Opinião

União Europeia estabelece regras mais rígidas para operações da Shein

Autores

  • Carolina Xavier Santos

    é mestranda em Direito Constitucional pela Universidade de Lisbo pesquisadora no Legal Informatics Laboratory (DTI-BR) e no Instituto Legal Grounds e advogada.

  • Maria Gabriela Grings

    é mestre e doutora em Direito processual pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) bacharel em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) coordenadora do Legal Grounds Institute e advogada.

  • Samuel Rodrigues de Oliveira

    é doutorando em Teoria do Estado e Direito Constitucional pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) coordenador do Legal Grounds Institute e advogado.

3 de maio de 2024, 17h22

Conhecida e querida de milhões de brasileiros, a Shein é uma varejista chinesa online, com uma média de mais de 28 milhões de usuários mensais no Brasil [1]. Na Europa, esse número recentemente chegou a 45 milhões, levando a Comissão Europeia, no dia 26 de abril, a designá-la formalmente como uma “plataforma online de grande porte (ou Vlop, do inglês “very large online platform”), nos termos do Digital Services Act (DSA).

Divulgação

O DSA é uma das mais recentes legislações da União Europeia para regulação de plataformas digitais e uma das grandes apostas do continente para o novo cenário digital, em que número cada vez maior de interações sociais e comerciais (envolvendo bens e serviços) se desenvolvem por meio da Internet.

O DSA tem como objetivo geral criar um ambiente online mais seguro para os usuários, definir responsabilidades claras para as plataformas que atuam online, além de enfrentar desafios inerentes a esse ambiente, como a venda de produtos ilegais, discursos de ódio e calcados em desinformação. Por isso, estabelece novas regras para as plataformas, de acordo com o seu tamanho em termos de números de usuário, mas também fixando deveres de transparência e sujeição às autoridades locais e ao recém-criado Comitê Europeu de Serviços Digitais para todas.

A caracterização da Shein como uma Vlop — isto é, uma plataforma que possui mais de 10% dos 450 milhões de consumidores europeus como usuários — pode até ser surpreendente, já que a classificação é usualmente vislumbrada como incidente para as grandes redes sociais (como Facebook, TikTok etc.) e o maior buscador global, o Google, sem referência a uma rede varejista de roupas, calçados e produtos de consumo em geral.

Todavia, além de preencher o requisito quantitativo, a Shein está sujeita às normas do DSA por outro motivo, menos discutido nos debates brasileiros sobre o assunto. Isso porque uma das metas do DSA é a prevenção à divulgação de conteúdos ilícitos, o que abarca não apenas aqueles que atinjam direitos fundamentais de terceiros, como honra e privacidade, mas também a oferta de produtos em desconformidade com os parâmetros legais locais, o que abrange produtos falsificados ou nocivos [2].

As Vlops possuem obrigações adicionais em comparação com as outras modalidades de plataformas: devem avaliar e adotar medidas de diminuição de riscos sistêmicos relacionados a conteúdos ilegais, violação de direitos fundamentais, segurança pública e processos eleitorais, violência de gênero, saúde pública, proteção de menores e bem-estar físico.

Da mesma forma, deverão se submeter a auditorias externas independentes anuais, compartilhar os dados apurados com as autoridades locais e o Comitê Europeu e publiquem relatórios semestrais de transparência.

Assim, após sua designação como uma Vlop, a Shein terá que cumprir as regras mais rigorosas estabelecidas no DSA a partir de de quatro meses após sua notificação, ou seja, até o final de agosto deste ano. Essas obrigações adicionais se dividem em três eixos principais: maior vigilância quanto à comercialização de produtos ilegais, maiores medidas de proteção ao consumidor e novas medidas de transparência e accountability quanto à moderação do conteúdo postado em sua plataforma.

No que diz respeito à maior diligência sobre produtos ilegais, a gigante do comércio eletrônico terá que analisar os riscos sistêmicos [3] específicos relacionados à disseminação de conteúdo e produtos ilegais e decorrentes do design ou funcionamento de seu serviço e seus sistemas relacionados. A Shein deverá também implementar medidas de mitigação para abordar riscos, como a listagem e venda de mercadorias falsificadas, produtos inseguros e itens que infringem direitos de propriedade intelectual.

Spacca

Tais medidas podem incluir a adaptação dos termos de serviço, aprimoramento do design da interface do usuário para melhorar a denúncia e detecção de listagens suspeitas, melhoria dos processos de moderação para remover rapidamente itens ilegais e refinamento de seus algoritmos para evitar a promoção e venda de produtos proibidos.

Os processos internos, testes, procedimentos de documentação e supervisão de quaisquer atividades vinculadas à detecção de riscos dentro da plataforma também deverão ser melhorados. Tudo isso deverá ser comprovado por meio do envio de relatórios à Comissão Europeia — primeiro, dentro de quatro meses após a notificação da designação formal. E, a partir daí, anualmente.

Além disso, os relatórios anuais de avaliação de riscos da Shein devem analisar especificamente quaisquer potenciais efeitos adversos à saúde e à segurança dos consumidores, com ênfase no bem-estar físico e mental de usuários menores de idade. A plataforma — incluindo interfaces de usuário, algoritmos de recomendação e termos de serviço — deverá ser estruturada de modo a mitigar e prevenir riscos à segurança e bem-estar das pessoas, incluindo medidas para proteger os consumidores de adquirir produtos inseguros ou ilegais, com foco especial em prevenir a venda e distribuição de produtos que possam ser prejudiciais a menores. Especificamente neste ponto, é recomendado que haja a a incorporação de sistemas eficientes de confirmação de idade para impedir a compra de itens que possuam algum tipo de restrição etária.

Finalmente, devido às regras de transparência e responsabilidade atribuídas às VLOps, a Shein precisará garantir que suas avaliações de risco e conformidade passem por auditorias externas e independentes, o que deve ocorrer anualmente. Já os relatórios de transparência sobre decisões de moderação de conteúdo e gestão de riscos deverão ser publicados a cada seis meses. Além disso, a empresa deverá manter um repositório de todos os anúncios veiculados em sua interface, bem como garantir acesso a dados publicamente disponíveis a pesquisadores, incluindo pesquisadores avaliados designados pelos coordenadores de serviços digitais da União Europeia.

Regulação de tecnologias

Nos últimos anos, a União Europeia tem se sobressaído na corrida pela regulação de novas tecnologias, sobretudo das plataformas digitais, tendo aprovado legislações que vão desde o Regulamento Geral de Proteção de Dados (GDPR), em 2016, até o recente pacote regulatório do qual são parte o Digital Services Act (DSA) e o Digital Markets Act (DMA). Ao fazê-lo, o bloco tem também, na prática, fixado o critério regulatório global adotado pelas empresas que atuam no ambiente online.

Isso ocorre devido ao chamado “efeito Bruxelas”, que, como ensinou Anu Bradford, refere-se a uma espécie de exportação dos standards de proteção da UE a outras jurisdições por meio de forças de mercado [4]. E assim como tal fenômeno influenciou a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) no Brasil, o DSA tem servido de forte inspiração para relevantes projetos nacionais, como o PL 2.630/2020 e a proposta de reforma do novo Código Civil, ambas trazendo maiores obrigações aos provedores de serviços online.

Diante disso, enquanto não haja um regramento nacional específico a respeito das responsabilidades e obrigações desses atores, é de se esperar que a definição da Shein como plataforma online de grande porte no contexto europeu impacte, ainda que indiretamente, o mercado e o usuário brasileiros, elevando o standard de proteção não só em relação a eventual conteúdo ilegal e a moderação deste conteúdo, mas, principalmente, em relação à comercialização de produtos ilegais ou nocivos ao consumidor.

 


[1] Shein domina audiência digital de moda no Brasil | Blogs CNN. Disponível em: <https://www.cnnbrasil.com.br/blogs/debora-oliveira/economia/shein-domina-audiencia-digital-de-moda-no-brasil/>. Acesso em: 26 abr. 2024.

[2]   A definição de conteúdo ilegal adotada no DSA denota a abrangência do conceito: “«Conteúdo ilegal», qualquer informação que, por si só ou em relação a uma atividade, incluindo a venda de produtos ou a prestação de serviços, não esteja em conformidade com o direito da União ou com o direito de qualquer Estado-Membro que esteja em conformidade com o direito da União, independentemente do objeto preciso ou da natureza dessa lei” (Art. 3(h)) (tradução nossa)

[3] Riscos sistêmicos são riscos que riscos sistêmicos que decorrem do modelo de negócios das plataformas online de muito grande dimensão O DSA prevê quatro categorias de riscos sistêmicos: a “primeira relaciona-se com os riscos associados à difusão de conteúdos ilegais (como o discurso de ódio) e à realização de atividades ilegais (e.g., o comércio ilegal de animais) — ilegalidade essa que, nos termos do artigo 3(h) do DSA, deverá ser avaliada com base nos parâmetros oferecidos pelo direito da União ou dos estados-membros. A segunda categoria diz respeito aos impactos reais ou previsíveis do serviço no exercício de direitos fundamentais protegidos pela Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, que incluem, por exemplo, o direito à dignidade humana, o direito à vida privada, os direitos da criança e a liberdade de expressão. A terceira, por sua vez, diz respeito aos efeitos negativos em processos democráticos, no discurso cívico, em processos eleitorais e na segurança pública. Por fim, a quarta categoria volta-se a preocupações com impactos negativos na proteção da saúde pública, dos menores de idade, e do bem-estar físico e mental em matéria de violência de gênero.”. Cf.: CAMPOS, R.; SANTOS, C. X.; OLIVEIRA, S. R. Riscos sistêmicos no DSA e suas lições para o Brasil. CONJUR. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2023-mar-07/direito-digital-riscos-sistemicos-dsa-licoes-brasil/>. Acesso em: 26 abr. 2024.

[4] BRADFORD, A. The Brussels Effect: How the European Union Rules the World. Oxford University Press, 2020.

Autores

  • é mestranda em Direito pela Universidade de Lisboa, graduada em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais, pesquisadora no Legal Grounds Institute e advogada.

  • é mestre e doutora em Direito Processual pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), bacharel em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), pesquisadora do Legal Grounds Institute, membro do Grupo de Estudos em Novas Regulações de Serviços Digitais no Direito Comparado do Legal Grounds Institute e advogada.

  • é doutorando em Teoria do Estado e Direito Constitucional pela PUC-Rio, mestre em Direito e Inovação pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), pesquisador do Instituto Legal Grounds e advogado.

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