Opinião

O benefício do abolitio delicti na improbidade administrativa

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28 de abril de 2024, 6h38

Em dezembro de 2022, o Supremo Tribunal Federal, ao julgar o Recurso Extraordinário com Agravo (ARE) 843.989 (Tema 1.199), estabeleceu a impossibilidade de condenação baseada em tipo culposos, ainda que o ato classificado como ímprobo tenha sido praticado anteriormente à Lei nº 14.230/2021. Venceram, portanto, as teses da proibição de ultratividade da norma sancionadora e a da retroatividade da norma revogadora.

A partir de então, surgiram reflexões sobre os efeitos daquele julgamento, especialmente no tocante à possibilidade de ser considerado um precedente que incidiria em causas ajuizadas para reprimir atos praticados com dolo, nas hipóteses de revogação do tipo sancionador.

Naquele mesmo mês, tive a oportunidade de, ao analisar as razões de decidir (ratio decidendi) daquele acórdão, concluir que a interpretação da Corte Suprema, com base no princípio de hermenêutica pelo qual onde existe a mesma razão fundamental, prevalece a mesma regra de direito [1], se estendia aos tipos dolosos extirpados do ordenamento jurídico por aquela norma legal, desde que o respectivo processo não contivesse sentença condenatória transitada em julgado [2].

Assim, se, no curso do processo, em qualquer grau de jurisdição, sobreveio a Lei nº 14.230/2021 e esta extinguiu o tipo doloso cuja prática embasara a inicial, a condenação se torna impossível, devendo ser extinto o processo com improcedência da pretensão dada a atipicidade superveniente.

A interpretação de toda a doutrina, exceto de alguns juristas integrantes do Ministério Público, era em igual direção [3].

Violação genérica a Princípios da Administração Pública

Pois bem, no presente mês [4], o plenário do STF seguiu a doutrina e decidiu, ao julgar os Embargos de Declaração no ARE 803.568 que, no tocante ao artigo 11 da Lei de Improbidade, o tipo “violação genérica a Princípios da Administração Pública” (antigo caput desse dispositivo), ainda que doloso o ato do réu, não pode sustentar uma condenação, pois foi extinto pela Lei nº 14.230/2021.

Nos termos do voto do relator, ministro Gilmar Mendes:

“Em consulta aos documentos acostados aos autos, verifica-se que o embargante foi condenado por estar incurso no inciso I do art. 11, o qual previa ser considerado ato de improbidade administrativa “praticar ato visando fim proibido em lei ou regulamento ou diverso daquele previsto, na regra de competência”.

(…)

Ocorre que a alteração da Lei de Improbidade Administrativa, promovida pela Lei 14.230/21 revogou o postulado pelo qual condenado o recorrente, deixando de considerar a hipótese anteriormente prevista no art. 11, I, como fato típico, sem que outro semelhante fosse editado para caracterizar a continuidade típico-normativa da matéria.

Além disso, a partir das alterações promovidas no caput do art. 11, passou-se a considerar como taxativas as condutas tipificadas no referido dispositivo, passando-se a exigir a demonstração do elemento subjetivo dolo para as condutas ali descritas.

(…)

O entendimento consagrado naquele julgado paradigmático da repercussão geral – no sentido da impossibilidade de aplicação de norma legal expressamente revogada antes do trânsito em julgado da sentença condenatória –, se aplica perfeitamente ao caso em questão, em que revogado o inciso I do art. 11. Isso porque, conforme já demonstrado, a Lei 14.230/2021 deixou de considerar típica a conduta anteriormente descrita, qual seja, a de “praticar ato visando fim proibido em lei ou regulamento ou diverso daquele previsto na regra de competência”, motivo pelo qual se mostra inviável a continuidade da presente ação de improbidade administrativa.”

Seguiram-se os votos de todos os demais ministros acompanhando o relator, resultando em julgamento à unanimidade (11 x 0), inclusive com adesão dos novos membros da corte que não haviam participado do julgamento anterior (Cristiano Zanin e Flávio Dino), rejeitando-se, portanto, a tese do órgão acusador (MP-SP), que considerava que os tipos dolosos previstos no artigo 11 ainda poderiam sustentar uma condenação, mesmo diante da superveniência da Lei nº 14.230/2021.

Spacca

Destaque-se que o acórdão do STF se encontra em completa harmonia com a jurisprudência da Corte Americana dos Direitos Humanos: Caso Baena Ricardo y otros Vs. Panamá, parágrafo 103, São José da Costa Rica, 2 de fevereiro de 2001; Caso del Tribunal Constitucional Vs. Perú, parágrafo 68, São José da Costa Rica, 31 de janeiro de 2001; Caso Maldonado Ordoñez vs. Guatemala, parágrafo 89, São José da Costa Rica, 3 de maio de 2001 [5].

Anteriormente, as duas Turmas do STF já haviam se posicionado em igual sentido [6].

Conclusão

Assim, conclui-se que, em decorrência do julgamento do Plenário no ARE 803.568, restou consagrada a ocorrência do fenômeno superveniência de atipicidade, que deve ser reconhecido independentemente do elemento anímico do tipo [7], graças à inegável abolitio delicti, a beneficiar também os agentes que agiram com dolo [8], desde que o tipo tenha sido revogado pela Lei nº 14.230/2021 e que a sentença condenatória não tenha transitado em julgado.

 


[1] Ubi eadem ratio ibi idem jus (onde houver o mesmo fundamento, razão, haverá o mesmo direito) e ubi eadem legis ratio ibi eadem dispositio (onde existe a mesma razão, se aplica o mesmo dispositivo legal). Essa diretriz hermenêutica é de ampla aplicação no STF, como se verifica no RE 602.899 AgR/RS, no RE 661.521/MS e no RE 1.018.911, de 11/11/2021: https://www.conjur.com.br/2023-nov-05/francisco-lima-neto-stf-improbidade-atos-dolosos/

[2] https://www.conjur.com.br/2022-dez-28/lima-neto-improbidade-administrativa-retroatividade-lei/

[3] https://www.conjur.com.br/2024-fev-08/improbidade-administrativa-sem-ultratividade-da-lei-antiga-nulla-poena-sine-legem/

[4] Sessão virtual de 12 a 20/04/2024.

[5] No mesmo sentido, a CORTE EUROPEIA DE DIREITOS HUMANOS, Plenário, Caso Örtürk vs Germany, Application nº 8544/79, Strasbourg, 21 de fevereiro de 1984.

[6] https://www.conjur.com.br/2023-dez-13/improbidade-administrativa-e-retroatividade-o-ato-doloso/

[7] Vale dizer, incide também sobre os processos cuja causa de pedir se refere a ato doloso.

[8] Cabe lembrar que a Lei de Improbidade exige dolo específico, não se admitindo mais o genérico.

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