Opinião

Improbidade por atos dolosos: o acórdão do STF no ARE 1.346.594

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5 de novembro de 2023, 6h06

O STF (Supremo Tribunal Federal) decidiu agora em outubro que a nova Lei de Improbidade se aplica retroativamente aos atos dolosos no caso de extinção do tipo sancionador genérico previsto no artigo 11 da redação original da Lei nº 8.429/92. Consagrou, portanto, a tese de superveniência de atipicidade defendida pela doutrina de Direito Administrativo e prevista no artigo 9º do Pacto de San Jose da Costa Rica.

Foi esse o entendimento manifestado pela 2ª Turma do STF no julgamento do ARE 1.346.594, ao acolher o voto do ministro Gilmar Mendes, em sessão virtual finalizada em 23/10/2023.

Na corte de origem (TJ-SP), o recorrente havia sido condenado por dolo: "É certo, todavia, que a configuração do referido ato de improbidade (previsto no artigo 11, da LIA) exige não apenas a conduta ímproba, como também a prova do dolo. Em outros termos, é necessário constatar que os agentes públicos sabiam estar agindo em violação à lei, sob pena de responsabilização objetiva. O dolo é manifesto e a eventual ignorância da Constituição e da lei além de não ser crível, não elide a conduta ímproba."

A vexata quaestio em debate no ARE era a (im) possibilidade de se condenar réu que responde a ação de improbidade administrativa com base em dispositivo sancionador (ainda que tipo doloso) que não existe mais no momento da decisão.

Como se sabe, com exceção dos juristas que são membros do Ministério Público, a doutrina especializada considera que não há possibilidade jurídica de, nos processos em tramitação, se condenar o acusado com base em um tipo legal sancionador que deixou de existir: Mauro Gomes de Mattos [1], Luciano Ferraz [2], Egon Bockmann Moreira & Gustavo Binenbojm [3], Flávio Cheim Jorge [4], Lenio Streck [5], Jacinto Coutinho [6], Cristiana Fortini [7], Bernardo Strobel Guimarães [8], Francisco Vieira Lima Neto [9].

Merece destaque a plêiade de juristas que consagrou o Enunciado 38 das 2ª Jornadas do Instituto Brasileiro de Direito Administrativo (Pirenópolis – 2023)[10].

No âmbito da Advocacia-Geral da União, o Parecer nº BBL — 08, (bem Parecer nº 00005/2022/CNPAD/CGU/AGU), aprovado pelo presidente da República e publicado [11], também é no sentido da aplicação da lex mitior: "80. Diante do exposto, conclui-se que: b) aos atos ímprobos anteriores às inovações legislativas trazidas pela Lei nº 14.230, de 2021, e não julgados aplica-se as diretrizes da nova norma, diante a análise do caso em concreto, desde que a nova redação seja mais benéfica ao acusado".

Vale dizer, verifica-se que a posição do Poder Executivo é pela aplicação da Lei nº 14.230/2021 aos processos em curso, quando este dispositivo legal for mais favorável ao réu, que é precisamente o entendimento vencedor do ministro Gilmar Mendes, relator do voto que aqui estamos apreciando [12].

Quanto ao Poder Legislativo, a sua decisão foi igualmente a de aplicar de maneira retroativa a Lei nº 14.230/2021, norma aprovada por ampla maioria das Casas, como bem destacou o senador relator Weverton, em votação que contou com o apoio das forças políticas de direita e de esquerda. De fato, nos apontamentos do professor João Trindade Cavalcanti Filho [13], na tramitação do Projeto de Lei nº 2.505/2021, a Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado deliberou em favor da retroatividade das novas normas, ao rejeitar a emenda nº 40 — que inseria no texto do PL referência explícita à retroatividade das normas benéficas.

O relator do PL, senador Weverton, em manifestação acolhida pelos demais parlamentares dos variados espectros político-ideológicos que convivem no nosso Parlamento, registrou o seguinte: "A Emenda nº 40, do senador Dário Berger, propõe a inclusão de artigo, onde couber, no Projeto de Lei nº 2.505, de 2021, para que as alterações dadas pela presente proposição, se apliquem desde logo em benefício dos réus. Rendendo homenagens ao senador Dário Berger, deixo de acolher a proposta tendo em vista que já é consolidada a orientação de longa data do Superior Tribunal de Justiça, na linha de que, considerando os princípios do Direito Sancionador, a novatio legis in mellius deve retroagir para favorecer o apenado" (REsp nº 1.153.083/MT, rel. min. Sérgio Kukina, julgado em 19/11/2014) [14]

Ou seja, o Legislativo estava tão convencido de que a lei ora em produção se aplicaria aos processos em curso que julgou desnecessário inserir explicitamente esse comando no texto legal.

No âmbito do Supremo Tribunal Federal, merece destaque o voto do ministro Alexandre de Moraes, relator do Tema 1.199: "(…) tendo sido revogado o ato de improbidade administrativa culposo antes do trânsito em julgado da decisão condenatória, não é possível a continuidade de uma investigação, de uma ação de improbidade ou mesmo de uma sentença condenatória com base em uma conduta não mais tipificada legalmente, por ter sido revogada. Não se trata de retroatividade da lei, uma vez que todos os atos processuais praticados serão válidos, inclusive as provas produzidas que poderão ser compartilhadas no âmbito disciplinar e penal; bem como a ação poderá ser utilizada para fins de ressarcimento ao erário. Entretanto, em virtude ao princípio do tempus regit actum, não será possível uma futura sentença condenatória com base em norma legal revogada expressamente. (…)".

Da leitura do voto acima transcrito, constata-se que no julgamento acima o STF já havia reconhecido a impossibilidade de aplicação aos feitos em curso do tipo sancionador culposo, pois, embora praticado o ato na época em que ele integrava o sistema, no momento da decisão, o tipo deixara de existir. Noutros termos, a interpretação do STF no Tema 1.199 foi no sentido de que, como o tipo culposo fora extinto pela Lei nº 14.230/2021, não poderia o juiz condenar o réu com base nele por força da superveniência de atipicidade.

A partir daí, e adotando-se um raciocínio lógico-jurídico, estende-se a fundamentação do Tema 1.199 para se alcançar o único resultado possível, agora acolhido pela 2ª Turma no ARE 1.346.594: a mesma fundamentação (motivação) vale para o tipo doloso revogado pela lei, isto é, cumprindo-se as regras da hermenêutica jurídica, imperativo concordar que onde há a mesma razão de ser, deve prevalecer a mesma razão de decidir (ubi eadem legis ratio ibi eadem dispositio), ou, noutras palavras, onde há o mesmo fundamento haverá o mesmo direito (ubi eadem ratio ibi idem jus) [15].

A decisão da 2ª Turma no ARE 1.346.594, portanto, garantiu os respeito aos precedentes do STF, às lições da doutrina administrativista e à lógica jurídica, ficando, com isso, afastada a possibilidade de condenação, nos processos em curso, de réu acusado da prática de violação dolosa genérica de princípios jurídicos, tal como era previsto no artigo 11 da Lei de Improbidade em sua redação original, mesmo quando o ato houver sido praticado antes da Lei nº 14.230/2021, uma vez que essa provocou o fenômeno da superveniência de atipicidade.

 

 


[10] Enunciado IBDA:

38. No Tema 1.199, o STF reconheceu a incidência das normas da Lei nº 14.230/21 que sejam mais favoráveis ao réu, quando admitiu a constitucionalidade da exclusão da modalidade culposa e a fez aplicável aos processos em curso. Assim, qualquer alteração da lei nova, desde que mais favorável ao réu, deve ser aplicada imediatamente às ações em curso (lex mitior). Porém, quando as alterações forem mais gravosas (lex gravior), apenas incidirão para fatos posteriores à entrada em vigor da Lei nº 14.230/21.

[12] A lei mereceu sanção sem vetos pelo presidente, o que reforça a conclusão de que foi produto da vontade do Executivo e do Legislativo.

[13] Cavalcanti Filho, J. T. Retroatividade da Reforma da Lei de Improbidade Administrativa (Lei nº 14.230, de 25 de outubro de 2021). Brasília: Núcleo de Estudos e Pesquisas/Conleg/Senado. Novembro 2021 (Texto para Discussão n. 305). Disponível em: https://www12.senado.leg.br/publicacoes/estudos-legislativos/tipos-de-estudos/textos-para-discussao/td305, p. 24.

[15] Essa diretriz hermenêutica é de ampla aplicação no STF, como se verifica no RE 602.899 AgR/RS e no RE 661.521/MS:

"6. A ausência de impugnação de todos os fundamentos da decisão agravada, atrai a incidência da Súmula 283/STF, aplicável ante a máxima hermenêutica ubi eadem ratio, ibi eadem legis dispositio: onde existe a mesma razão fundamental, prevalece a mesma regra de Direito. Precedentes."

E o acórdão do Plenário no RE 1.018.911, de 11/11/2021:

"14. A gratuidade de taxas para registro do estrangeiro residente se coloca como questão prévia ao próprio requerimento de concessão do benefício assistencial, pois este último, assim como a fruição de uma série de direitos fundamentais e serviços públicos básicos, só pode ser requerido após a devida regularização migratória. Ubi eadem ratio ibi eadem dispositio (onde há a mesma razão de fato, deve haver o mesmo direito)"

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