. Ter, portanto, a soberania como fundamento do Estado brasileiro significa que dentro do nosso território não se admitirá força outra que não a dos poderes juridicamente constituídos, não podendo qualquer agente estranho à Nação intervir nos seus negócios.”11

Ressalte-se o seguinte fato: Para que um Estado seja aceito como ente soberano ele depende de quatro elementos essenciais: um território, uma população, um governo que exerça poder sobre este território e a população e o reconhecimento (como Estado) pelos outros Estados-Nações, constituintes da sociedade internacional.12

A lição acima apresentada nos mostra que o poder estatal não pode se limitar às fronteiras geográficas que estabelecem o território, se fazendo também necessário o reconhecimento do poder soberano dos demais Estados para que haja, em caráter recíproco, o reconhecimento da sua própria condição de supremacia, possibilitando uma melhor integração econômica com demais atores do Direito Internacional.

No que tange ao desenvolvimento econômico, salientamos que em um mundo como o atual, em que há um alto grau de integração econômica entre os Estados, praticamente não existe a possibilidade de uma Nação atingir um grau de desenvolvimento satisfatório sem fazer parte desta rede econômica global.

Esta globalização, que resulta no desenvolvimento da tecnologia, a expansão das comunicações e o aperfeiçoamento do sistema de transportes, tem permitido a integração de mercados em velocidades avassaladoras e tem propiciado uma intensificação da circulação de bens, serviços, tecnologias, capitais, culturas e informações em escala planetária. Provocando, no entender de José Eduardo Faria, a desconcentração, a descentralização e a fragmentação do poder.13

Como não poderia deixar de ser, esta fragmentação não ocorre de maneira homogênea entre os diferentes países. Em decorrência de diversos fatores, principalmente econômicos, alguns Estados “são mais soberanos que os outros”.

Exemplo clássico desta disparidade do poder estatal é aquele observado nos Estados Unidos da América, que afirmam categoricamente sua soberania ao desrespeitar convenções internacionais sobre os mais diversos temas e utilizam-se do seu alto grau de desenvolvimento econômico para exigir determinadas condutas das nações cujo grau de desenvolvimento é nitidamente inferior.

Sendo assim, o estreitamento das relações em prol do processo de globalização acaba ocasionando a perda da essência da soberania nacional, pois vincula esta ao desenvolvimento político e econômico do Estado. Entretanto, há nos dias atuais verdadeiros remédios para esta “redução” do poder soberano. A criação de blocos econômicos, tais como o Mercosul e a União Européia resultam em uma “soma” de soberanias voltadas a um interesse comum dos Estados-membros, permitindo aos Estados menos desenvolvidos exercer maior influência no âmbito internacional.

Ademais, dia após dia o princípio de igualdade soberana assume uma importância cada vez maior na esfera das relações jurídicas internacionais, reconhecendo os diferentes graus de desenvolvimento e a consequente desigualdade entre os Estados. Buscando a aplicação de um tratamento diferenciado nas questões econômicas e sociais.14

Diante disto, boa parte da doutrina atual entende haver uma necessidade de se adequar o conceito de soberania a um mundo globalizado, discutindo se este deve ser integralmente reformulado ou meramente alterado.

Bibliografia

1. Morton A. Kaplan e Nicholas de B. Katzenbach, Fundamentos Políticos de Direito Internacional, pág. 149.
2. DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. Saraiva, 1983. p.68.
3. PAUPÉRIO, Arthur Machado. Teoria Democrática do Poder: Teoria Democrática da Soberania. Rio de Janeiro: Forense, 1997. 3 ed., vol.2, p.97.
4. DUGUIT, Leon. Traité de Droit Constitutionnel. J. Bière: Bordeaux, p. 551-592, 3ed. vol.1, 1927, apud DALLARI, Dalmo de Abreu. Op.cit. p.67
5. DALLARI, Dalmo de Abreu. Op.cit.p. 74.
6. PAUPÉRIO, Arthur Machado. Op. Cit, p.6.
7.HOUIASS, Dicionário. verbete Soberania.
8. KELSEN, Hans. Teoría General Del Estado. México: Nacional, 1959. p. 181
9. RANELLETTI, Oreste. Istituzioni di Diritto Pubblico. Milão, Giuffrè, 1955. p. 55 e 56
10. REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito. São Paulo: Saraiva, 2003. p. 348.
11. BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 1994.
12. JO, Hee Moon; SOBRINO, Marcelo da Silva. Soberania no Direito Internacional. Brasília [s.n.], jul./set. 2004.
13. FARIA, José Eduardo. O Direito na Economia Globalizada. São Paulo: Malheiros, 1999, p.07.
14. JO, Hee Moon. op.cit. p.27.

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