Opinião

Equilíbrio econômico-financeiro nas parcerias entre poder público e 3º setor na saúde

Autor

  • Ingrid Garbuio Mian

    é doutora e mestra em Direito do Estado pela USP (Universidade de São Paulo). Atua na área de Direito Regulatório e Infraestrutura no Tojal Renault Advogados.

8 de maio de 2024, 6h09

As organizações do terceiro setor marcam presença significativa na prestação dos serviços públicos de saúde no Brasil. Suprindo demandas não atendidas ou subatendidas pelo Estado, as entidades beneficentes são responsáveis por grande parte do atendimento no SUS, fornecendo 37,6% do total de leitos e representando a única unidade hospitalar em 968 municípios [1].

Arquivo/Agência Brasil

Em conformidade com o artigo 33 da Lei nº 8.142/1990, o modelo de financiamento ao Sistema Único de Saúde opera em um sistema multicêntrico que reflete o intento constitucional de equilíbrio e cooperação federativa, partindo de repasses da União, por meio do Fundo Nacional de Saúde, aos fundos estaduais e municipais. Esses, por sua vez, repassam os recursos aos particulares credenciados junto ao SUS, por meio de instrumentos de colaboração, como contratos de gestão e convênios.

A Lei nº 8.080/1990, em seu artigo 7º, inciso IX, ‘a’, dispõe que as ações e os serviços públicos de saúde e os serviços privados contratados ou conveniados que integram o SUS atendem ao princípio da descentralização político-administrativa, com ênfase na descentralização dos serviços para os municípios, refletindo o comando constitucional sobre a prestação dos serviços em caráter descentralizado (artigo 198, caput e inciso I, da Constituição).

Na prática, em termos quantitativos, dada a penúria fiscal que assola o país, os repasses aos particulares em colaboração com o SUS são limitados aos valores previstos na chamada “Tabela SUS”, embora se admita a complementação de tais importâncias referenciais pelos estados e municípios. Ocorre que a tabela do SUS não é reajustada há mais de 20 anos, do que decorre sua evidente defasagem.

A recente alteração da Lei nº 8.080/1990 pela Lei nº 14.820/2024, ao estabelecer o equilíbrio econômico-financeiro como parâmetro a ser seguido nas parcerias da saúde complementar e o comando de revisão anual dos repasses, tem por intento, justamente, solucionar ou, ao menos, atenuar o drástico subfinanciamento dos colaboradores privados do serviço público de saúde.

Contudo, entre a previsão normativa e a realidade que lhe subjaz, há uma enorme distância, e são cada vez mais frequentes as dificuldades financeiras em entidades do terceiro setor atuantes no SUS, as quais não dispõem de recursos para a prestação dos serviços. Mesmo quando buscam complementar o valor dos repasses, há relutância ou mesmo recusa por parte do poder público contratante em restabelecer o equilíbrio econômico-financeiro do ajuste.

Spacca

Alguns consideram que as entidades beneficentes, por não almejarem o lucro, se empenhariam na prestação do serviço, ainda quando sujeitas a condições deficitárias. Segundo tal imaginário pouco crítico, as entidades filantrópicas não teriam preocupações de ordem financeira, devendo arcar com os inesgotáveis prejuízos decorrentes de sua beneficência.

Não são necessárias maiores reflexões para evidenciar o equívoco da constatação acima exposta. Os recursos financeiros constituem bens escassos, limitados ao patrimônio da entidade beneficente. Ora, sem tais recursos nenhuma ação voltada à prestação do serviço se viabiliza: é preciso comprar insumos, pagar colaboradores, arcar com taxas e tarifas de outros serviços, adquirir manutenção predial, etc.

Por outro lado, há um argumento de ordem contratual (ou nominalista-contratual) que se opõe ao direito ao equilíbrio econômico-financeiro nas parcerias firmadas com entidades do terceiro setor. Como anteriormente adiantado, na prática, tais parcerias são firmadas por convênios, contratos de gestão, termos de parceria e contratos administrativos (em sentido estrito).

Quanto aos últimos instrumentos, não pairam dúvidas sobre a aplicação do princípio em comento, já que, tanto por ostentar em sua nomenclatura o termo “contrato”, como também pela previsão do artigo 37, XXI, da Constituição [2], atraem a comutatividade própria das trocas bilaterais.

Por outro lado, em relação aos convênios, termos de parceria e acordos de gestão, por vezes, recusa-se a aplicação do equilíbrio, por se considerar que não há prestações contrapostas a serem sopesadas em um parâmetro comutativo, e sim há uma finalidade comum a se atingir por parte de ambas as partes, para o que as mesmas somente assumem obrigações.

O próprio Supremo Tribunal Federal equiparou o contrato de gestão, disciplinado pela Lei nº 9.637/1998, à mesma categoria do convênio, então disciplinado pela Lei nº 8.666/1993, no julgamento da ADI 1.923 [3], sob o argumento aqui descrito.

Contudo, entendemos que a designação do ajuste não tem o condão de apartá-lo de um regime jurídico mais geral — comum não só aos contratos administrativos como também a todos os negócios jurídicos, relativamente ao equilíbrio ou equivalência das prestações ajustadas em um instrumento convencional qualquer.

Ao se estipularem prestações devidas em função de um fim (comum ou não), são estabelecidas as expectativas econômicas das partes em relação ao negócio e, por tabela, distribuem-se os riscos para a consecução da finalidade negocial. Tal é a equação econômico-financeira, presente em qualquer arranjo de vontades. Alterados os elementos que venham a frustrar referidas expectativas, em nome da equação econômico-financeira estipulada, deve-se providenciar ajustes a fim de recompor o equilíbrio.

Riscos do contrato administrativo

Em particular, quanto ao regime da distribuição de riscos do contrato administrativo, parece-nos correto concluir que o equilíbrio econômico-financeiro se estende a todos os negócios dos quais participa a administração como parte, como decorrência do regime jurídico geral aplicável.

Ao firmar convênio ou acordo de gestão com entidades do terceiro setor, não se isenta a administração da atividade, já que mantém sua titularidade, bem como o dever de garantir a prestação do serviço público. Por essa razão, aplica-se o direito ao equilíbrio econômico-financeiro da entidade beneficente nesses ajustes que assumem ou não características mais ou menos contratuais.

Na doutrina nacional, tradicionalmente, entende-se o equilíbrio econômico-financeiro do contrato administrativo como “garantia ampla do particular contratado em face das alterações impostas pela administração contratante, bem como por outros eventos alheios ao contrato”, como preconiza Guilherme Jardim Jurksaitis [4]. Fala-se como se o risco fosse sopesado sempre em favor do particular contratado, nunca em favor da administração contratante.

Ocorre que, dada a evolução atual do debate (com temas como a “incerteza” e a “incompletude” dos contratos) e mesmo dos instrumentos eleitos pelo legislador como mecanismos aptos a absorção ou precificação de riscos (seguros, matriz de risco econômico-financeiro, etc), são adicionadas camadas de complexidade ao olhar. O fenômeno do equilíbrio econômico-financeiro ganha um colorido específico, animado pelas peculiaridades setoriais e pela modelagem contratual.

As considerações transpõem-se aos negócios públicos firmados com organizações do terceiro setor e, em especial, com aquelas atuantes na área da saúde. Alinhamo-nos ao entendimento de Fernando Dias Menezes de Almeida [5], para quem, em acordos de cooperação (tais como convênios e contratos de gestão), “em lugar de uma real conjugação de esforços, existe uma verdadeira contraprestação por uma atividade exercida pela entidade privada, a qual, ainda que não busque o lucro, estará visando a outras modalidades de benefícios privados apropriáveis a partir de recursos públicos”.

Ademais, como destacou Raphael de Matos Cardoso [6], “[o] intuito lucrativo nunca foi elemento caracterizador do contrato”, a exemplo do contrato de comodato, e “[a] contraposição de interesses tampouco é uma exclusividade dos contratos administrativos”, em razão da presença da comutatividade em diferentes relações que compreendam obrigações recíprocas.

Ressalve-se que não se trata aqui de equiparar todas as formas negociais, reduzindo-as a uma mesma disciplina, porém, é necessário reconhecer que há certas linhas mestras ou princípios ínsitos à atividade contratual do Estado, sobretudo quando se volta à prestação de serviços públicos, que devem ser observados.

Tratando-se de uma garantia a ser observada como princípio das parcerias estatais, podem as entidades filantrópicas de saúde que prestam serviços ao SUS exigir o equilíbrio econômico-financeiro, buscando o complemento de valores para subsidiar o exercício das atividades pactuadas, mantendo a equação comutativa originariamente firmada.

Ao dispor que os repasses destinados à remuneração dos serviços de saúde buscarão a garantia do equilíbrio econômico-financeiro na prestação dos serviços e preservação do valor real destinado à remuneração dos serviços (artigo 26, §5º, da Lei nº 8.080/1990, incluído pela Lei nº 14.820/2024), o legislador buscou solucionar o impasse sobre a aplicação do equilíbrio econômico-financeiro às parcerias aqui discutidas, caindo por terra eventuais posições em contrário.

Resta-nos aguardar para avaliar como o Poder Executivo implementará a novidade legislativa. Até lá, garante-se às entidades do terceiro setor que prestam serviços ao SUS obter o equilíbrio econômico-financeiro, com o indispensável complemento dos repasses. A princípio, vale recorrer às vias consensuais, por meio de acordo com o parceiro público, porém, vislumbra-se mesmo a possibilidade de judicialização do pleito, caso a primeira opção se fruste.

 


[1] Dados de 2019, disponíveis em: http://saude.gov.br/noticias/agencia-saude/45516-hospitais-filantropicos-que-atendem-o-sus-vao-contar-com-r-1-bilhao-de-nova-linha-de-financiamento.

[2] Art. 37, XXI, Constituição – ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta, nos termos da lei, o qual somente permitirá as exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações.

[3] “A figura do contrato de gestão configura hipóteses de convênio, por consubstanciar a conjugação de esforços com plena harmonia entre as posições subjetivas, que buscam um negócio verdadeiramente associativo, e não comutativo, para o atingimento de um objetivo comum aos interessados: a realização de serviços de saúde, educação, cultura, desporto e lazer, meio ambiente e ciência e tecnologia, razão pela qual se encontram fora do âmbito de incidência do art. 37, XXI, da CF” (STF. Plenário. Redator para o acórdão: Min. Luiz Fux.  DJ 16/04/2015).

[4] JURKSAITIS, Guilherme Jardim. Uma proposta de releitura para o direito ao equilíbrio econômico-financeiro nos contratos administrativos. Tese de Doutorado. Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 2019.

[5] MENEZES DE ALMEIDA, Fernando Dias. Contrato Administrativo. São Paulo: Quartier Latin, 2012.

[6] CARDOSO, Raphael de Matos. O contrato de gestão celebrado com organizações sociais de saúdo pelo Estado e pelo Município de São Paulo. Tese de Doutorado. Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 2022.

Autores

  • é doutora e mestra em Direito do Estado pela USP (Universidade de São Paulo). Atua na área de Direito Regulatório e Infraestrutura no Tojal Renault Advogados.

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